Numa nota introdutória a Uma Editora no Subterrâneo, fica dito algo que todos os colaboradores nesta bela homenagem corroboram, cada um à sua maneira: a «&etc é em grande medida produto da persistência de um homem amante de livros e radicalmente livre – Vitor Silva Tavares». O próprio VST, como é conhecido no «círculo próximo de amigos e pares de combate», explicou muito bem, em 2000, as linhas com que se cose. A &etc «nunca perseguiu o lucro mas o desejo de que a venda dos livros permitisse a publicação de novos livros»; nunca recebeu apoios ou subsídios do Estado; nunca reeditou as obras esgotadas por «preferir arriscar em novos títulos»; nunca assinou contratos com os seus colaboradores, que abdicam tacitamente de cobrar honorários; nem entrou nos circuitos habituais da promoção e do marketing. Uma filosofia que VST resume numa frase: «Funcionando pois em regime de amadorismo auto-consentido (excepto na probidade do trabalho, que se quer aplicado até para maior apuramento estético) e à margem, se não contra, as engrenagens das indústrias culturais, a editora afirma-se decididamente artística e incisivamente intelectual, entendendo o livro como integrante da acção poética e não como mercadoria descartável».
Esta atitude, mantida sem quebras ou cedências de qualquer tipo desde a publicação do primeiro livro, em Fevereiro de 1974 (o volume colectivo Coisas), conferiu a este projecto um «capital de culto que é a sua própria festa» e uma «força que a faz resistir à ‘apagada e vil tristeza’ do cerco económico». Uma festa e uma força que ficam devidamente espelhadas neste livro-testemunho, em que muitos dos cúmplices de VST nestas quatro décadas escrevem sobre a relação com aquela que é uma editora literalmente underground, ou não funcionasse numa cave – o mítico subterrâneo 3 – da Rua da Emenda, em Lisboa. Além das memórias em discurso directo de poetas, tradutores, artistas plásticos e amigos (entre os quais outros editores), o livro reúne um vasto acervo de documentos: cartas, bilhetes pessoais, fotografias, textos inéditos, estudos para ilustrações, prosas evocativas ou programáticas, autos de apreensão e provas riscadas pelo lápis azul do exame prévio da censura – no tempo em que a &etc ainda era uma «folheca cultural q.b.» de frequência quinzenal (entre Janeiro de 1973 e Outubro de 1974), depois de ter sido um suplemento literário do Jornal do Fundão (de 1967 a 1971) –, uma muito extensa entrevista a VST feita por Alexandra Lucas Coelho, o catálogo completo dos mais de 300 títulos editados e a reprodução a cores de todas as capas, invariavelmente no famoso formato de «falso quadrado» (15,5 por 17,5 centímetros), cuja génese e geometria é explicada em detalhe na página 131.
Ao Expresso, Eduardo de Sousa, responsável pela livraria Letra Livre, explicou que «este projecto vinha sendo pensado há bastante tempo pois seja como leitores, como livreiros ou editores, admiramos o persistente trabalho de resistência editorial de Vitor Silva Tavares e da &etc, essa editora independente e emblemática que se destaca no nosso panorama cultural». Uma editora que nunca se assumiu como «alternativa», antes como «paralela», porque «nunca se encontra com as outras, as que se movem por razões intrinsecamente comerciais». A edição deste volume integra-se, aliás, no «trabalho quotidiano da Letra Livre no sentido de valorizar as edições independentes e os livros que não têm espaço no grande mercado livreiro». Nesse capítulo, a &etc não é caso único. E Eduardo de Sousa assinala outras afinidades electivas: Fenda, Hiena, Antígona, Edições Mortas, Averno, Língua Morta, exemplos de uma pequena «galáxia de Gutemberg» que vive à margem da «engrenagem parideira» da indústria do livro.
