domingo, 7 de setembro de 2008

AS BONECAS DE HANS BELLMER

O mais fascinante - ou chocante - nas bonecas é a sua composição e alienação com o meio onde se inserem. Algumas têm apenas uma perna, ou quatro pernas e nenhuma cabeça, ou encontram-se penduradas ou intercruzadas entre si. Não existe fronteira no processo de construção narrativa das esculpturas sendo que se gravita entre um desprendimento e castração total do corpo e/ou matéria até uma corporalidade histérica e extremamente assimilativa entre orgãos e membros diversos. A ambivalência sexual destas peças é marcada por uma veia sádica e fetichista. Como se as bonecas funcionassem como um alter-ego de Bellmer no qual são projectadas as suas mais obscuras perversidades.Estes corpos plásticos e fragmentados são também personificações móveis, passíveis, adaptáveis, articuláveis e incompletos. Formas que assumem estados psicosexuais de pura obsessão. Bellmer procurava despertar a inocência da infância. O redescobrir do corpo e da sexualidade. Desde a aparição dos pêlos púbicos, às zonas avermelhadas e rosas e a sua função divertida no corpo de uma criança inconsciente. Este estado naïve das crianças a que ele chamava de "jardim maravilhoso" era um fascinante motivo de estudo e curiosidade. Era também um caso mal resolvido de atracção sexual entre o artista e a prima Ursula de 15 anos. As bonecas foram o resultado criativo dessa sublimação sexual.Ao criar as bonecas Bellmer deu igualmente vida a uma homenagem ao corpo feminino, ainda que distorcido e manipulado, não deixava de levantar questões sobre as diferenças aparentes entre o físico masculino e o feminino.A brutalidade implícita nestas esculturas é evidente. Sugerem maus-tratos, violação ou abuso. A pergunta que perdura é: quem é responsável pela nudez e condição destas bonecas? A coexistência entre o perverso e o banal sugerem um roubo da inocência contida em brinquedos e ambientes infantis, algo que à partida se espera ver puro e imaculado. Livre de violência. Como se o confronto com estas imagens alertasse para a fácil usurpação simbólica da virgindade destes objectos e dos espaços fotografados.Tanto ou mais interessante que as suas bonecas, Hans Bellmer desenvolve uma teoria que procura explicar a anatomia do corpo inconsciente. A constituição humana é naturalmente propicia a que determinadas zonas se encontrem escondidas ou pouco acessíveis, o artista adverte que uma vez pervertendo esta concepção racional e deformando a nossa anatomia original, seria bem passível de se trocar algumas zonas por outras que tivessem a mesma representação simbólica. A zona axilar pela pélvica, por exemplo. Esta transgressão orgânica de zonas erógenas era explicada por Bellmer pela mesma razão que pessoas amputadas sentem um registo e sensação de membros desaparecidos. As imagens dos membros em falta são suprimidas fisicamente, mas a nível psíquico continuam a exercer efeitos activos e psicossomáticos. A comprovação da inseparabilidade entre corpo e mente.Desiludido com o mundo, num lugar onde a transgressão e o imaginário têm lugar, Bellmer teve a capacidade de catapultar as suas criações para além de um universo fantasioso de um mestre Gepeto construindo o seu Pinóquio. As bonecas expõem abertamente um desejo libidinoso contido num estado híbrido que deambula entre o real e o virtual.O que torna ameaçadoras estas criações não é a fragmentação do corpo mas antes o que está escondido no escuro da psique de Bellmer. A realização das suas paixões suprimidas ganham forma e deixam de ser um mapeamento cognitivo passando a ser algo factualmente real - embora inerte - do desejo violento de um homem em trazer a este mundo algo interior e expor esse desejo abertamente. Trata-se dum confronto e identificação do desejo. Um estudo surreal de uma profundidade negra mas patente em cada um de nós. É perturbador, mas ao mesmo tempo familiar. Olhar sobre as bonecas e admitir a sua beleza artística equivale a uma transcendência de bem e de mal, é uma anulação da repressão sexual.Afinal, não serão estas bonecas bem menos ofensivas que qualquer filme porno? Onde está então a violência? Na arte, ou implícita no observador?Este estilo que procura fugir à lógica forçando a livre associação não passa de um apêndice de configuração doente e duvidosa do mundo onde vivemos. De uma erotização degenerada. Não há sangue, tripas, é apenas trágico e dramático. Demasiado real? Objectos inanimados com capacidades ultra-realistas. Mas Bellmer explica-se bem, "se a origem do meu trabalho é um escândalo, é porque, para mim, o mundo é um escândalo."
Texto retirado do blog Absurd Moment

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