sexta-feira, 10 de abril de 2009

Poema de MANUEL DE FREITAS

LICEU SÁ DA BANDEIRA

Quando somos demasiado novos
e o tapume de sentidos e vontades
nos obriga ao inferno real da escrita,
pouco adianta acrescentar
que esses passos num abismo alheio
não interessavam sequer à ocasional
professora de português que, entre duas
bicas, nos falava do monóculo de Cesário.

Eu confundo tudo - até já de pronome
mudo (e rimo). Na verdade, talvez tenha
amado essa magra professora de liceu
que só me leu (se é que leu) passados
muitos anos. Mas o que importa, neste poema,
é o susto com que chegamos às palavras
que não temos. Enquanto a dor, apenas,
se revela soberana e intransmissível.

Havia o Campos, Sá-Carneiro
-descobertos por acaso na pequena
livraria que em breve terá de sofrer
a sombra do maior centro comercial
de Santarém. Mas depois era o deserto.
E em minha casa apenas se liam
(se é que se liam) sonetos das primas
pelas mesmas editados, tão incertas
em grau quanto em talento.

Não gosto de lhe chamar destino,
mas houve uma espécie de sorte
nesse azar imenso (estar vivo,
numa cidade indizivelmente bronca):
Dois crepúsculos que a penosa biblioteca
do liceu me fez seguir durante meses,
deixando que a cicuta e o assombro
se conformassem a «sons e sentidos»
que não eram, nem poderiam ser, os meus.

Alguns desses nomes viriam talvez
a salvar-me. Não de mim, claro,
mas do esterco mais ou menos consensual
dos que então se tinham por poetas.
Eu não percebia: como pode um poeta
não sofrer? Já disse que confundia tudo:
a biografia e a obra, antes de mais, mas
também, num plano diverso, a clamorosa
insignificância em que me pareciam comungar
os malabaristas de escola, os secos
& institucionais ou os que pelo escárnio
e pela ruptura queriam o mesmo e assinavam.
Provavelmente, não me estava a enganar.

Eram dos que iam realmente às escolas,
o que ajuda a tirar dúvidas (que me desculpe
a Sophia, que também lá foi uma tarde).
E ou viviam disso ou sempre garantiam
férias mais folgadas num paraíso suburbano.
Eu preferia ficar em casa, a ler por exemplo a Florbela.
Quantos poemas dela não passei à máquina...
Esses e os outros, os que escrevia mal e tão bem
fui sabendo deitar fora. Tinha dezassete
anos, vontade de morrer, maus hábitos.

Não sei se o país mudou. Eu não.
Haverá mais estradas, menos lugar
para o corpo e, nas letras, os do costume
foram como se previa substituídos
pelos mais novos do costume. «Já cansa
a cona, caramba». diria o Mário
-que nunca fez exactamente parte deste
horror quotidiano sem reabilitação possível.

Desenganem-se. Há muito pouco a reter
disto a quem um atávico pudor nos impede
de chamar morte. Talvez aquele primeiro
corpo, numa praia a que não voltei
nem voltou a anoitecer assim. Ou o diálogo
perfeito entre uma pavana de Byrd
e o mar de Santa Cruz. A poesia, se quisermos
insistir no termo, começa no corpo
(cf. Herberto Helder) para acabar num livro
- ou em lado nenhum, que é o melhor dos destinos.

Do Liceu Sá da Bandeira até ao fim do mundo.

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