Se o leitor tiver à mão as fotografias de Woolf, em jovem e no fim da sua vida ( a que lhe foi tirada por Man Ray), coloque-as lado a lado, porque elas são imagens de um percurso singular e de um dos mais significativos combates espirituais do nosso século. Na primeira, é Virgínia que chama pelo lobo como as lendas célticas nos ensinaram a imaginar: o olhar virgem e fulgurante, o lobo altivo e submisso. Na outra, vê-se o lobo cansado, disposto a morrer pelo último combate de Virgínia.
No dia 28 de Março de 1941, encheu de pedras os bolsos do vestido, conscienciosa e metodicamente; entrou na ribeira Ouse, que corria da parte de baixo da sua casa de campo The Monk's House, onde ela e o marido passavam largos períodos, desde 1919; entrou com 59 anos nessa ribeira que, hoje, serve de esgotos a um dos subúrbios de Londres, e dela não voltou a sair, fazendo assim entrar, no imaginário culto do Ocidente Moderno, o fim de um grande escritor que, em vida e sexo, foi mulher. E que mulher!
Antes de o fazer, deixou escrita ao marido esta carta:
«Querido,
Tenho a dizer-lhe que me deu uma perfeita felicidade.
Ninguém faria mais do que você fez. Peço-lhe, por favor, que acredite.
Mas eu sei que nunca serei capaz de ultrapassar esta situação - e estrago-lhe a vida. É esta loucura. Nada do que me puderem dizer me convencerá do contrário. Sem mim, você poderá trabalhar e ficará melhor. Está a ver, nem sequer consigo escrever a palavra "eu", o que só prova como tenho razão Tudo o quetenho a dizer é que, até esta doença aparecer, nós éramos perfeitamente felizes. E isso deve-se inteiramente a si. Ninguém poderia ter feito mais e melhor do que você, do primeiro ao último dia. Toda a gente o sabe."
Quando escreveu esta carta, Virginia Woolf tinha entrado, há pouco mais de um ano, em depressão profunda: a última da série de depressões por que passou, em quase 60 anos de vida.
Importa pouco saber as causas das suas depressões. O que interessa são as sequelas que foram deixando, os grandes e os pequenos embates que não destruíam mas enfraqueciam, a fragilidade que, por dentro, introduziam: o sentimento de que todas as crises se reuniam numa só fatalidade, que era a de a sentir sempre mais forte e, finalmente invencível. Este é o sentimento fundamental de Virgínia Woolf: o ter por dentro, constantemente, um inimigo e um intruso, de que não se vê o rosto. O estar à mercê. Viver na mira de um caçador implacável.
Experimentem!
Disse-o mais tarde a Ethel Smith:"O meu terror da vida real manteve-me sempre enclausurada. (...) Como experiência, a loucura é aterradora, posso garantir-lho, não pode ser subestimada; e é na sua lava que eu encontro ainda quase tudo sobre o que escrevo. Tudo brota de si, já formado, completo, não a conta-gotas como acontece com os cérebros normais. E nos seis meses - e não três -, que estive de cama, aprendi muito sobre o que se chama o "eu". Depois dessa experiência, sentia-me perfeitamente incapaz de mexer, nem que fosse um pé, aterrorizada. (...)"
A depressão, que provavelmente tem uma origem orgânica, e que parece manifestar-se quando o sujeito não consegue realizar o seu luto, por um objecto de amor, irremediavelmente perdido, provoca uma dor moral extremamente viva, dores físicas que se passeiam pelo corpo, perturbações digestivas, falta de apetite, insónias, sono agitado, uma auto-desvalorização intensa, uma incontrolável deformação da realidade própria, que em nada interfere com a lucidez com que se olha a realidade exterior, e uma auto-negação que, nos casos de melancolia profunda, induz comportamentos suicidários. Antes de abordar essas paragens, o depressivo vê abrandarem-se as suas capacidades intelectuais, e passa por penosos saltos de humor que o tornam dificilmente suportável aos olhos dos que o rodeiam.
Virgínia Woolf conheceu esse estado, aos 13 anos, aos 22 anos, aos 31 anos e, pela última vez, aos 59 anos.
Este, o inimigo invisivel que decidiu combater. Como personalidade construida em torno de uma férrea vontade mental, com gostos acentuados e firmes, mas sem um corpo onde (e com que) se ancorar na realidade,o seu combate consistiu na procura deste estar à mercê, e como encontrar um abrigo onde o mal a não pudesse encontrar. Um abrigo feito de solidão e de silêncio, sólido sem ser rígido, inteligente mas não cínico, questionante mas não céptico, diáfano sem ser crédulo, nem beato. Um estado que se encontraria algures entre os "meios hábeis" do zen, a fé tomista como a viu Maritain, o conhecimento do quarto tipo de Espinoza.
A avis rara, até hoje procurada e não encontrada pela intelectualidade ocidental. Não se deve esquecer que Pessoa e Joyce, contemporâneos de Virgínia, viveram estados relativamente próximos.
Essa procura encontrou, no estado das relações entre os homens e as mulheres, o seu primeiro paradigma; estendeu-se à análise das relações entre a intimidade própria e o mundo móvel e hostil, raramente acolhedor; alargou-se em tentativas várias de criação de um estilo de vida permanente e próprio, na vivência de afectos intensos, livres e não hipócritas; para, finalmente, vir a encontrar a sua maturidade na indagação estética e na elaboração de uma prática artística que revolucionasse as técnicas narrativas.
Cartas íntimas a Vita Sackeville- West, Colares Editora
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