quinta-feira, 19 de abril de 2012

Poema de Mário de Sá-Carneiro

O FANTASMA




O que farei na vida - o Emigrado
Astral após que fantasiada guerra
Quando este Oiro por fim cair por terra,
Que ainda é Oiro, embora esverdinhado?


(De que revolta ou que país fadado?)
Pobre lisonja a gaze que me encerra...
Imaginária e pertinaz, desferra
Que fôrça mágica o meu pasmo aguado?


A escada é suspeita e é perigosa:
Alastra-se uma nódoa duvidosa
Pela alcatifa, os corrimões partidos...


Taparam com rodilhas o meu norte,
As formigas cobriram minha sorte,
Morreram-me meninos nos sentidos...


Paris - 21 Janeiro 1916.

domingo, 8 de abril de 2012

A Páscoa e o poema da Sophia que nos fala da "paz sem vencedores nem vencidos"

A PÁSCOA e o poema da Sophia de Mello Breyner Andresen- Boa Páscoa para todos os que visitam este blog.


A paz sem vencedor e sem vencidos

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

sábado, 7 de abril de 2012

Imagens do cinema de Tarkovsky para 2 poemas de Amadeu Baptista

Dois poemas de Amadeu Baptista

FRIDA KAHLO E OS DESENHOS DO MUNDO

Creio que a adolescência tocou o teu rosto
para fazer crescer a perturbação ainda hoje visível no olhar, o modo surpreendente
como os cabelos deslizam para a brancura
são a prova inequívoca do enigma, o vaticínio marca-te no rosto um pouco dessa tristeza avassaladora e ténue de quem atravessa
uma cidade para se perder no instante
de uma fonte, mão que toca a cor imponderável
das coisas para extrair do passado
uma medida de ferro, um fio de oiro,
um pássaro azul. Vejo-te passar nesse navio longínquo que há-de um dia pertencer ao vento, decifro o reflexo de um brilho que te sobe
para os ombros como o frágil ramo
de uma árvore vivaz e suavemente flutua
sobre a transparência para identificar o anjo
que te precede, um pouco após o sinal redutor da inocência e a infinita doçura de quem foi perseguido e arrancou das entranhas
subtílimos silêncios para resistir ao assédio
das pedras, os poderes aniquiladores, o rumo das coisas quando a tempestade triunfou
sobre a tempestade e a memória entregou
o resgate de não haver resgate.
Deste lugar te avisto e avisto o mar,
esta passagem conduz ao indizível encontro com as estrelas, sol e noite, os mínimos percalços que a natureza desoculta das sombras e faz explodir em fragmentos translúcidos
onde se inscreve a mensagem,
uma última notícia do paraíso perdido
em que um traço de luz corresponde
ao augúrio da brisa, a voz secreta que nos une
e separa, a palavra onde o deslumbramento
é um labirinto que pela alucinação
percorremos no incontornável fulgor
de um momento perpétuo.

A NOITE DE PAVESE


Raras vezes me franquearam a porta

e deixaram entrar. A febre

sitia-me a alma e quem me vê

assusta-se do aspecto do meu rosto,

esta barba por fazer onde um rouxinol

se esconde. E mais ainda assusta

a minha altura, este lugar de vertigem

e palavras poderosas, a presença

de ilimitados segredos que ninguém quer conhecer, o estremecimento que corre

nos meus ombros. Embora nada peça, sabem que sou um pedinte. E quando entro nas casas os meus gestos afeiçoam-se a alguma coisa enigmática que contorna o pavor e o entrega

por não se saber que espécie de vida

ou de morte vem comigo. Obviamente, eu abençoo quem me deixa entrar, dou a entender

que alguma coisa brilha nas minhas mãos

e posso matar a fome com uma ou outra palavra próxima do amor, um dedo nos cabelos

de quem me recebe. Subi as escadas que vão dar a esta casa em silêncio e em silêncio aceitei

que me aguardassem com as inefáveis sombras que vejo nos outros e tento decifrar para meu contentamento. Mandaram-me sentar

e deram-me de beber. Esse álcool

reconfortou-me a alma. E a minha gratidão expressa-se deste modo, limpo e nítido, observando a mulher nesse sem fim das coisas, onde todos os mistérios avançam

para uma explicação que a qualquer momento pode irromper do espírito como uma explosão.

Olho-te nos olhos e recebo as duas moedas

que me ofereces, o teu rosto é-me familiar

se recuar à infância e subitamente perceber

que também pertenci ao exercício desta árvore

que nesta sala se levanta. Em frente,

na fotografia que o meu olhar alcança

porque me alcança o olhar que dela

se desprende, inscreve-se o enigma que me fez aqui chegar, mais que um rumor ou um fio ténue com o nome de todas as coisas inesperadas que me aconteceram na vida, sempre que me franquearam a porta e deixaram entrar. Agora, com a memória de ter estado

em tua casa e ter recebido a graça de alguma atenção, eu, que sou pedinte embora nada peça,

entrego-te este sulco da desordem

sobre a página em branco e agradeço-te

com o conhecimento de um outro mundo

ainda mais inexplicável. Não tendo havido despedida, sabe que permaneço

e na encruzilhada das dores que me couberam viver não esquecerei o teu nome no dia

em que também tiver partido

e mais nenhuma luz houver além daquela

que ilumina o teu rosto na solidão da noite.

Os anjos esperam-me. Não me é possível demorar. Que me seja a alba a tua tolerância.