domingo, 30 de outubro de 2011

Discurso do Método




Quando era criança já procurava as janelas

para poder fugir ao espreitar.

Desde então, quando entro em algum lugar,

presto atenção ao sítio onde deixo o casaco

e onde está a porta de saída.

Liberdade, para mim, quer dizer fuga.

Há muitas portas no mundo.

Até o sexo, em caso de emergência,

pode ser, apesar de muitas estarem a fechar

e, para fugir, brevemente só irão ficar

apenas as janelas da infância.

De par em par abertas para poder saltar.




Joan Margarit


«Discurso del Método», em Cálculo de estructuras, tradução do catalão de Joan Margarit, Madrid: Visor Libros, Colecção Visor de Poesia, 2ª edição, 2008, p. 109

sábado, 29 de outubro de 2011

SINTO


Sinto
que em minhas veias arde
sangue,
chama vermelha que vai cozendo
minhas paixões no coração.

Mulheres, por favor,
derramai água:
quando tudo se queima,
só as fagulhas voam
ao vento.



Federico García Lorca, in 'Poemas Esparsos'
Tradução de Oscar Mendes

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Pintura de Luís Melo

PRISIONEIRO DE MIM?


Por dentro do crânio
cresciam larvas. A agonia
escondia-se.
Cordas prendiam-me as pernas.


Era assim
a minha imagem
nas suas mentiras.


Enforcada, a dor
continua pendurada em mim.
Digo palavras sem nexo.
Fogem os versos dos papeis
e o coração incinerado.




João Borges

AS SOMBRAS DE UM CORPO SÓ, Lisboa, 2011

"Não posso adiar o amor para outro século"











[Não posso adiar o amor para outro século]

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio
não posso adiar
ainda que a noite pese século sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

não posso adiar o coração

[António Ramos Rosa, Faro, 1924]

In Maria Alzira Seixo, Os poemas da minha vida, Público, Lisboa, 2005




O nº4 da revista Cultura ENTRE Culturas é dedicado a António Ramos Rosa e será lançado amanhã, dia 25 de Outubro, às 18.30, numa homenagem em que o poeta estará presente: Residência Faria Mantero, Praça de Dio, n.º 3, em Lisboa. Este número tem o tema "Poesia e Filosofia", dedicando ao poeta um caderno de 60 páginas com muitos textos e desenhos inéditos do Poeta, além de estudos e testemunhos sobre a sua obra, da autoria de vários especialistas e amigos. O lançamento constitui uma Homenagem ao Poeta, no seu 87º Aniversário. A apresentação será feita por Maria Teresa Dias Furtado (Universidade de Lisboa) e António Cândido Franco (Universidade de Évora).

40 ANOS!!!! E tanta coisa por fazer...

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Desenhos de João Borges

SERÁ NO PRÓXIMO SÉCULO?

O nosso amor arrasou cidades. Éramos
muito jovens e pensávamos assim.
O mundo pertencia-nos. Ninguém
percebia mas nós viviamos contra
tudo - era um acto político.

Assim alguns seres no mundo
construíram vidas, amaram
e sofreram isolados, por vezes
espoliados, queimados na fogueira.

Mas o nosso amor resistirá
às fronteiras, aos muros de fogo
e à injustiça. Gostaríamos de viver
o tempo da verdadeira transformação,
da felicidade universal.


Isabel de Sá

REPETIR O POEMA, Edições Quasi, 2005

Desenho de João Borges

Só o lume dos teus beijos rompe
a treva onde a solidão nos mata.
Enrolamos a vida no escuro,
na semente de um amor atribulado.

Conhecemos o ritmo e a sede,
a convulsão do desamparo.
No sentido do corpo, no acerto
desce a força pelos braços
na violenta festa do prazer.

Tudo o que disseste
no desaforo da paixão
só podia incendiar a vida inteira
e encher de esperança o universo.


