Nasci na província, à meia-noite de um domingo de 12 para 13 de maio. Descia a procissão das velas pela quinta dos meus avós, e a lua em quarto-crescente brilhava no céu azul-limpo.
Nasci num dos quartos do mirante, sobre o magnífico vale da Régua. Magnífico, quando tudo eram quintas e caminhos estreitos entre muros e oliveiras; e as vidas eram secretas; e o canto compassado dos cavadores me inquietava, como se preparassem um ritual de morte.
Não era uma vila, nem uma aldeia, mas um lugar: lugar de Godim, antiquíssimo, referido em pergaminhos do tempo de Egas Moniz.
Aquela casa fora dos meus bisavós, e passara para minha avó e a sua irmã, espanholas de Zamora.
Quando eu nasci, alguém me tirou o coração e o escondeu na casa. Por isso ele nunca deixou de bater lá, e continua, para sempre.
A família do Douro era uma gente estranha. Liam muito, escreviam bem, tinham uma tendência para o teatro, e um temperamento feroz; para eles, nada era verdadeiramente importante, nem viver nem morrer, nem ser isto ou aquilo, e geriam com desprendimento as fortunas que vinham e iam.
Eles representavam o mundo fantástico para uma criança. Eu era feliz, porque não me exigiam mais do que aquilo que era natural eu dar, o que significava que vivia ali num estado de liberdade e de confiança nos adultos.
Depois de um mês de férias no Douro eu chegava a casa dos meus pais, no Porto, com os deveres por fazer, má pronúncia, feridas no corpo, porque me alimentava de batatas fritas e ovos estrelados. Sempre detestei que chamassem por mim para ir para a mesa!
Nas tardes de muito calor, eu lia na sala às escuras as histórias as histórias da Elena Fortún, em espanhol: os dias de Célia e as suas primitas que viviam em Madrid e passavam férias em Santander. Representavam já uma época um pouco antiquada, mas não deixava de me tocar pelas ligações familiares que se esboçavam, divertidas, complexas, agitadas.
Com os meus pais, as regras mudavam: era a escola, o estudo, as obrigações de cumprir, de me formar no conhecimento da vida e das pessoas. Exigiam que eu estivesse atenta e soubesse exprimir-me.
Chorava, quando vinha do Douro, mas enfrentava com coragem e determinação este outro desafio a vencer.
Mas o tempo da primeira infância, passei-o em Coimbra. Meu pai concluía Direito, minha mãe escrevia e tratava de mim e da casa. Vivíamos numa pequena casa dentro de um jardim, próxima da dos meus avós paternos. Meu avô era militar, e todos os dias o impedido lhe trazia o cavalo a casa, para ele seguir para o quartel. Levava-me a passear a pé até à Quinta das Lágrimas ou ao Portugal dos Pequeninos, o que significava andar 5 quilómetros por dia! Muito pequena, já olhava as plantas com imensa delicadeza e ternura. Chegava a cas sempre com um raminho de alecrim.
Mudámos entretanto para o Porto. Gostei de fazer a primária na escola pública de Cedofeita.
Lembro-me de todas as amigas que lá tive, da rua que percorria, das lojas, do recreio da escola com duas enormes tílias que o ensombravam. E de escrever no caderno - 1952.
Depois o Liceu Michaelis, a que não consegui adaptar-me. Não gostava do edifício, nem dos corredores, nem dos recreios. Tudo aquilo era inóspito e hospitalar. O meu rendimento era mau. Mudaram-me para o Colégio da Paz, das freiras Doroteias.
Sempre me enfastiaram as aulas. Bom, era o tempo de férias no Douro! Lá, se moldou a minha alma provinciana e resistente.
Nunca tive medo de nada. Nem do escuro, nem dos mortos, nem dos fantasmas, nem dos ladrões. Ficava sempre do lado dos personagens mais temíveis, não para os catequizar e trazer para o lado da luz e do bem, mas pelo prazer de os desmontar.
A gente do Paço, de Vila Meã, da parte do meu avó materno, era uma gente valente e aventureira. E a aventura não implica forçosamente partir para o Brasil, ou outros lugares distantes. Pode ser-se aventureiro no espaço limitado do vale onde se nasceu, viveu e morreu, sem de lá ter saído.
No fim do verão, fazia a viagem de comboio, com a minha avó, da Régua até Vila Meã. Ia receber rendas, acertar contas, ouvir queixas, despedir uns, admitir outros.
