(...) Estou tentada a acreditar que, com o passar da vida, o estilo se aperfeiçoa, se desprende de escórias imitativas, se simplifica e encontra a sua própria inclinação, mas que o fundo permanece, só que enriquecido, ou antes, confirmado pela vida.
A seguir vem a publicação dos meus primeiros ensaios, no estilo de narrativa francesa, muito reservado, moderado, delimitado. É também o período de Alexis. De certa forma, houve uma paragem no meu desenvolvimento pessoal, pelos meus vinte e cinco anos. Queria alinhar-me com a literatura contemporânea, sobretudo a da «narrativa» à Gide ou à Schlumberger, fechar-me numa forma de arte mais literária, mais contida, o que até era uma excelente disciplina.
Seguiu-se uma reacção contra Alexis. Estamos na época de Fogos e do primeiro Denário do Sonho, num estilo mais ornamentado que, efectivamente, pode ter sido influenciado por Barrès, mas também por muitos outros, por Suarés, por exemplo, ou por todos os poetas e pintores barrocos italianos...Depois disso, acho que voltei ao meu caminho, a partir de Adriano.
- O seu pai tinha paixões literárias que poderá ter-lhe legado?
-Ele gostava muito de ler e tinha alguns autores favoritos, mas paixões literárias acho que não. Gostava muito de Shakespeare, por exemplo, e de Ibsen. Lemos Ibsen juntos, quando eu tinha dezasseis ou dezassete anos. Tenho ainda várias peças anotadas por ele: queria ensinar-me a ler em voz alta, e imaginou uma espécie de anotação musical, para marcar os sítios onde deveríamos parar, aqueles em que a voz sobe ou desce. Ibsen ensinou-me muito sobre a independência total do homem, como em Um inimigo do povo, cujo heroi é o único a aperceber-se de que a cidade está poluída. Esses extraordinários escritores do século XIX eram muitas vezes refractários, subversivos, em oposição à sua época e a tudo o que os rodeava, contra toda a mediocridade humana.. Ibsen, Nietzche e Tolstói pertenciam a esse grupo, e foi com o meu pai, de resto, que os li aos três.
Por outro lado, ele não era grande leitor de Balzac. Eu diria mesmo, o que pode parecer bastante arrogante da minha parte, que, em certa medida, fui eu que o levei a ler alguma da literatura francesa do séc.XIX. Fui eu que lhe disse, por exemplo: «Vamos ler A Cartuxa de Parma.»
Líamos muito juntos, em voz alta. Passávamos o livro um ao outro. Eu lia, e quando já estava cansada ele pegava e retomava a leitura. Lia muitíssimo bem, muito melhor do que eu, exteriorizava muito mais.
-E quando é que descobriu Proust?
-Pouco depois da sua morte, devia ter vinte e quatro ou vinte e cinco anos. Mas nesse caso o meu pai já não me seguiria. Tinha aquela recusa da velhice, aquela repugnância em ler obras mais recentes. Para ele, Proust representava o incompreensível. Preferia os russos, que amávamos intensamente. E Selma Lagerlöf, sobre quem eu viria posteriormente a escrever um ensaio, e que continuo a considerar uma escritora de génio.
- E Dostoievski?
-Li-o mais tarde, e admirei-o com uma espécie de estupor, como explicar?, de cortar a respiração por momentos, tão grande aquilo me pareceu. Mas nunca me senti muito influenciada. O seu cristianismo estava - ou parecia-me estar - nos antípodas do que me interessava, ainda que eu tivesse uma admiração emocionada pelo stárets Zóssima. No entanto, nunca reli muito Dostoievski, e também é por esse aspecto que julgamos as influências.
