sábado, 7 de agosto de 2010

VERDADE

Onde há a palavra, há a verdade. A palavra é usada para conversar e sem verdade não há conversa. Usa-se a palavra para conversar sobre afectos, realidades, crenças, pensamentos, medos, desejos,memórias, futuros e tudo o mais. Sem a verdade, a conversa seria uma mera manifestação de subjectividades solipsistas e imunes ao erro, discursos paralelos sem triangulação possível entre si e a realidade. (...)
A verdade pode fazer-nos infelizes, mas nem por isso desprezar a verdade é o caminho para a felicidade. Quem desprezar a verdade na sua vida emocional e afectiva fica reduzido a viver uma mentira. Se António amar verdadeiramente Cleópatra, não poderá considerar irrelevante a questão de saber se Cleópatra também o ama ou se está apenas a manipulá-lo para obter os seus fins políticos. Desprezar a verdade é perder a conexão com a realidade, concebendo-se a felicidade como um estado meramente subjectivo e solipsista. Deste ponto de vista, é irrelevante para António que Cleópatra o atraiçoe, desde que ele nunca venha a descobrir. Esta noção solipsista de felicidade é ilusória. A felicidade não é um estado mental autónomo e meramente subjectivo, indiferente à realidade, porque é um produto da própria actividade que nos conecta com a realidade: o pensamento sofisticado e complexo. Perder a conexão da felicidade com a realidade é fazer da felicidade uma ilusão.
O egocentrismo é talvez a mentira mais comum da humanidade, e seguramente a mais tentadora. O egocentrismo é a prática - mais do que a ideia - de encarar o eu como o ponto centrípeto em torno do qual todo o universo revolve. A incapacidade para nos vermos exactamente como somos - um entre outros - é uma incapacidade para ver a verdade. Ironicamente, a felicidade torna-se impossível quando o egocentrismo se instala. Porque é realmente falso que cada um de nós é o ponto centrípeto em torno do qual todo o universo revolve - este pensamento é uma contradição lógica -, o egocentrismo implica uma luta perdida à partida contra a realidade e a verdade. É assim que a figura do génio romântico, atormentado e egocêntrico, é simultaneamente a figura de alguém que é infeliz porque se recusa a ver-se como verdadeiramente é e a querer-se como verdadeiramente pode ser. (...)
Desidério Murcho
a minha palavra favorita, Edição Jorge Reis-Sá, Centro Atlântico, 2007

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