PAULO DA COSTA DOMINGOS
NARRATIVA
NEM ME LEMBRO de ter nascido. Estou aqui desde sempre. Faça-se de conta que nada disto aconteceu. Há quem julgue o imaginário menos cruel que a vida quotidiana. Talvez menos que a memória; mesmo a memória sumária. Abro uma gaveta, uma madeixa de cabelo em caracol, presa de um laço em seda, ilumina-a o Sol. Pedaço de mim. A cédula militar - pedaço de tempo: perdido. Esfacelado, da correria na mata empós de javalis na jovialidade tôla de fardas recrutas obedientes. Dementes horas, absurdos dias, meses de demência febril no Verão Quente. E, súbito: o cachorrito ao colo. A nesga do sol na gaveta confina toda a década de 50. E as de 60 e 70. Décadas de inúteis, e sem prodígio: funcionários de deus-pátria-família. Até à noite dos filhos, que se lhes seguiu - néonnada, mas noite; e ainda não parou. Parece aqueles verões de estâncias de férias para trabalhadores, infindáveis até nos namoros sobre a caruma. Dilacerantes às primeiras chuvas, ao gelo nas hastes desfolhadas, no sagrado coração. 1953 não recordo. Um mês depois de eu chegar, partia António Maria Lisboa. Nesse preciso ano escreveu alguém a ácido nas paredes, no centro nevrálgico do capitalismo, «ne travaillez jamais». Era na época da tortura fascista dissimulada, rosto debaixo do chapéu, olhar encoberto pela aba (hoje, é esta coisa amorfa sem rosto, estes voos sem escala, se tanto cinco minutos, do médico de família). (...)
O universo de um miúdo lisboeta pouco mais se estende além da medida dos seus braços e pernas. O que dá para muito recreio em volta, e proporcionais ralações familiares. Assim era por esses dias; as próteses tecnológicas teorizadas pelo MacLuhan vinham distantes: hoje, está a circum-navegação acessível a qualquer um, qualquer condição de classe, e, faça-se o que se fizer a impedi-lo, em qualquer idade. Indianas, latinas, asiáticas - osso que será virtual -, mas sobretudo delirantes imagens, falsa carne, vieram substituir os velhos índios e soldaditos de plástico. As minúsculas tendas são agora serralhos, e a regra do jogo define-se pela intencional omissão de todas as regras. Ninguém saberá ao certo quanto lhe é permitido ou o quê, excepto nalguns frágeis ditos arcaicos, tabus, ignorando-se se da ordem supersticiosa da religião, se da da higiene ou saúde públicas. (...)
Fragmento do livro NARRATIVA, editado pela FRENESI, Junho 2009, Lisboa
Sem comentários:
Enviar um comentário