Cartas a S.
(carta nº1946)
Há uma liberdade na escrita da qual nunca te falei. É um composto. Como se num frasco, o mundo inteiro repousasse.
Mas não vamos falar disso hoje.
O T. hoje faz anos. Ias gostar de nos ver. Vamos ter uma festa, balões, bolos, cores, miúdos da idade dele a correr. Ele não sabe. Pensa que é só na escola.
Vamos ter fotografias parvas. Como nós no nosso tempo. Quando deitados no escritório, no quarto.
No tempo em que tu tinhas uma asa
(não um braço)
uma asa
tu tinhas uma asa e eu era qualquer coisa que essa asa arrastava para si e chamava de seu.
Ontem.
Falávamos da tua nova pequena família e eu invejei-te. Veio-me da ponta dos dedos. Perdoa-me. Vou cortá-los. Vou cortá-los ao dez porque ando perdida e os meus dedos não sabem reconhecer pessoas, nem mapas, nem casas, nem estradas, nem florestas assassinas ou territórios sagrados.
Os meus dedos nunca perceberam nada.
Inês Leitão
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