Tal como caem os dias assim sobre esta terra está a cair a angústia sobre o meu coração. E cheios de velhice ficam os campos, e a vida solitária e escura como essas nuvens mortas que atravessam o céu e às quais o tempo vai enchendo de pó e de sombras nesta tarde de outono.
Tudo tem o seu fim e o seu destino escrito obscuramente.
E no mundo do homem que vivo na mesma que no mundo humilde da terra marcados vão os seres pela vida ensinando-se a morrer. Bebem fogo de amor noutra carne enferma, gozam a delícia quando esquecem o seu mal, geram sonho de deuses e nenhum pensamento os consola.
O terror é a morte e também este universo de existências que vivem junto de mim com o seu mistério. A terra, os pássaros, o rio, o homem que via afadigar-se na luz foram parte da minha alma, um vivo desejo de unidade com o mundo o qual com a sua presença purificava o meu íntimo. Mas hoje, que é ontem e que eu não via, a terra está árida de sol debaixo das nuvens, os pássaros mostram o seu vasto desalento nos altos ramos com folhagens de cinza, o rio pedregoso volta a dar-me o seu gosto de morte entre os juncos e o homem, como eu, afundou-se entre as sombras do medo e da loucura. E não me basta ignorar, esquecer-me de mim e do mundo quando ao destino nada esquece, quando viver é cruel e não sagrado. E sinto terror de mim por existir, por me ver respirar, por contemplar a minha miséria como um rumor mais do que vive. Por ser o fruto de uma natureza fatal. O que vejo junto do meu corpo é apenas desolação, uma desolação que sofre. Há montes em solidão, e uma luz que dá pobreza, e seres e coisas que vivem marcados por um capricho celeste.
2
Tudo está só no meio do mundo e nele só há formas sem sentido a que dá alento a respiração da morte.
Agora vejo fúnebres no meu olhar os bosques nos quais um dia pus a descansar o meu coração, e o que respiro perde-se no ar do mundo sem que nada os una. Lá no alto o céu agoniza a sua luz no lugar vazio dos deuses e a humidade das primeiras estrelas vai caindo na minha alma como caem as ruínas sobre o pó de um sonho.
Com os olhos queimados e humildes olho entardecer o mar e vejo como o lodaçal gelado das nuvens devora o ouro da água e a tormenta traz pastos e espaços calcinados à espuma do meu coração.
Há algo velho em mim que está velho no mundo, que vai apagando o meu rosto com o musgo do cansaço, que faz tremer as minhas mãos debaixo do vazio celeste e pouco a pouco à vida a vai enchendo de sal. Debaixo das sombras sinto apenas náusea e terror de mim pois já não sou outra coisa senão um animal devorado pelo tempo, senão o lugar onde um homem e a sua razão e os seus sonhos fracassam.
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Tradução de Joaquim Manuel Magalhães, Trípticos Espanhois, 2º, RelógioD'Água, 2000, Lisboa