sábado, 23 de agosto de 2014

LORCA, Nova Iorque num poeta, Hiena, 1995.


 Senhoras e senhores:

Quando falo à frente de muitas pessoas parece-me sempre que errei na porta. Mãos amigas empurraram-me, e aqui estou. Metade das pessoas anda perdida entre cenários, árvores pintadas, fontes de lata e, quando julga que encontrou o seu quarto ou um círculo de morno sol, encontra-se com um caimão que o engole ou...com o público, como eu neste momento. E hoje não tenho mais espectáculo além de uma poesia amarga, mas viva, que julgo capaz de abrir os olhos à força de chicotadas que lhe dei.
Eu disse «um poeta em Nova Iorque» e devia dizer «Nova Iorque num poeta». Poeta que sou eu. Claramente e com franqueza: que não tem habilidade nem talento mas consegue fugir por um bisel embaciado deste espelho do dia, às vezes mais depressa do que muitas crianças. Um poeta que aparece nesta sala e quer ter a ilusão de estar no seu quarto, e de que vós...vocês são amigos dele, que não há poesia escrita sem olhos escravos do verso obscuro, nem poesia falada sem orelhas dóceis, orelhas amigas por onde a palavra que brota leva sangue aos lábios ou céu à testa de quem ouve.
De qualquer forma, há que ser claro. Hoje não venho aqui para vos entreter. Nem quero, nem me importa, nem tenho vontade. Melhor dizendo, vim lutar. Lutar corpo a corpo com uma massa tranquila, pois o que vou fazer não é uma conferência, é uma leitura de poesias, carne minha, alegria minha e sentimento meu, e preciso de me defender deste enorme dragão que tenho à frente, que me pode comer com os trezentos bocejos das suas trezentas cabeças defraudadas. E a luta é esta; pois quero veementemente comunicar convosco já que vim, já que estou aqui, já que saio um instante do meu grande silêncio poético e não quero dar-vos mel, porque não o tenho, apenas areia, ou cicuta, ou água salgada. Luta corpo a corpo onde me não importa ser vencido. (...)

 De qualquer modo eu, como homem e como poeta, tenho uma grande capa contra a chuva, a capa do «és tu quem tem culpa», que ponho aos ombros de todo aquele que vier pedir-me explicações, a mim que não posso explicar nada, só balbuciar o fogo que me queima.

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