No fim do verão, fazia a viagem de comboio, com a minha avó, da Régua até Vila Meã. Ia receber rendas, acertar contas, ouvir queixas, despedir uns, admitir outros.
A minha tia Amélia (a Sibila), recebia-me à porta da cozinha, sem um sorriso nem um beijo. Punha-me um avental comprido, e um grosso cordão de ouro ao pescoço. "Aqui todos trabalham" - dizia-me.
Eu aceitava aquela extravagância e procurava não me sair mal. Trocava o babeiro de fustão e bordado inglês branco que usava no Douro pelo avental de chita...Aprendi a fiar linho e a dar de comer aos porcos, e ouvia em silêncio as conversas cheias de conflitos, dos adultos, à luz da candeia de azeite.
Só muito mais tarde percebi o sentido do avental e do cordão de ouro. Era como quem me dizia: - tu és aqui rainha, podes usar o ouro, mas trabalhas com os outros todos.
Pouco convivi com essas tias, irmãs do meu avó materno, mas esse ensinamento ficou-me para toda a vida. E a suspeita, ainda, de que elas consideravam o amor coisa de velhos e ociosos!
Com meu avó, já convivi mais. Não confiava nele. Vivia ao contrário de todos nós, e transtornava a vida da casa. Almoçava às três da tarde, saía às cinco, e só voltava de madrugada. O avó jogava, e fazia negócios. No jogo ganhava, nos negócios perdia. Lia romances de capa - e - espada que lhe mandavam em caixotes, da livraria.
Já muito doente, pediu que lhe pendurassem no quarto, em frente à cama, o relógio da sala de jantar. Queria saber a que horas ia morrer, o que nos pareceu bem.
1962 - o grande ano de todas as mudanças. Fomos viver para Esposende. Uma casa isolada num pinhal, numa terra de pescadores, deserta no inverno. A mãe fazia uma vida retirada, e eu não podia ser mais feliz naquela terra sem perigos, onde passeava sozinha com o cão, à beira-mar, na praia deserta.
Minha mãe dava-me para ler, Dickens, e mandava-me ir ver os filmes do Bergman. Meu pai desenhava, e ensinava-me a desenhar.
Aí, comecei a escrever. A escrever cartas intermináveis, que eram como diários de bordo.
Ainda estive um ano interna no colégio das Doroteias, na Póvoa, onde andara minha mãe. Mas tendo seguido a área de Letras, que no colégio não havia, fiquei dois anos em casa a estudar com um professor particular que lá ia todos os dias dar-me aulas. Um privilégio fantástico! Era dona do meu tempo.
Entrei em História na Faculdade de Letras do Porto. Fiz uma única cadeira - Paleografia. A mais interessante, porque me obrigava a decifrar, e não a decorar. Mudei para Belas-Artes. Frequentei dois anos a Escola do Porto, e, zangada, pedi a transferência para Lisboa. Fui viver para casa de uma senhora judia alemã, mesmo nas traseiras da sinagoga. Ela fazia-me seguir a sua alimentação Kasher, e contava-me episódios terríveis da guerra, com um sentimento de uma dor apagada e adormecida.
Não gostei de Lisboa. Demasiada luz, demasiada gente, demasiadas ruas perpendiculares, demasiado rio, demasiado pouco do que eu realmente precisav a para seguir o meu destino. Precisava do nevoeiro a entrar-me pela casa dentro, dos negros e azuis da paisagem, da pronúncia de corte castelhana, da linha do Douro, e de tudo o que eu já tinha aprendido e não podia esquecer. É importante que cada um conheça bem os limites do seu mundo, para que ele possa crescer como deve, de dentro para fora, e nunca de fora para dentro, inchando-nos.
Os meus pais compraram a casa do Gólgota, sobre o rio, e aí se fixaram. Foi uma casa de ingleses, que mantém a mesma traça e a mesma atmosfera. Já pouco lá vivi, porque casei entretanto. Mas sinto ser essa, hoje, a casa de família.
Semeou sécias no jardim, e morreu lá, minha avó materna; e as coisas todas foram tomando conta do seu lugar.
A casa do Douro foi vendida, e eu dormi lá na última noite com as minhas filhas. Demos uma volta aos quintais antes de entregarmos a chave, e tive uma pena imensa das galinhas que ficavam no galinheiro.