Entre as muitas dezenas de possíveis participantes num projecto desta natureza, a Letra Livre convidou «os leitores, editores e autores que têm uma maior proximidade com a &etc e que se mostraram disponíveis para colaborar». Da lista constam os nomes, entre outros, de Adília Lopes, António Vieira, Cláudia Clemente, Fernando Cabral Martins, Isabel de Sá, Luís Henriques, Manuel de Freitas, Pedro Piedade Marques, Rocha de Sousa e Vasco Santos. A coordenação editorial e concepção foi de Paulo da Costa Domingos, assumido compagnon de route e «aprendiz» de VST durante quase duas décadas, além de autor, revisor tipográfico e «pau-para-toda-a-obra». Actualmente editor da Frenesi e alfarrabista, garante que «todas as lições, boas, más, ou assim-assim» que recebeu durante os anos de trabalho na &etc «estão patentes e registadas em cada pormenor, em cada detalhe, de todo o meu percurso intelectual, que deverá ser tido como um todo indissociável da minha vida quotidiana…»
Esta entrega absoluta transparece em muitas das histórias contadas no livro. O famoso subterrâneo, ao qual «se desce por uma rampa que sobe (ou vice-versa)», na expressão feliz de Paulo da Costa Domingos, representou uma espécie de segunda casa para muita gente que encontrava ali um espaço onde se podia respirar de outra maneira, discutir tudo e mais alguma coisa, ensaiar novas formas de insubmissão face ao poder tirânico do dinheiro, editar sempre com o gozo danado de quem não abdica de um esmero artesanal em desuso (atento à importância da arte gráfica, às subtilezas da tipografia, à escolha do tipo de papel certo), nunca desistindo de trazer à luz autores esquecidos, marginais ou incómodos (como Artaud, Péret, Pierre Louÿs, Gombrowicz, Michaux); em suma, fazendo do nobre ofício de publicar livros a tal «acção poética» reclamada no texto de 2000.
Algumas das «vicissitudes editoriais» vividas ao longo do percurso, escritas pelo próprio punho de VST por ocasião do 33.º aniversário da &etc, e aqui recuperadas, são uma maravilha de leitura obrigatória. Por exemplo, sobre a «morte gloriosa», ao 25.º número, da revista que antecedeu a editora, depois de lhe ter sido apresentada uma soma de exemplares devolvidos superior à própria tiragem: «Record mundial absoluto: vendas abaixo de zero! Guiness já já para a &etc! E que é deles, os exemplares “devolvidos”? – Por “distracção lamentável”, comunicado da distribuidora, foram-se para a guilhotina na companhia de toneladas de tralha impressa tida por jornais e revistas.» Ou sobre a segunda edição de O Bispo de Beja, de Homem-Pessoa (1980), «excepção única à regra de a &etc não fazer reedições». O «folheto original» fora apreendido à ordem do Ministério Público, por suposto crime de abuso de liberdade de imprensa (um regresso à censura, seis anos depois do 25 de Abril), sendo os exemplares «regados a gasolina e sujeitos a auto-da-fé no pátio do Tribunal da Boa Hora». Mas quando o editor decidiu «voltar ao objecto do crime», o processo foi arquivado, sem medidas persecutórias para a reedição: «Tudo bons rapazes na justiça portuguesa!»
Como seria de esperar, o que há mais em Uma Editora no Subterrâneo são textos de elogio e tributo – justíssimo – à figura e à obra de Vitor Silva Tavares. Toda a gente sublinha o seu rigor, o seu compromisso cívico e ético, a sua verve, a sua casmurrice, a sua têmpera, a sua honestidade intelectual e humana. «Falar com o Vitor Silva Tavares foi um momento de pura epifania», chega a escrever Graça Martins. Para mitigar um pouco esta atmosfera de quase canonização, que até deve gerar um certo desconforto no destinatário, é transcrito um artigo de Luiz Pacheco, publicado no Diário Popular (Fevereiro de 1976), com «avisos» e «reprimendas», nomeadamente ao facto de VST ter suspendido a publicação da revista &etc logo a seguir ao 25 de Abril: «quando chegou o momento (…) de tomar posição clara, a folheca emudece. Foi pena.» Tantos anos depois, Paulo da Costa Domingos ainda reage com virulência às acusações de imaturidade («anarquismo de berlinde e calção») que Pacheco lhe fazia: «Não posso responder pelo Vitor Silva Tavares. No que me diz respeito, nunca dei a Luiz Pacheco mais crédito cultural do que aquele que ele me dava a mim. Desde a primeira hora, cavou um fosso que o tinha a ele de um lado (o bêbado) e do outro lado autores como eu (os drogados). Convicção dele. Por isso lhe puseram uma bandeira sobre o caixão: por causa dessas tristes convicções.»
