terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

NARCISO E SANSÃO - ANÁLISE DO MITO

Narciso e Sansão

Diversos pensadores voltam ao mito de Narciso como um emblema dos valores e atitudes que dominam a sociedade contemporânea.
Na mitologia grega, Narciso era um jovem bonito e vaidoso que rejeitou os avanços das ninfas Eco e Aminia. Aminia, ferida no seu orgulho, amaldiçoou o jovem, desejando que nunca possuísse o objecto do seu amor. Um dia, Narciso curvou-se para beber água de uma fonte. Vendo a sua própria face refletida na água, enamorou-se dela. Narciso foi tão atraído pela sua própria imagem que freqüentemente voltava à fonte para se contemplar. Assim foi ele enfraquecendo até que morreu. Outra versão da lenda conta que, vendo-se na água, procurou abraçar a sua própria imagem e afogou-se na tentativa. Naquele lugar, segundo a lenda, brotou uma nova flor que toma o nome do seu criador infeliz — narciso.
Foi Sigmundo Freud que acrescentou o termo narcisismo ao vocabulário da psicologia para designar amor à própria imagem e a etapa do desenvolvimento na qual a criança faz do próprio eu o objecto principal do seu amor.

Segundo o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-IV) da Associação Psiquiátrica Americana, narcisistas são indivíduos arrogantes e convencidos que têm fantasias magníficas sobre si mesmos. Eles superestimam o seu sucesso, precisam ser constantemente admirados e sempre esperam tratamento preferencial. Os narcisistas estão convencidos de que merecem mais do que recebem. Preocupam-se em ter boa aparência e manter-se jovens. Não são sensíveis às necessidades e aos problemas dos outros. Com pouca tolerância para a crítica, freqüentemente reagem com fúria a ofensas reais ou imaginárias. Tendem a ser do sexo masculino mais do que do feminino.
Em suma, os narcisistas focalizam-se a si mesmos, fascinados com a sua personalidade e o seu corpo, “com um individualismo atroz que carece de valores morais e sociais. O princípio do Hedonismo.
Este individualismo centrado em si procura apenas gratificação própria e prazer. O desejo de bem-estar e de divertir-se eclipsa tudo o mais. Insensibilidade e indiferença dominam a atitude do narcisista para com o resto do mundo e os interesses ou necessidades dos outros. Importantes questões filosóficas, religiosas, econômicas ou políticas despertam uma curiosidade apenas superficial. O que importa é conforto e uma bela aparência, preservar o nível de vida e gratificar o eu. Assim o narcisista vive apenas no presente e não se preocupa com o passado ou o futuro. A filosofia de “faça o que lhe apraz”, “não se preocupe”, “seja feliz” e “divirta-se” torna-se o princípio que lhe governa a vida.