Ah! Fiz uma carreira nos museus, de que já me esqueci. Não por mágoas, mas porque isso foi a minha vida paralela que ficou para trás, esbatida. Foi uma tarefa que cumpri, mas não um destino. Esse, é só meu, não partilhável, e será o que eu deixo em testamento aos meus três filhos.
Eu aceitava aquela extravagância e procurava não me sair mal. Trocava o babeiro de fustão e bordado inglês branco que usava no Douro pelo avental de chita...Aprendi a fiar linho e a dar de comer aos porcos, e ouvia em silêncio as conversas cheias de conflitos, dos adultos, à luz da candeia de azeite.
Só muito mais tarde percebi o sentido do avental e do cordão de ouro. Era como quem me dizia: - tu és aqui rainha, podes usar o ouro, mas trabalhas com os outros todos.
Pouco convivi com essas tias, irmãs do meu avó materno, mas esse ensinamento ficou-me para toda a vida. E a suspeita, ainda, de que elas consideravam o amor coisa de velhos e ociosos!
Com meu avó, já convivi mais. Não confiava nele. Vivia ao contrário de todos nós, e transtornava a vida da casa. Almoçava às três da tarde, saía às cinco, e só voltava de madrugada. O avó jogava, e fazia negócios. No jogo ganhava, nos negócios perdia. Lia romances de capa - e - espada que lhe mandavam em caixotes, da livraria.
Já muito doente, pediu que lhe pendurassem no quarto, em frente à cama, o relógio da sala de jantar. Queria saber a que horas ia morrer, o que nos pareceu bem.
1962 - o grande ano de todas as mudanças. Fomos viver para Esposende. Uma casa isolada num pinhal, numa terra de pescadores, deserta no inverno. A mãe fazia uma vida retirada, e eu não podia ser mais feliz naquela terra sem perigos, onde passeava sozinha com o cão, à beira-mar, na praia deserta.
Minha mãe dava-me para ler, Dickens, e mandava-me ir ver os filmes do Bergman. Meu pai desenhava, e ensinava-me a desenhar.
Aí, comecei a escrever. A escrever cartas intermináveis, que eram como diários de bordo.
Ainda estive um ano interna no colégio das Doroteias, na Póvoa, onde andara minha mãe. Mas tendo seguido a área de Letras, que no colégio não havia, fiquei dois anos em casa a estudar com um professor particular que lá ia todos os dias dar-me aulas. Um privilégio fantástico! Era dona do meu tempo.
Entrei em História na Faculdade de Letras do Porto. Fiz uma única cadeira - Paleografia. A mais interessante, porque me obrigava a decifrar, e não a decorar. Mudei para Belas-Artes. Frequentei dois anos a Escola do Porto, e, zangada, pedi a transferência para Lisboa. Fui viver para casa de uma senhora judia alemã, mesmo nas traseiras da sinagoga. Ela fazia-me seguir a sua alimentação Kasher, e contava-me episódios terríveis da guerra, com um sentimento de uma dor apagada e adormecida.
Não gostei de Lisboa. Demasiada luz, demasiada gente, demasiadas ruas perpendiculares, demasiado rio, demasiado pouco do que eu realmente precisav a para seguir o meu destino. Precisava do nevoeiro a entrar-me pela casa dentro, dos negros e azuis da paisagem, da pronúncia de corte castelhana, da linha do Douro, e de tudo o que eu já tinha aprendido e não podia esquecer. É importante que cada um conheça bem os limites do seu mundo, para que ele possa crescer como deve, de dentro para fora, e nunca de fora para dentro, inchando-nos.
Os meus pais compraram a casa do Gólgota, sobre o rio, e aí se fixaram. Foi uma casa de ingleses, que mantém a mesma traça e a mesma atmosfera. Já pouco lá vivi, porque casei entretanto. Mas sinto ser essa, hoje, a casa de família.
Semeou sécias no jardim, e morreu lá, minha avó materna; e as coisas todas foram tomando conta do seu lugar.
A casa do Douro foi vendida, e eu dormi lá na última noite com as minhas filhas. Demos uma volta aos quintais antes de entregarmos a chave, e tive uma pena imensa das galinhas que ficavam no galinheiro.
Ah! Fiz uma carreira nos museus, de que já me esqueci. Não por mágoas, mas porque isso foi a minha vida paralela que ficou para trás, esbatida. Foi uma tarefa que cumpri, mas não um destino. Esse, é só meu, não partilhável, e será o que eu deixo em testamento aos meus três filhos.
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