Esboço Poético Sobre a Pintura de Graça Martins
por Isabel de Sá
A rapariga idealiza infinitamente, os dedos em fios cinzentos, ondulantes na textura. Gaze, figuras nítidas, olhares claros sob o tempo, frágeis metamorfoses.
Meninos em gaze líquido, adolescentes belíssimos num isolamento algo expectante ou buscando seduzir na sua imobilidade. E toda a gaze é água ou nervura, ou fio de pele. Invisível fio que une corpos e corpos num desespero sem fim, onde tudo parece de uma imensa serenidade.
Figuras sonham de encontro ao abismo, o rosto frio, as pálpebras magoadas, o corpo de mármore. Isoladas, figuras feitas de esqueleto e dúbia concentração, dadas a solicitações interiores, deambulam, fixam-se em posições invulgares, num autismo perfeito. Algumas vivem dias seguidos envolvidas em lençois, como coladas às paredes.
Corpos fragmentados por vozes, ruídos dispersos, uterinos.
Que conivência tão forte os une há tanto cansados. Sob a música clara do esquecimento mãos torcem os próprios ossos. Uma hera germina em limitado espaço e a rapariga aparece em plena claridade; um tempo de infância não esclarecido, o corpo em luminosos vermes ou pequeníssimos farrapos, os cabelos - raízes em direcção à terra.
A rapariga desfaz o retrato, lírios como bichos...
Entre nervura e pólen, corpos intactos respiram luz. Ainda.
Ela vem do exterior, arrasta tumultos, ideias, um frágil ramo de árvore. A vida confusa, dividida.
Aquilo que é interior e nasce involuntariamente. Violetas deixadas em água, o desenho incompleto para sempre inútil.
Dizia: Tenho que organizar. Como um esquema. São fotografias. Catalogar. O tempo. Perco-me. Um pormenor, muitas vezes só um pormenor. Não sei como sair de tantos fios.
O instante poético abre caminhos, a fita de veludo prende uma chave. Máscaras de cal quase gesso de tão pouco móveis. Lábio de carmim. Objectos de infância e de morte.
Debruçava-se sobre a imensa folha - redemoinho impossível. A música. O insecto azul-violeta fixo de encontro à parede. A moldura doirada e negra. Um sinal fúnebre. A asa de veludo em relevos aquáticos; o tom insidiosamente devorado pela luz. A bola de cristal ainda na memória.
Texto publicado no JN, página de Cultura, Fevereiro de 1982
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