segunda-feira, 30 de janeiro de 2012
Antero de Quental - Vivo na morte (Maníacos de Qualidade - Joana Amaral Dias
"Falei de Rainer Maria Rilke. É curioso que Lou Andreas-Salomé, que seria sua amante, diria, a propósito da sua relação: «Todos os homens, não importa quando os conheci, sempre parecem esconder um irmão. Realmente, também a obra de Rilke está marcada pela presença da ausência e até, em determinados momentos, como em Requiem, o poeta parece advertir sobre a necessidade da morte não ficar a rondar...como ficou, no eixo da sua própria vida.
Teriam os meus pais projectado sobre mim o receio de uma morte prematura? Viveria com a responsabilidade de realizar a vida de outro? Teria existido acompanhado sempre por esse fantasma de um gémeo enterrado? Certo é que, quando nasci, era um bebé do sexo masculino como o meu irmão morto e, consequentemente, recebi o seu nome.
Ah, mas já volveram tantos anos. E assim, a esta distância, não deixa de ser irónico que tenha sobrevivido ao primeiro tiro. Foram precisas duas balas para me matar, como se, em mim, fôssemos dois. Por fim, ainda agonizei já depois do segundo disparo. Eu, que tinha vivido morto, estava vivo na minha própria morte..."
Maníacos de Qualidade, Portugueses Célebres na Consulta com uma Psicóloga, editado pela Esfera do Livro, 2010.
Maníacos de Qualidade, Portugueses Célebres na Consulta com uma Psicóloga, editado pela Esfera do Livro, 2010.
terça-feira, 24 de janeiro de 2012
Muriel
Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas a dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos
junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido
Ruy Belo
Obra Poética, Volume 2, Editorial Presença, organização e posfácio de Joaquim Manuel Magalhães, 1981.
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas a dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos
junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido
Ruy Belo
Obra Poética, Volume 2, Editorial Presença, organização e posfácio de Joaquim Manuel Magalhães, 1981.
segunda-feira, 23 de janeiro de 2012
"Somente pela arte podemos sair...de nós mesmos"
Somente pela arte podemos sair de... nós mesmos, saber o que um outro vê desse universo que não é o mesmo que o nosso e cujas paisagens permaneceriam tão desconhecidas para nós quanto as que podem existir na lua. Graças à arte, em vez de ver um único mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se, e quantos artistas originais existem tantos mundos teremos à nossa disposição, mais diferentes uns dos outros do que aqueles que rolam no infinito e, muitos séculos após se ter extinguido o foco do qual emanavam, fossem eles Rembrandt ou Vermeer, ainda nos enviam o seu raio especial.
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido.
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido.
O José Luís Peixoto é famoso porque sabe falar da vida...e cria EMPATIA!!!!
Amor burguês
Havemos de engordar juntos.
Normalmente, toda a gente está demasiado preocupada em colocar a barra que diz "cliente seguinte", estão ansiosos, nervosos, têm medo que aquele que está à frente lhes leve os iogurtes, têm medo de pagar o fiambre daquele que está atrás. Enquanto não marcam essa divisão, não descansam. Depois, não descansam também, inventam outras maneiras de distrair-se. É por isso que poucos chegam a aperceber-se de que a verdadeira imagem do amor acontece na caixa do supermercado, naqueles minutos em que um está a pôr as compras no tapete rolante e, na outra ponta, o outro está a guardá-las nos sacos.
As canções e os poemas ignoram isto. Repetem campos, montanhas, praias, falésias, jardins, love, love, love, mas esse momento específico, na caixa do supermercado, tão justo e tão certo, é ignorado ostensivamente por todos os cantores e poetas românticos do mundo. Bem sei que há a crueza das lâmpadas fluorescentes, há o barulho das caixas registadoras, pim-pim-pim, há o barulho das moedas a caírem nas gavetas de plástico, há a musiquinha e os altifalantes: responsável da secção de produtos sazonais à caixa 12, responsável da secção de produtos sazonais à caixa 12; mas tudo isso, à volta, num plano secundário, só deveria servir para elevar mais ainda a grandeza nuclear desse momento.
É muito fácil confundir o banal com o precioso quando surgem simultâneos e quase sobrepostos. Essa é uma das mil razões que confirma a necessidade da experiência. Viver é muito diferente de ver viver. Ou seja, quando se está ao longe e se vê um casal na caixa do supermercado a dividir tarefas, há a possibilidade de se ser snob, crítico literário; quando se é parte desse casal, essa possibilidade não existe. Pelas mãos passam-nos as compras que escolhemos uma a uma e os instantes futuros que imaginámos durante essa escolha: quando estivermos a jantar, a tomar o pequeno-almoço, quando estivermos a pôr roupa suja na máquina, quando a outra pessoa estiver a lavar os dentes ou quando estivermos a lavar os dentes juntos, reflectidos pelo mesmo espelho, com a boca cheia de pasta de dentes, a comunicar por palavras de sílabas imperfeitas, como se tivéssemos uma deficiência na fala.