Havia também autores franceses, Saint-Simon, por exemplo. O meu pai gostava sobretudo dos escritores do século XVII. Li quase tudo de Saint-Simon com ele. Tinha a sensação de ali encontrar as massas humanas, de nele ver o grande observador do que se passa e do que passa...Quanto ao seu estilo, é tão grande que, se não o analisarmos enquanto profissionais, nem nos apercebemos de que existe. A sua linguagem é admirável, mas questiono-me sobre se não será apenas agora, ou sobretudo agora, que me inpressiona.
-E os poetas?
-Os poetas? Os do séculoXVII, naturalmente, os renascentistas, e Hugo. Sempre adorei Hugo, apesar de todas as modas contrárias. Reconheço que tem momentos de uma retórica pesada, mas tem outros deslumbrantes e imensos. Os outros poetas, Rimbaud, Apollinaire, chegaram-me mais tarde. Já disse, aliás, no prefácio de Alexis, que me parece frequente um jovem escritor estar preocupado com a sua época, a menos que faça parte integrante de um grupo «em voga» que tenta seguir ou antecipar as modas. Em geral, os jovens alimentam-se da obra deixada pelas gerações precedentes. Isto é surpreendente quando observamos de perto os românticos. Nem é nos seus predecessores imediatos que buscam referências, vão sempre um pouco mais longe.
-No seu caso, quem foram os seus predecessores?
-Talvez Yeats, Swinburne, D'Annunzio. D'Annunzio era muito lido naquela época. Sobretudo os poemas, muitas vezes belíssimos, que eu lia em italiano. Era capaz de distinguir entre os seus romances, que são muito datados, e aqueles poemas que continuam a ser sempre bons, na condição, claro, de passar por cima da poética enfatizada ou da ornamentação barroca, tão irritantes nele como em Barrès.
Quem mais? Péguy? Nunca fui apreciadora de Péguy; não gostava do seu cristianismo agressivo,tal como detestava o de Claudel. Nem um nem outro existiam realmente para mim. Beaudelaire, sim, mas só bem tarde é que lhe tomei o gosto, como conhecedora, como alguém que julga, do ponto de vista do ofício, a perfeição extraordinária do verso baudelairiano. De certo modo, já era demasiado tarde para entusiasmos ingénuos.
No meu caso, entusiasmou-me sobretudo a poesia do século XVII e a poesia renascentista: Racine, La Fontaine (mas menos, pois só muito posteriormente é que senti a beleza rítmica do verso de La Fontaine), os poetas ingleses, sobretudo os metafísicos, que, obviamente, li no original. E depois, entre os italianos, os da Idade Média, os poetas da «Gaia Ciência» e toda aquela escola. Poetas que não estão muito longe de ser metafísicos.
Mas, se quer falar de infuências, seria provavelmente necessário ir buscá-las aos filósofos. Por exemplo, acho que não se pode dar grande destaque à infuência de Niestzche, pelo menos não ao Zaratustra; mas ao Niestzche de A Gaia Ciência sim, de Humano, Demasiado Humano, aquele que tem uma forma particular de considerar as coisas, ao mesmo tempo de muito perto e de muito longe, lúcido, aguçado e simultaneamente quase ligeiro.
-Mas um homem como Schopenhauer, por exemplo, foi importante para si?
-Sim, só que rapidamente se confundiu com a influência do budismo, porque no fundo Schopenhauer representa uma primeira tentativa de introduzir o pensamento budista num país europeu. Mas penso sempre com emoção em Thomas Buddenbrook, de Mann, quando, depois de uma vida convencional e desalentada, descobre em Schopenhauer um sentido para o desespero e talvez a maior forma de paz.
(...)
Relógio D'Água Editores, Junho de 2011, tradução de Renata Correia Botelho.
-Li-o mais tarde, e admirei-o com uma espécie de estupor, como explicar?, de cortar a respiração por momentos, tão grande aquilo me pareceu. Mas nunca me senti muito influenciada. O seu cristianismo estava - ou parecia-me estar - nos antípodas do que me interessava, ainda que eu tivesse uma admiração emocionada pelo stárets Zóssima. No entanto, nunca reli muito Dostoievski, e também é por esse aspecto que julgamos as influências.
