sexta-feira, 15 de abril de 2011

Poema de Margarida Vale de Gato

Intercidades


galopamos pelas costas dos montes no interior

da terra a comer eucaliptos a comer os entulhos de feno

a cuspir o vento a cuspir o tempo a cuspir o tempo

o tempo que os comboios do sentido contrário engolem

do sentido contrário roubam-nos o tempo meu amor


preciso de ti que vens voando

até mim

mas voas à vela sobre o mar

e tens espaço asas por isso vogas à deriva enquanto eu

vou rastejando ao teu encontro sobre os carris faiscando

ocasionalmente e escrevo para ti meu amor

a enganar a tua ausência a claustrofobia de cortinas

cor de mostarda tu caminhas sobre a água e agora

eu sei

as palavras valem menos do que os barcos


preciso de ti meu amor nesta solidão neste desamparo

de cortinas espessas que impedem o sol que me impedem

de voar e ainda assim do outro lado

o céu exibe nuvens pequeninas carneirinhos a trotar

a trotar sobre searas de aveia e trigais aqui não há

comemos eucaliptos eucaliptos e igrejas caiadas

debruçadas sobre os apeadeiros igrejas caiadas meu amor

eu fumo um cigarro entre duas paragens leio

o Lobo Antunes e penso as pessoas são tristes as

as pessoas são tão tristes as pessoas são patéticas meu

amor ainda bem que tu me escondes do mundo me escondes

dos sorrisos condescendentes do mundo da comiseração

do mundo

à noite no teu corpo meu amor eu

também sou um barco sentada sobre o teu ventre

sou um mastro


preciso de ti meu amor estou cansada dói-me

em volta dos olhos tenho vontade de chorar mesmo assim

desejo-te mas antes antes de me tocares de dizeres quero-te

meu amor hás-de deixar-me dormir cem anos

depois de cem anos voltaremos a ser barcos

eu estou só

Portugal nunca mais acaba comemos eucaliptos

eucaliptos intermináveis longos e verdes

comemos eucaliptos entremeados de arbustos

comemos eucaliptos a dor da tua ausência meu amor

comemos este calor e os caminhos de ferro e a angústia

a deflagrar combustão no livro do Lobo Antunes

comemos eucaliptos e Portugal nunca mais acaba Portugal

é enorme eu preciso de ti e em sentido contrário roubam-nos

o tempo roubam-nos o tempo meu amor tempo

o tempo para sermos barcos e atravessar paredes dentro dos quartos

meu amor para sermos barcos à noite à noite

a soprar docemente sobre as velas acesas


barcos.



Edição Mariposa Azual, 2010, Lisboa

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