Ter alguém que saiba o pin do nosso cartão multibanco é um descanso na alma. Essa tranquilidade faz falta, abranda a velocidade do tempo para o nosso ritmo pessoal. É incompreensível que ninguém a cante.
As canções e os poemas ignoram tanto acerca do amor. Como se explica, por exemplo, que não falem dos serões a ver televisão no sofá? Não há explicação. O amor também é estar no sofá, tapados pela mesma manta, a ver séries más ou filmes maus. Talvez chova lá fora, talvez faça frio, não importa. O sofá é quentinho e fica mesmo à frente de um aparelho onde passam as séries e os filmes mais parvos que já se fizeram. Daqui a pouco começam as televendas, também servem.
Havemos de engordar juntos.
Estas situações de amor tornam-se claras, quase evidentes, depois de serem perdidas. Quando se teve e se perdeu, a falta de amor é atravessar sozinho os corredores do supermercado: um pão, um pacote de leite, uma embalagem de comida para aquecer no micro-ondas. Não é preciso carro ou cesto, não se justifica, carregam-se as compras nos braços. Depois, como não há vontade de voltar para a casa onde ninguém espera, procura-se durante muito tempo qualquer coisa que não se sabe o que é. Pelo caminho, vai-se comprando e chega-se à fila da caixa a equilibrar uma torre de formas aleatórias.
Quando se teve e se perdeu, a falta de amor é estar sozinho no sofá a mudar constantemente de canal, a ver cenas soltas de séries e filmes e, logo a seguir, a mudar de canal por não ter com quem comentá-las. Ou, pior ainda, é andar ao frio, atravessar a chuva, apenas porque se quer fugir daquele sofá.
E os amigos, quando sabem, não se surpreendem. Reagem como se soubessem desde sempre que tudo ia acabar assim. Ofendem a nossa memória.
Nós acreditávamos.
Havemos de engordar juntos, esse era o nosso sonho. Há alguns anos, depois de perder um sonho assim, pensaria que me restava continuar magro. Agora, neste tempo, acredito que me resta engordar sozinho.
José Luís Peixoto, in revista Visão (Janeiro, 2012)
sábado, 14 de janeiro de 2012
OLMO
Para a Ruth Fainligth
Conheço o fundo, diz ela. Cheguei lá com a minha raiz maior:
É disso que tu tens medo.
Mas eu não tenho medo: já lá estive.
É o mar o que ouves em mim,
As suas insatisfações?
Ou a voz do nada que era a tua loucura?
O amor é uma sombra.
Como ficas prostrada e chorosa depois
Escuta: são os cascos dele: desapareceu como um cavalo.
Toda a noite vou galopar, assim, impetuosamente,
Até que a tua cabeça fique uma pedra e a tua almofada um pequeno monte de turfa,
Fazendo eco, fazendo eco.
Ou deverei eu trazer-te um som de venenos?
Agora é a chuva, este quase silêncio.
E este é o seu fruto: da cor metálica do arsénico.
Tenho sofrido a atrocidade dos crepúsculos.
Queimados até à raiz
Os meus filamentos vermelhos ardem, ficam espetados, mão de fios eléctricos.
Desfaço-me em bocados de caruma que voam em várias direcções.
Um vento tão violento
Não aguenta espectadores: tenho de gritar.
Também da lua está ausente a piedade: havia de arrastar-me
Cruel, na sua esterilidade.
O seu esplendor ofusca-me. Ou talvez a tenha agarrado.
Vou deixá-la ir. Vou deixá-la ir
Diminuída e esvaziada, como após uma operação radical.
Como os teus sonhos maus me possuem e alimentam.
Sou habitada por um grito.
Noite após noite bate as asas
Procurando com as garras algo para amar.
Aterroriza-me esta coisa tenebrosa
Que dorme dentro de mim;
Todo o dia sinto o macio voltejar das suas penas, a sua malignidade.
As nuvens passam e dispersam-se.
Serão essas as faces do amor, esfumadas coisas que não se recuperam?
É por isto que perturbo o meu coração?
Sou incapaz de aprender mais.
O que é isto, este rosto
Tão assassino em seus tentáculos estranguladores?
O seu ácido silvo de serpente.
Petrifica o desejo. Erros que isolam, essas falhas lentas
Que matam, e matam, e matam.
Sylvia Plath
Ariel, tradução de Maria Fernanda Borges, Relógio D'Água, 1996
Para a Ruth Fainligth
Conheço o fundo, diz ela. Cheguei lá com a minha raiz maior:
É disso que tu tens medo.
Mas eu não tenho medo: já lá estive.
É o mar o que ouves em mim,
As suas insatisfações?
Ou a voz do nada que era a tua loucura?
O amor é uma sombra.
Como ficas prostrada e chorosa depois
Escuta: são os cascos dele: desapareceu como um cavalo.
Toda a noite vou galopar, assim, impetuosamente,
Até que a tua cabeça fique uma pedra e a tua almofada um pequeno monte de turfa,
Fazendo eco, fazendo eco.
Ou deverei eu trazer-te um som de venenos?
Agora é a chuva, este quase silêncio.
E este é o seu fruto: da cor metálica do arsénico.
Tenho sofrido a atrocidade dos crepúsculos.
