quinta-feira, 2 de outubro de 2008

TRAGICOMÉDIA a LÍDIA JORGE de INÊS LEITÃO

Foi no Marquês que Lídia passou por mim: a sua pele hidratada, os seus cabelos cor de trigo espetados no pescoço à laia de espadachins de ferro; o seu casaco, o seu corpo de costas. Lídia trazia o DN na mão direita. Lídia Jorge não me disse adeus e seguia tranquila como se a avenida da Liberdade fosse sua, como se o passeio fosse a imensa continuação das suas magras pernas brancas. Lídia trazia um casaco branco sintético e os meus dedos quiseram tocar-lhe as pontas dos espadachins da cara. No momento em que me viu, Lídia Jorge disse:
- conheço-a?

E uma mulher pequena deixou cair a carteira.

Eu queria tanto tocá-la, Lídia. A sua pele branca a cheirar a jasmim, o seu casaco branco até aos joelhos à laia de dama vicentina que se protege dos outros, o rigor das suas calças pretas, os seus olhos pequenos escondidos atrás dos óculos escuros(os seus olhos do outro lado da pele) as minhas mãos a quererem tocar a ponta dos seus olhos cor de lama, Lídia
-eu?

Eu a querer convidá-la para um chá: falaríamos de nós, dos nossos livros, daquilo que pensamos à noite quando nenhum homem entra Lídia, quando nenhum homem nos toca na nossa cama e ficamos só nós: nós como só nós sabemos ser- Helena de Tróia, Lídia, eu conheço Helena de Tróia
Eu vi-a, eu disse-lhe olá e a Lídia não me reconheceu- O Forza Leal, Lídia, Moçambique nos anos 60 não pode ser diferente de Moçambique de 2005: a mesma Avenida Lenine no filme da Margarida, Lídia

a Margarida Cardoso a tocar-lhe os ombros na televisão com um casaco que pediu emprestado para a conhecer: eu sozinha no sofá com um vestido preto de seda à espera que a Lídia saísse do ecrã e me abraçasse. A Lídia a dizer
- sim?

E eu a vê-la ir, Lídia, a vê-la ir sem que a Lídia me colocasse a mão na testa, eu sem sentir o seu abraço que cheira a jasmim(a Lídia não precisa de se aproximar para eu saber àquilo que cheira)
- a senhora não me conhece, desculpe
Eu a pedir desculpa pelo encontrão, Lídia, a Lídia a abraçar-me, a insistir para pagar o chá, as torradas, os brioches. Nós íntimas, Lídia, a Lídia a falar-me das personagens do seu novo livro, a Lídia a dizer-me que gosta de Redfish e eu a jurar-lhe que tem de vir cá a casa conhecer a minha mãe e o peixe que coze no nosso forno aos sábados( o tomate a descansar em cima do redfish com as cebolas e os pimentos, como se todos eles naquele forno fossem uma grande família Victoriana que se reencontra aos sábados)
a Lídia a jurar-me que a minha imaginação é desleal com a realidade, e nós sentadas num afamado hotel da capital a beber chá de maçã vermelha, com toda a gente a ver.
Lídia Jorge atravessou Lisboa a pé, de óculos escuros, como quem sabe para onde ir.
Noites de POESIA na maria vai com as outras.
Todos os meses na primeira sexta-feira do Mês.
Foto de Lucy and Bart


CAUSA AMANTE
de MARIA GABRIELA LLANSOL
(...)
Desdobro a carta de Luís M., não é uma carta , pois é um manuscrito fechado, mas sem endereço; é o que for, e eu lerei alto, a mim e a elas:
o que me atrai em ti é que te abras. Que te abras ao se. Que eu possa ir até todos os teus íntimos, como se fosses uma grinalda de flores secas, um velho pano de seda, um corpo de lembranças sensíveis, de homens desejados e perdidos, de visões sem lógica, de força de vontade, de pedaços de melodias simples trauteadas.
Cada vez que fui até a um teu segredo, a minha energia foi e, depois da retenção, eu ta dei.
foi na busca da mulher que principiou o meu caminho, é nele que encontrei o livro. Peguei no livro como se desfolhasse uma mulher muito desejada e adquiri uma forma fundamental de querer. Ensinou-me o livro a penetrar a mulher e estou com ela, como se a mulher seguisse os meandros do enredo.
o que me atrai no livro é que se abra. Que eu possa ir a todos os seus recantos, como se ele fosse um labirinto de acções, um guia em mundos que desconheço, uma sequência de imagens exactas, uma paisagem com força de existir, um velho manuscrito que fale verdade, e responda.
Cada vez que fui até ao fim do enredo, a minha energia foi e, depois de captada, se entregou.
a forma de te procurar e a forma do que procurei encontram-se quando, contigo, pude escrever o livro.
(...)