MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO aquém de si próprio
Poeta genial, escolheu uma maneira invulgar de sair da vida, e, tanto na vida como na obra, ficou aquém de si próprio.
Orfão de mãe aos dois anos, sem irmãos, nem uma ligação forte com o pai ou com a ama, que o tivesse ajudado a crescer e a gostar de si, Mário de Sá-Carneiro «decide-se a criar», e ama a sua Obra, mas não consegue amar-se, nem, mesmo através dela. A Obra é o espelho do seu labiríntico mundo interior, e revela duas necessidades fundamentais e desesperadas: a de se conhecer e a de se ligar a alguém, necessidades inseparáveis uma da outra. A sua poesia mostra um dramático sofrimento psíquico e tornou-se um elo de ligação consigo próprio e com o seu grande Amigo Fernando Pessoa com quem estabeleceu correspondência regular entre 1912 e 1916. A poesia é precisamente desses três últimos anos de vida. Já tinha escrito teatro e novelas, mas é na poesia que se mostra autêntico, mais directo e criativo, sendo ele próprio, sem disfarce, a sua personagem.
Assim, Sá-Carneiro vai escrevendo poesias onde se revela e que envia a Fernando Pessoa, juntamente com as Cartas que o ligam ao seu amigo a quem pede sempre respostas rápidas e críticas sinceras. Não se poupa, todavia, a demonstrações de amizade, admiração e incentivo ao trabalho criador do seu amigo, dando também opiniões sinceras.
Ao escrever poesia, vai descendo dentro de si, e apercebe-se das fantasias grandiosas que foi obrigado a criar para sobreviver.
«Numa ânsia de ter alguma cousa,
Divago por mim mesmo a procurar,
Desço-me todo em vão, sem nada achar,
E minh'alma perdida repousa
Nada tendo, decido-me a criar:
Brando a espada: sou a luz harmoniosa
Unicamente à força de sonhar...
Mas a vitória fulva esvai-se logo...
E cinzas, cinzas só, em vez de fogo...».
E o poeta chega ao seu enorme vazio interior.
-«Onde existo que não existo em mim?»
É a angústia de despersonalização, maravilhosamente descrita no poema «Quase»:
«Um pouco mais de sol - e fora brasa
Um pouco mais de azul - e fora além
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...»
Oscila entre Narciso grandioso, que não é, mas que o faz sonhar com uma imagem idealizada e grandiosa,
«...O grande sonho despertado em bruma
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...»,
e Narciso depressivo, que também não chega a ser, mas que até desejaria:
«Se ao menos eu permanecesse aquém»...
Antes triste, antes aquém do seu sonho, antes deprimido mas coeso, do que viver na ânsia terrível de não chegar nem a si nem aos outros, fechado em, si, sem conseguir agarrar-se a si próprio, sem conseguir amar, mas:
«Quase o amor».
Não delira nem está iludido:
«Entanto nada foi só ilusão!»
«De tudo houve um começo...e tudo errou...».
E o poeta culpabiliza-se:
«Momentos de alma que desbaratei...
Templos onde nunca pus um altar...».
Temos uma necessidade regressiva de apoio, de sossego:
«Quero dormir...ancorar».
E absoluta consciência de quanto patológica é a sua defesa grandiosa:
«Arranquem-me esta grandeza!
-Pra que me sonha a beleza
Se a não posso transmigrar?...»
Não se sente senhor de si próprio. Só quando se deprime, só na saudade está mais autêntico:
«Perdi-me dentro de mim
Porque eu era um labirinto
E hoje quando me sinto
é com saudades de mim».
(...)
A sua depressão final foi provavelmente desencadeada pelo casamento do pai com uma mulher dos cabarés, e a perda da casa da Praça dos Restauradores, em Lisboa, onde viveu com os pais e a ama. O pai e a madrasta foram para África, e Sá-Carneiro ficou em Paris e lutou com grandes dificuldades económicas. No fim da vida ligou-se a uma rapariga semelhante à madrasta, provavelmente numa tentativa de se identificar com o pai, mas não conseguiu amá-la o suficiente para se prender à vida.
«Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras
Nada a fazer minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou».
Sente-se indefinido, por vezes, não sabe quem é, nem quem é o outro:
«Eu não sou eu nem sou o outro
Sou qualquer coisa de intermédio
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro».
Mas quer sentir, quer possuir e é o vazio, a incapacidade de amar e de sentir-se amado:
«Quero sentir. Não sei...perco-me todo...
Não posso afeiçoar-me nem ser eu
Falta-me egoísmo para ascender ao céu,
Falta-me unção p'ra me afundar no lodo.
Não sou amigo de ninguém...Pra o ser
Forçoso me era possuir
Quem eu estimasse - ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!...
Castrado de alma e sem saber fixar-me,
Tarde a tarde na minha dor me afundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?...».
(...)
O poema «Epígrafe», abre o seu livro Indícios de Ouro que foi publicado em 1937, de facto, vinte e um anos depois da morte do Poeta.
Neste pequeno grande poema, que parece uma Epígrafe para a sua própria vida, Sá-Carneiro toca magistralmente vários aspectos da despersonalização: o vazio interior, a necessidade de espelho anterior para tomar consciência da sua realidade psíquica, a confusão mental, a desorientação no tempo e no espaço, o sentimento de estranheza, a ruína narcísica, a confusão do passado com o presente, o self grandioso, a fragmentação levada ao extremo.
Mário de Sá-Carneiro foi um homem que muito sofreu, e conseguiu uma maneira digna e bela de se queixar, e ao mesmo tempo de suportar o sofrimento até onde lhe foi possível. Ficou, no entanto, aquém de si próprio. Termino com o seu poema Epígrafe:
«A sala do castelo é deserta e espelhada
Tenho medo de Mim. Quem sou? De onde cheguei?...
Aqui tudo já foi...Em sombra estilizada
A cor morreu e até o ar é uma ruina
Vem de Outro tempo a luz que me ilumina
Um som opaco me diluiu em Rei...».
Maria Manuela Brazette, Revista Portuguesa de Psicanálise, nº14,1996