domingo, 4 de novembro de 2012

A propósito da publicação DIÁRIOS de Al Berto pela Assírio & Alvim, Outubro de 2012



«Caminhos nocturnos, incertas travessias»
 
 
Há um tempo angustiado e silencioso na escrita de Al Berto, um tempo inexplicável que precede o desenrolar dos sentidos, tumultuado por «inscrições premonitórias», e marcado por afinidades com o Chronos.
é o tempo em que «chegara o momento de começar a escrever», de distinguir os jogos literários das velhas cicatrizes pintadas», de «saltar as grades das palavras», levantar «os pés do chão» e vogar «pela ânsia do primeiros livro».
É um tempo de «escrita frenética», de esvaziamento desamparado na noite sem fundo. Um tempo feito de um conglomerado de matérias em estado larvar, um tempo em que os homens são animais, em que o próprio escritor meio anfíbio fala com duas barbatanas a saírem-lhe da boca:(...) lentamente movo a cabeça de peixe fluorescente que me habita, é esta a cabeça do escritor, duas barbatanas a saírem-lhe da boca e um vómito no olhar»1
Os indícios desse conglomerado de tempo emergem como «pulsações bruscas, fragmentadas» (M,p.64) usam nomes despertados pelo desejo, são corpos nascidos duma mancha de tinta» (M,p.41), são pedaços do mundo em movimento que «atingem a velocidade da emergência», imagens-pulsão que ressoam o «som alucinante do alarme e da cesariana» (M,p.64). (...)
É o tempo dos diários - uma imagem «primitiva», «embrionária», uma imagem -pulsão, que dá a ver um mundo originário, que advém nesse estado complicado do tempo que cabe desenrolar: « Um projecto assalta-me: Escrever incessantemente para poder deixar de escrever.» (D1982, 27 de Maio); «É noite, eu sei, (...) Não deveria preocupar-me com mais nada que não fosse escrever. Viver plenamente as alegrias e frustações da minha vida de "homem que escreve", com toda a humildade que essa vida tem para mim. Como um grito a noite acende o lado sonolento do coração.» (D1982, 28 de Maio).
(...) O que importa é fazer da vida uma obra de arte, como se literatura e existência estivessem ligadas, unidas no mesmo andamento -«Pessoalmente, não consigo separar a vida da literatura e vice-versa. Está tudo profundamente ligado. Para mim, é assim: tem de haver uma grande coerência na maneira como se escreve, como se vive, como se está no mundo, senão nem a vida nem a poesia fazem qualquer sentido. (...)»2 ou ainda: «Escrever, pelo menos no que me diz respeito, é um projecto que assenta em grande parte, na maneira como estou na vida, na maneira como me vou dimensionando com o que me rodeia.» (D1984, 5 de Fevereiro). (...)


Golgona Anghel



1 Cf. Al Berto, O Medo (M), Lisboa, Assírio&Alvim, 2005, p.28.
2Cf.Jornal de Letras, 23 de Abril 1997, Al Berto: O poeta como viajante» entrevistado por Maria João Martins com Ricardo Araújo Pereira.

Sem comentários: