domingo, 28 de outubro de 2012

Maurice Blanchot - No extremo dos extremos


 
A arte está a chegar ao fim? A poesia morre por se ter olhado de frente, tal como morre aquele que viu Deus? O crítico que considere o nosso tempo, ao compará-lo ao passado não pode deixar de exprimir uma dúvida e uma admiração desesperada pelos artistas que apesar de tudo continuam a produzir. Mas quando alguém prova, como Wladimir Weidlé num livro rico de cultura, de razão e de lamentos, que a arte moderna é impossível - esta prova é convincente, talvez demasiado lisonjeira -, não estará a realçar a exigência secreta da arte, que é sempre, em todos os artistas, a surpresa do que é ser possível, do que deve começar no extremo dos extremos, obra do fim do mundo,  arte que só  encontra o seu começo aí onde já não há arte e onde faltam as condições da arte? Não se pode ir demasiado longe na dúvida. É o modo, um dos modos de ir mais longe na maravilha do indubitável.
Weidlé escreve:« O erro de Mallarmé» (1), e Gabriel Marcel: « O erro mallarmeano...» Erro evidente. Mas não é evidente, também , que é a este erro que devemos Mallarmé? Todo o artista está ligado a um erro, com o qual mantém uma relação especial de intimidade. Há um erro de Homero, um erro de Shakespeare - que talvez seja, para um e para outro, o facto de não existirem. Toda a arte tem origem numa falha excepcional, toda a obra de arte é a execução dessa falha de origem, de que resultam para nós a ameaça de aproximação da plenitude e uma luz nova. Tratar-se-á de uma concepção própria ao nosso tempo, este tempo em que a arte deixou de ser uma afirmação comum, uma tranquila maravilha colectiva e é tanto mais importante quanto mais impossível? Talvez. Mas como eram as coisas outrora? E que vago outrora é esse, onde tudo nos parece tão fácil, tão seguro? Pelo menos, o que tem a ver connosco é o hoje e, quanto a hoje, podemos afirmar resolutamente: um artista não tem a possibilidade de se enganar demasiado, nem de se ligar demasiado ao seu erro, num contacto grave, solitário, perigoso, insubstituível, onde esbarra, com terror, com delícia, nesse excesso que, nele próprio, o conduz para fora de si e talvez para fora de tudo.


(1) - «O erro de Mallarmé foi querer isolar assim a essência poética e apresentá-la em estado puro, justapondo, sem as soldar profundamente, combinações verbais de insuperável beleza». (Les Abeilles d'Aristée).

O LIVRO POR VIR, Edição Relógio D'Água, Lisboa, 1984.

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