domingo, 14 de outubro de 2012

Arthur Rimbaud contra a arte

Conservam-se poucos retratos, e os que existem são fantasmais, de Rimbaud adulto, do homem que não tinha nada que ver com a literatura e vivia nas costas da Somália exercendo os mais variados e mal remunerados ofícios.
Talvez seja esta a segunda razão para que se continue a pensar nele quase exclusivamente como no adolescente terrível e rebelde dos seus breves anos de Paris e dos seus meses de Londres.. O abandono da poesia numa idade incerta (digamos que por volta dos vinte anos) fez correr a imaginação insociável de todos os escritores precoces que se lhe seguiram, tentando-os a fazer o mesmo em qualquer ocasião, normalmente, hélàs, em idades mais avançadas: depois dele, todos os escritores precoces foram na realidade tardios.
A razão principal para que Arthur Rimbaud passasse a fazer parte da memória da literatura como criança atroz e prodígio é justamente esse abandono e o carácter misterioso das suas causas. Não era, contudo, a primeira mudança radical na sua vida. É como se Rimbaud se cansasse ao fim de pouco tempo  de ser o que era, coisa que seria poeticamente apoiada pelo seu famoso «je est un autre», que tanta fortuna alcançou na carreira das citações. Passou de criança estudiosa e aluno brilhante a libertino iconoclasta, sem dúvida de relacionamento impossível. Os seus hagiógrafos lamentam  frequentemente a incompreensão com que o mundo literário (boémio ou não) parisiense o tratou, mas para dizer a verdade é fácil de entender que aqueles que podiam ter sido colegas ou companheiros seus se afastassem dele como da peste e em troca lessem comodamente os seus poemas anos depois de o haverem conhecido, como efectivamente faz a posteridade (a posteridade conta sempre com a vantagem de fruir as obras dos escritores sem o incómodo de os suportar a eles). Segundo as descrições da época, Rimbaud nunca mudava de roupa e portanto cheirava mal, deixava as camas por onde passava cheias de piolhos, bebia sem parar (de preferência absinto) e não oferecia aos seus conhecidos senão um tratamento impertinente e afrontoso. (...)


Javier Marías, VIDAS ESCRITAS, Quetzal Editores, Lisboa, 1996.
 

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