Havia também autores franceses, Saint-Simon, por exemplo. O meu pai gostava sobretudo dos escritores do século XVII. Li quase tudo de Saint-Simon com ele. Tinha a sensação de ali encontrar as massas humanas, de nele ver o grande observador do que se passa e do que passa...Quanto ao seu estilo, é tão grande que, se não o analisarmos enquanto profissionais, nem nos apercebemos de que existe. A sua linguagem é admirável, mas questiono-me sobre se não será apenas agora, ou sobretudo agora, que me inpressiona.
-E os poetas?
-Os poetas? Os do séculoXVII, naturalmente, os renascentistas, e Hugo. Sempre adorei Hugo, apesar de todas as modas contrárias. Reconheço que tem momentos de uma retórica pesada, mas tem outros deslumbrantes e imensos. Os outros poetas, Rimbaud, Apollinaire, chegaram-me mais tarde. Já disse, aliás, no prefácio de Alexis, que me parece frequente um jovem escritor estar preocupado com a sua época, a menos que faça parte integrante de um grupo «em voga» que tenta seguir ou antecipar as modas. Em geral, os jovens alimentam-se da obra deixada pelas gerações precedentes. Isto é surpreendente quando observamos de perto os românticos. Nem é nos seus predecessores imediatos que buscam referências, vão sempre um pouco mais longe.
-No seu caso, quem foram os seus predecessores?
-Talvez Yeats, Swinburne, D'Annunzio. D'Annunzio era muito lido naquela época. Sobretudo os poemas, muitas vezes belíssimos, que eu lia em italiano. Era capaz de distinguir entre os seus romances, que são muito datados, e aqueles poemas que continuam a ser sempre bons, na condição, claro, de passar por cima da poética enfatizada ou da ornamentação barroca, tão irritantes nele como em Barrès.
Quem mais? Péguy? Nunca fui apreciadora de Péguy; não gostava do seu cristianismo agressivo,tal como detestava o de Claudel. Nem um nem outro existiam realmente para mim. Beaudelaire, sim, mas só bem tarde é que lhe tomei o gosto, como conhecedora, como alguém que julga, do ponto de vista do ofício, a perfeição extraordinária do verso baudelairiano. De certo modo, já era demasiado tarde para entusiasmos ingénuos.
No meu caso, entusiasmou-me sobretudo a poesia do século XVII e a poesia renascentista: Racine, La Fontaine (mas menos, pois só muito posteriormente é que senti a beleza rítmica do verso de La Fontaine), os poetas ingleses, sobretudo os metafísicos, que, obviamente, li no original. E depois, entre os italianos, os da Idade Média, os poetas da «Gaia Ciência» e toda aquela escola. Poetas que não estão muito longe de ser metafísicos.
Mas, se quer falar de infuências, seria provavelmente necessário ir buscá-las aos filósofos. Por exemplo, acho que não se pode dar grande destaque à infuência de Niestzche, pelo menos não ao Zaratustra; mas ao Niestzche de A Gaia Ciência sim, de Humano, Demasiado Humano, aquele que tem uma forma particular de considerar as coisas, ao mesmo tempo de muito perto e de muito longe, lúcido, aguçado e simultaneamente quase ligeiro.
-Mas um homem como Schopenhauer, por exemplo, foi importante para si?
-Sim, só que rapidamente se confundiu com a influência do budismo, porque no fundo Schopenhauer representa uma primeira tentativa de introduzir o pensamento budista num país europeu. Mas penso sempre com emoção em Thomas Buddenbrook, de Mann, quando, depois de uma vida convencional e desalentada, descobre em Schopenhauer um sentido para o desespero e talvez a maior forma de paz.
(...)
Relógio D'Água Editores, Junho de 2011, tradução de Renata Correia Botelho.
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