segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Anish Kapoor




Dois poemas de Al Berto



ao Jacinto


se te nomeasse cintilarias
no beco duma cidade desfeita
e o chumbo dos labirintos derreter-se-ia
na veia branca da noite uma estátua
de areia talvez um barco sulcasse
a cabeleira aquática da fala e
nenhuma porta se abriria sob teus passos


onde estamos? onde vivemos?
no desaguar tenebroso deste rio de penumbra
não beberemos ao futuro do homem
nem festejaremos o rugido triste da fera
moribunda



mas se te nomeasse
que desejo de sexo e da mente a medrosa alegria
em mim permaneceria?




O MEDO, Contexto, 1987, Lisboa.
ao Jorge e ao Eduardo Pitta 


nenhum barco regressou antes ou depois do teu
a noite azedou o vinho adocicado dos deuses
sem que um suspiro estalasse
na penumbra azul dos dias que te evocam


é tarde
estou doente no milénio que finda
as grandes rotas da paixão aborrecem-me
outro corpo magoa o esquecimento do meu
tenho a saudade duma mão sobre o rosto
a melancolia dos olhos dos afogados
mas nunca pedi à morte um pano limpo
para vendar ou polir o âmbar dos teus




resta-me este texto antigo deserto de asas
sobre a pele mordida pelas cinzas do voo
as horas como feridas de aguçados dentes
onde tremem alguns corpos que foram meus
 


O MEDO, Contexto, 1987, Lisboa.