A cultura do narcisismo
A cultura do narcisismo é a celebração da aparência física, o triunfo do espelho e o culto da própria imagem. Milan Kundera, o famoso escritor checo, cunhou o termo “imagologia” para indicar o poder da imagem social imposta por aqueles que determinam a moda e a sua importância em todos os aspectos da vida: a roupa que devíamos vestir, os aparelhos que devíamos usar, a combinação de cores que devíamos preferir em casa, em quem votar e a quem aplaudir num evento desportivo. O termo “imagologia”, diz Kundera, “ajuda a combinar numa palavra aquilo que tem tantos nomes: agências de publicidade, consultores de imagem para políticos, etc. E assim chegamos ao narcisismo pós-moderno: as ideologias estão mortas e a “imagologia” reina.
Componente trágico do narcisismo
A despeito de seu êxito, o narcisismo tem um componente trágico que não pode ser esquecido — a maldição de Aminia: a incapacidade de amar outra pessoa. Os narcisistas estão enamorados do espelho, procurando descobrir a sua própria imagem nos outros. Estão condenados à insatisfação perpétua. A vida para eles é uma experiência absurda que os deixa num vazio interior e os faz sofrer; tal é “a estratégia vazia” do narcisismo. O drama de Narciso, a ausência de sentimento e transcendência, inexoravelmente condena a pessoa à solidão e destruição própria. O mito é implacável e fatal. (...)
Consideremos, por exemplo, a história de Sansão, que pode ser comparada ao mito de Narciso de muitos modos, mas mostra a tragédia do egocentrismo e o triunfo do desprendimento.
A experiência de Sansão com o narcisismo
Sansão foi chamado para libertar o seu povo da submissão a uma potência estrangeira. Deus dotou-o com capacidades e recursos extraordinários, inclusive uma força fora do comum. Sansão, todavia, dedicou a maior parte da sua vida exibindo o espectáculo da sua figura, ostentando com orgulho a sua engenhosidade e músculos poderosos. Procurava egoistamente a satisfação sensual com mulheres de moral duvidosa e ficava terrivelmente frustrado quando não era satisfeito. De certo modo procurava ser um Narciso.
A narrativa bíblica (Livro dos Juízes 13-16) mostra os principais episódios da sua vida: (1) nascimento milagroso com um desígnio; (2) casamento; (3) confrontos com os filisteus; (4) visita à prostituta de Gaza; (5) a traição de Dalila e (6) cativeiro, punição, arrependimento, fé e triunfo na morte.
A história é dramática e cheia de colorido. Um anjo comunica aos pais de Sansão o nascimento milagroso do herói. O mensageiro celeste dá uma série de recomendações dietéticas e educacionais, visto que a criança terá de consagrar-se a Deus. O primeiro acontecimento a desafiar Sansão foi o seu desejo de casar-se com uma mulher filistéia, membro do próprio povo do qual ele devia livrar Israel. Simplesmente disse que a mulher lhe agradava.Os pais fizeram uma objecção inicial, mas afinal cederam. Durante a festa nupcial, Sansão gastou mais tempo tentando chamar a atenção dos convidados para os seus enigmas do que cortejando a sua mulher. Quando o enigma foi revelado, com o auxílio da sua esposa, ele ficou tão violento que matou 30 filisteus a fim de pagar a aposta. Então voltou para casa, esquecendo completamente a esposa. O orgulho ferido era mais forte do que a estima pela sua mulher. Algum tempo depois ele voltou à sua procura, mas era demasiado tarde; ela já se casara com outro homem. De novo, ele sofreu outra ferida “narcísica”, reagindo com violência fora do comum e queimando os campos dos filisteus. Essa agressão incitou os filisteus a atacar os israelitas. Os israelitas convenceram Sansão a entregar-se, e ele foi amarrado e levado aos filisteus. Mas Sansão rompeu as cordas e matou mil homens.
Noutra ocasião, Sansão visitou uma prostituta em Gaza. Os filisteus cercaram a cidade a fim de guardar os portões e capturá-lo. Todavia, à meia noite ele levantou-se e carregou o portão e os seus dois pilares sobre os ombros, levando-os até o topo de uma colina. Então Sansão enamorou-se de outra mulher chamada Dalila, que o traiu quando ele revelou o segredo da sua força. Dalila cortou-lhe o cabelo enquanto ele estava adormecido e o Espírito retirou-se de Sansão. Foi capturado pelos seus inimigos, os seus olhos foram vazados e ele foi atirado para uma prisão e condenado a trabalho forçado. Sob circunstâncias desfavoráveis e difíceis, Sansão caiu em si e arrependeu-se.
Sansão arrepende-se do narcisismo
Sansão mudou a direcção da sua vida executando um acto final verdadeiramente heróico. Os seus captores tinham-no levado a uma festa celebrada no templo dedicado a Dagon. Aí foi exibido como o símbolo altivo do triunfo dos filisteus. Cego e amarrado, Sansão foi feito objecto de ridículo e zombaria. Em sua pessoa, o Deus do universo e Seu povo foram publicamente zombados. Nesse momento crítico, Sansão voltou-se para Deus, pediu perdão pelas suas acções egocêntricas e rogou para que as forças lhe fossem de novo dadas, desta vez para mostrar que Deus é Deus. A sua oração foi atendida. Sansão podia sentir o poder de Deus animando-o. Abraçou os dois pilares centrais do edifício e puxou-os com toda a força até que os derrubou. Assim morreu Sansão e Dalila com 3.000 dos seus inimigos.
Certamente extraordinária e prodigiosa era a sua força, destinada a cumprir uma missão de libertação divinamente ordenada. Ele compreendeu isso no último momento. Em vez de usar a sua força para servir, usara-a para ser “sol”, para se fazer o centro brilhante do espectáculo. É claro que Sansão não era um psicopata ou um gigante de cérebro vazio. Ao contrário, ele era engenhoso, sensível, tinha veia poética e repetidamente escapou das armadilhas dos filisteus . O seu ponto fraco eram as mulheres, mas não era um maníaco sexual. Em vez de ser derrotado por mulheres, Sansão foi derrotado pela sua própria arrogância e narcisismo.
Há um ponto chave nesta história: a questão do olhar. A vista desempenha um papel importante do começo ao fim da vida de Sansão. Enamorou-se da mulher filistéia porque disse: “Ela agrada aos meus olhos”. O mesmo pode ter sucedido com a prostituta de Gaza. Foi por causa disso que os seus inimigos o puniram com a cegueira? Foi esse o ponto decisivo. Somente naquele momento Sansão pôde olhar para dentro e recuperar o sentido da sua vida.
Mário Pereyra, psicólogo clínico, professor universitário na Faculdade de Montemorelos, México

1 comentário:

La Mónica disse...

Muito bom. Parabéns. Vou levar emprestado.