Isabel de Sá

REPETIR O POEMA, Edições Quasi, 2005

domingo, 23 de outubro de 2011

A PASSAGEM de ALICE pelo Séc. XXI...

«The past is a foreign country; they do things differently there.» Leslie Poles Hartley

ILUSTRAÇÕES para ALICE de JOHN TENNIEL


Falar de ALICE é falar do famoso ilustrador JOHN TENNIEL...

Falar de ALICE é falar de LEWIS CARROL...

O FILME RECENTE

ALICE É ÚNICA.

ALICE É ÚNICA. (Helena Vasconcelos - A Infância É Um Território Desconhecido)

(...) Alice é única. Não existe nenhuma personagem da História da Literatura que lhe chegue aos calcanhares. É a primeira heroína criança. É engraçada. É curiosa. É valente. É emotiva. Tem um apurado sentido da justiça. É esperta. É sentimental, É lógica. É rapariga. O seu contraponto masculino - e contemporâneo - é, sem dúvida Peter Pan. Mas as diferenças entre eles ultrapassam a mera questão de género. Alice, mesmo no País das Maravilhas é uma pessoa bastante real; Peter Pan, num universo quase «real» é apenas uma espécie de elfo; Alice é corajosa porque pensa; Peter Pan é corajoso porque não pensa. (...)

Helena Vasconcelos - Um livro fundamental!

A Infância É Um Território Desconhecido - HELENA VASCONCELOS






















(...) Convenhamos que o Deus das Moscas é uma narrativa muito desagradável; e muito bem escrita, o que potencia grandemente o seu impacto. Golding insinua - ou antes, afirma - que a perda de inocência não está directamente relacionada com a idade, mas tem, isso sim, uma correlação estreita com o momento em que se abarca a verdadeira dimensão da natureza humana.
O facto de Golding ter escolhido rapazes, alguns bem pequenos, para protagonizarem uma história tão terrível choca mais porque, à partida, pensamos sempre que as crianças são naturalmente «boas». Para além disso, a feroz alegoria de Golding pode aproximar-se da de George Orwell em Animal Farm (O Triunfo dos Porcos), que data de 1945 e é uma crítica feroz aos totalitarismos, sejam de esquerda ou de direita. No caso de Golding poder-se-á dizer que o Deus das Moscas, numa perspectiva política, é uma crítica à anarquia, mas este livro tem um carácter mais filosófico que o de Orwell, que é possível que Golding tenha lido. Poderia também considerar-se que Goldingquis dizer que as pessoas que se entregam à barbarie não estão desenvolvidas psicologicamente, não têm a maturidade dos adultos, supostamente responsáveis, como o incrédulo oficial da Marinha, no final do livro. Pela mesma lógica, a guerra, a violência, o confronto não civilizado seriam apanágio da imaturidade humana. (...)

a tua biblioteca

Dois poemas de INÊS LEITÃO



Da pertença

A tua biblioteca com os olhos postos em mim desde que entrei na tua sala, os teus livros a dizerem entre si que nunca me tinham visto

(quem é aquela?)

a prenderem a respiração ao meu toque como se tu fosses o seu único digno proprietário e eu
(uma pequena invasora)
uma pequena invasora que os agarra docemente com as ponta dos dedos
à laia de carícia; alguém feito de carne, pele, ossos e unhas que lhes abre as folhas para os saber por dentro.





Do Martírio

Explicar ao meu corpo que se podia acalmar e que sobreviveria sem ti se um dia o teu quarto cor de fruta desaparecesse da nossa frente para sempre e os teus olhos nunca tivessem existido
(o medo dos teus olhos a questionarem os meus)

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Os Objectos Herdados

Sim, as coisas são o veículo de conhecimento, à medida que se dispõem experimentam o nosso pensamento e submetem à prova a nossa maneira de agir; disponho-as de certa maneira e já outras percepções surgem, mudo-as de lugar, estabeleço entre elas outras recíprocas relações, e já novos seres estão presentes e começam a exprimir-se (a mim) para que eu não os abandone, ou descreva, os mantenha, os reforce na sua realidade nascente; quando tudo por mim for abandonando (penso na morte), haverá objectos que, em outras casas que os herdaram, chamarão alguém a seu destino.