Queimados até à raiz
Os meus filamentos vermelhos ardem, ficam espetados, mão de fios eléctricos.
Desfaço-me em bocados de caruma que voam em várias direcções.
Um vento tão violento
Não aguenta espectadores: tenho de gritar.
Também da lua está ausente a piedade: havia de arrastar-me
Cruel, na sua esterilidade.
O seu esplendor ofusca-me. Ou talvez a tenha agarrado.
Vou deixá-la ir. Vou deixá-la ir
Diminuída e esvaziada, como após uma operação radical.
Como os teus sonhos maus me possuem e alimentam.
Sou habitada por um grito.
Noite após noite bate as asas
Procurando com as garras algo para amar.
Aterroriza-me esta coisa tenebrosa
Que dorme dentro de mim;
Todo o dia sinto o macio voltejar das suas penas, a sua malignidade.
As nuvens passam e dispersam-se.
Serão essas as faces do amor, esfumadas coisas que não se recuperam?
É por isto que perturbo o meu coração?
Sou incapaz de aprender mais.
O que é isto, este rosto
Tão assassino em seus tentáculos estranguladores?
O seu ácido silvo de serpente.
Petrifica o desejo. Erros que isolam, essas falhas lentas
Que matam, e matam, e matam.
Sylvia Plath
Ariel, tradução de Maria Fernanda Borges, Relógio D'Água, 1996
terça-feira, 10 de janeiro de 2012
Provérbio chinês
"Há três coisas que nunca voltam atrás: A flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida"
quinta-feira, 5 de janeiro de 2012
Inês Leitão - Cartas a R.
Cartas a R.
Lourenço Marques, 5 de Janeiro de 1969Querido R.
As tuas cartas ainda me fazem rir.
Nunca conseguirei aceitar que um corpo seja compreendido como uma oportunidade. Um corpo a dormir comigo nunca foi uma oportunidade: para mim, fenómenos dessa natureza são analisados criteriosamente sob a semelhança de um atropelamento grave.
Tenho a nítida impressão que todos os meus relacionamentos com homens foram acidentes de viação violentos que me amputaram membros ou – tão estranhamente - me acrescentaram órgãos ao corpo, Tenho mais rins, mais fígados, mais tripas do que qualquer outra pessoa que conheças.
Corpos deitados na minha cama sempre me fizeram sentir mais sozinha: e eu sou sozinha como nunca imaginaste que uma mulher podia ser. Sou envergonhadamente sozinha. Tanto, que me enterneço de compaixão pelos dedos dos meus pés ou pelos pêlos que me crescem a medo, lentos de medo.
Às vezes tenho vontade de pegar em mim ao colo e levar o meu corpo para longe: uma oportunidade nunca comportará o respeito e o amor suficientes para mim e para o meu corpo.
Eu não tomo bem conta do meu corpo.
No fundo, recuso-me.
Talvez por isso, inteligentemente, a natureza me tenha feito uma mulher estéril: nunca saberia ser mãe, nunca saberia tomar conta de um corpo mais pequeno que o meu. E tenho muito medo do meu coração, esse órgão que tão estranhamente se mantém único, sem duplicação. Tenho medo do meu coração como órgão e como cova. Tomo os medicamentos certos para deixar de ter medo dele, de que um dia pare ou se descontrole num desses tantos atropelamentos que vou tendo
( a dor no corpo continua depois do choque). E sabes porquê, R.? O confronto do corpo com a morte de uma parte do seu coração é o mais duro de todos e requer impreparação.
Assim R.., um outro corpo na minha vida nunca significaria uma oportunidade, seria sempre um acidente, com as consequentes hospitalizações.
Sempre tua,
I.
quarta-feira, 4 de janeiro de 2012
PARABÉNS a Maria Teresa Horta - Prémio D. Dinis - As Luzes de Leonor
O Prémio Literário D. Dinis, da Fundação da Casa de Mateus, foi atribuido à escritora e poeta Maria Teresa Horta, pelo seu romance AS LUZES DE LEONOR, sobre a vida da marquesa de Alorna. O júri constituido pelos escritores Vasco Graça Moura, Nuno Júdice e Fernando Pinto do Amaral, foi unânime na decisão.
terça-feira, 3 de janeiro de 2012
Só temos a certeza de que tudo declina.
Os verbos, o amor, o saber,
O sol.
É quando a beleza mais se exibe,
Quando a carne é madura
E a sombra cresce
Como outro ser ao lado do ser
Quando a memória
Acompanha o curso desse rei que vai nu
E ninguém denuncia.
Quando a paixão tem o canto do cisne
Ou o fulgor que não queima
A voz de quem cantou.
(...)
Armando Silva Carvalho
Os verbos, o amor, o saber,
O sol.
É quando a beleza mais se exibe,
Quando a carne é madura
E a sombra cresce
Como outro ser ao lado do ser
Quando a memória
Acompanha o curso desse rei que vai nu
E ninguém denuncia.
Quando a paixão tem o canto do cisne
Ou o fulgor que não queima
A voz de quem cantou.
(...)
Armando Silva Carvalho
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