FÉLIX GUATTARI
O anti-édipo
CAPITALISMO E ESQUIZOFRENIA
AS MÁQUINAS DESEJANTES
Isto funciona por toda a parte: umas vezes sem parar, outras descontinuamente. Isto respira, isto aquece, isto come. Isto caga, isto fode. Mas que asneira ter dito o isto (*). O que há por toda a parte são mas é máquinas, e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com as suas ligações e conexões. Uma máquina-orgão está ligada a uma máquina-origem: uma emite o fluxo que a outra corta. O seio é uma máquina de produzir leite e a boca uma máquina que se liga com ela. A boca do anoréxico hesita entre uma máquina de comer, uma máquina de falar, uma máquina de respirar (ataque de asma). é assim que todos somos «bricoleurs» (**), cada um com as suas pequenas máquinas. Uma máquina-orgão para uma máquina-energia, e sempre fluxos e cortes. O presidente Schreber tem raios de sol no cu. Ânus solar. E podem ter a certeza que isto funciona. O presidente Schreber sente qualquer coisa, produz alguma coisa, e é capaz de o teorizar. Algo se produz: efeitos de máquinas e não metáforas.
O passeio do esquizofrénico: é um modelo muito melhor que o neurótico deitado no divã. Um pouco de ar livre, uma relação com o exterior. Por exemplo, o passeio de Lenz reconstituído por Büchner. É algo de muito diferente dos momentos em que Lenz (1) está em casa do seu bom pastor que o obriga a tomar uma posição social em relação ao Deus da religião, em relação ao pai e à mãe. Nas montanhas, pelo contrário, sob a neve, ele está com outros deuses ou sem deus nenhum, sem família, sem pai nem mãe, com a natureza. «Que quer o meu pai? É impossível que ele me possa dar algo melhor. Deixem-me em paz». Tudo é máquina. Máquinas celestes, as estrelas ou o arco-íris, máquinas alpestres que se ligam com as do corpo. Barulho ininterrupto de máquinas. «Pensava que devia ser um sentimento de uma infinita beatitude o ser tocado pela vida profunda de qualquer forma, ter uma alma para as pedras, os metais, a água e as plantas, acolher em si todos os objectos da natureza, sonhadoramente, como as flores absorvem o ar com o crescimento e o minguar da lua».(...) Não vive a natureza como natureza, mas como processo de produção. Já não há nem homem nem natureza, mas unicamente um processo que os produz um no outro, e liga as máquinas. Há por todo o lado máquinas produtoras ou desejantes, máquinas esquizofrénicas, toda a vida genérica: eu e não-eu, exterior e interior, já nada querem dizer.
Continuação do passeio do esquizofrénico, quando as personagens de Beckett decidem sair. é preciso ver, em primeiro lugar, como o seu percurso variado é já uma máquina minuciosa. E depois, a bicicleta: que relação há entre a máquina bicicleta-buzina e a máquina mãe-ânus?«Que descanso falar de bicicletas e de buzinas. Infelizmente não é disto que se trata mas daquela que me deu à luz, pelo buraco do cu, se não me engano»(...)
(*) Ça no original. Em francês é possível fazer um jogo polissémico entre o Ça (isto) e o Ça freudiano (id), jogo que é impossível manter em português.
(**)Bricolage, é uma palavra intraduzível em português que designa o aproveitamento de coisas usadas, partidas, ou cuja utilização se modifica adoptando-as a outras funções.
(1) Conforme o texto de Büchner, Lenz, tradução francesa Ed. Fontaine
Gilles Deleuze - Filósofo
Félix Guattari - Psicanalista
O anti-édipo, Capitalismo e Esquizofrenia, edições Assírio & Alvim, 1972, Lisboa
Tradução de : Joana Morais Varela e de: Manuel Maria Carrilho
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