Maria Gabriela Llansol, Finita.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Pintura de Luís Melo

A propósito da relação de Fernando Pessoa com Ofélia

«Agradeço a sua carta. Ela trouxe-me pena e alívio ao mesmo tempo.
Pena, porque estas coisas fazem sempre pena; alívio, porque, na verdade, a única solução é essa - o não prolongarmos mais uma situação que não tem já justificação do amor, nem de uma parte nem de outra.»

Ter Ofélia enquanto mulher, com corpo, desejo e sexo, implicaria outro nível de intimidade, que Pessoa parecia temer, como referido. Aliás, a infantilidade que caracteriza a vida amorosa do poeta só poderia ser preservada mantendo Ofélia como um «bebé» - banindo o erotismo (evitamento que poderia durar mais quanto tempo?) - e prosseguindo o amor que os unia como maternal. Assim, nessa mesma carta de despedida, Pessoa sugere:

«Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infância, que se amaram um pouco como meninos, e (...) conservam sempre, num escaninho da alma, a memória profunda do seu amor antigo e inútil.»

Foi assim que o Super-Camões viu - ou pretendeu ver - o seu relacionamento com Ofélia. Como um «amor de meninos». « Inútil». Sem sexo. Inconsequente e desresponsabilizante, já que o amor adulto pressupõe reciprocidade.

Maníacos de Qualidade, Joana Amaral Dias, editora A Esfera dos Livros, Lisboa, 2010

Pintura de Luís Melo

Fragmento do romance A MORTE EM VENEZA de THOMAS MANN

(...) Não existe nada de mais estranho e espinhoso do que a relação entre pessoas que só se conhecem de vista - que diáriamente, mesmo hora a hora, se encontram, se observam e que têm assim de manter, sem cumprimentos e sem palavras, a aparência de desconhecimento indiferente, devido ao rigor dos costumes ou a caprichos pessoais. Entre elas existe inquietação e curiosidade exacerbada, a histeria da necessidade insatisfeita, anormalmente recalcada, de conhecimento e comunicação e sobretudo também uma forma de consideração tensa. Pois o ser humano ama e respeita o outro ser humano enquanto não está em posição de o julgar e o desejo é produto de um conhecimento insuficiente.
Necessariamente. (...)
Porque a beleza, Fedro, repara bem, só a beleza é divina e simultaneamente visível, e por isso ela é também caminho do artista para o espírito. Mas diz-me agora, meu querido amigo, acreditas que se pode atingir alguma vez a sabedoria e verdadeiro valor viril quando se caminha para o espiritual por via dos sentidos? Ou acreditas antes (e és livre de o decidir) que esse caminho é cheio de atraentes perigos, na realidade um caminho de desacerto e pecado, que conduz necessariamente ao erro? Pois tens de saber que nós, poetas, não podemos embarcar no caminho da beleza sem que Eros nos acompanhe e se arvore em líder; podemos bem ser herois à nossa maneira e guerreiros disciplinados, mas não deixamos de ser como as mulheres, pois a paixão é para nós sublimação e o nosso desejo deve permanecer amor - é esse o nosso prazer, é essa a nossa vergonha. Vês agora que nós, os poetas, não podemos ser sábios nem dignos? Que embarcamos necessariamente no erro, permanecemos necessariamente devassos e aventureiros do sentimento? A mestria do nosso estilo é mentira e logro, a nossa fama e respeitabilidade, uma farsa, a confiança da multidão em nós, altamente risível, a educação do povo e da juventude pela arte, um empreendimento ousado, a interdizer. Pois como podia prestar para educador aquele que possui uma tendência inata, incorrigível e natural para o abismo?

segunda-feira, 10 de outubro de 2011