Esta atitude, mantida sem quebras ou cedências de qualquer tipo desde a publicação do primeiro livro, em Fevereiro de 1974 (o volume colectivo Coisas), conferiu a este projecto um «capital de culto que é a sua própria festa» e uma «força que a faz resistir à ‘apagada e vil tristeza’ do cerco económico». Uma festa e uma força que ficam devidamente espelhadas neste livro-testemunho, em que muitos dos cúmplices de VST nestas quatro décadas escrevem sobre a relação com aquela que é uma editora literalmente underground, ou não funcionasse numa cave – o mítico subterrâneo 3 – da Rua da Emenda, em Lisboa. Além das memórias em discurso directo de poetas, tradutores, artistas plásticos e amigos (entre os quais outros editores), o livro reúne um vasto acervo de documentos: cartas, bilhetes pessoais, fotografias, textos inéditos, estudos para ilustrações, prosas evocativas ou programáticas, autos de apreensão e provas riscadas pelo lápis azul do exame prévio da censura – no tempo em que a &etc ainda era uma «folheca cultural q.b.» de frequência quinzenal (entre Janeiro de 1973 e Outubro de 1974), depois de ter sido um suplemento literário do Jornal do Fundão (de 1967 a 1971) –, uma muito extensa entrevista a VST feita por Alexandra Lucas Coelho, o catálogo completo dos mais de 300 títulos editados e a reprodução a cores de todas as capas, invariavelmente no famoso formato de «falso quadrado» (15,5 por 17,5 centímetros), cuja génese e geometria é explicada em detalhe na página 131.
Ao Expresso, Eduardo de Sousa, responsável pela livraria Letra Livre, explicou que «este projecto vinha sendo pensado há bastante tempo pois seja como leitores, como livreiros ou editores, admiramos o persistente trabalho de resistência editorial de Vitor Silva Tavares e da &etc, essa editora independente e emblemática que se destaca no nosso panorama cultural». Uma editora que nunca se assumiu como «alternativa», antes como «paralela», porque «nunca se encontra com as outras, as que se movem por razões intrinsecamente comerciais». A edição deste volume integra-se, aliás, no «trabalho quotidiano da Letra Livre no sentido de valorizar as edições independentes e os livros que não têm espaço no grande mercado livreiro». Nesse capítulo, a &etc não é caso único. E Eduardo de Sousa assinala outras afinidades electivas: Fenda, Hiena, Antígona, Edições Mortas, Averno, Língua Morta, exemplos de uma pequena «galáxia de Gutemberg» que vive à margem da «engrenagem parideira» da indústria do livro.
Entre as muitas dezenas de possíveis participantes num projecto desta natureza, a Letra Livre convidou «os leitores, editores e autores que têm uma maior proximidade com a &etc e que se mostraram disponíveis para colaborar». Da lista constam os nomes, entre outros, de Adília Lopes, António Vieira, Cláudia Clemente, Fernando Cabral Martins, Isabel de Sá, Luís Henriques, Manuel de Freitas, Pedro Piedade Marques, Rocha de Sousa e Vasco Santos. A coordenação editorial e concepção foi de Paulo da Costa Domingos, assumido compagnon de route e «aprendiz» de VST durante quase duas décadas, além de autor, revisor tipográfico e «pau-para-toda-a-obra». Actualmente editor da Frenesi e alfarrabista, garante que «todas as lições, boas, más, ou assim-assim» que recebeu durante os anos de trabalho na &etc «estão patentes e registadas em cada pormenor, em cada detalhe, de todo o meu percurso intelectual, que deverá ser tido como um todo indissociável da minha vida quotidiana…»
Esta entrega absoluta transparece em muitas das histórias contadas no livro. O famoso subterrâneo, ao qual «se desce por uma rampa que sobe (ou vice-versa)», na expressão feliz de Paulo da Costa Domingos, representou uma espécie de segunda casa para muita gente que encontrava ali um espaço onde se podia respirar de outra maneira, discutir tudo e mais alguma coisa, ensaiar novas formas de insubmissão face ao poder tirânico do dinheiro, editar sempre com o gozo danado de quem não abdica de um esmero artesanal em desuso (atento à importância da arte gráfica, às subtilezas da tipografia, à escolha do tipo de papel certo), nunca desistindo de trazer à luz autores esquecidos, marginais ou incómodos (como Artaud, Péret, Pierre Louÿs, Gombrowicz, Michaux); em suma, fazendo do nobre ofício de publicar livros a tal «acção poética» reclamada no texto de 2000.
Algumas das «vicissitudes editoriais» vividas ao longo do percurso, escritas pelo próprio punho de VST por ocasião do 33.º aniversário da &etc, e aqui recuperadas, são uma maravilha de leitura obrigatória. Por exemplo, sobre a «morte gloriosa», ao 25.º número, da revista que antecedeu a editora, depois de lhe ter sido apresentada uma soma de exemplares devolvidos superior à própria tiragem: «Record mundial absoluto: vendas abaixo de zero! Guiness já já para a &etc! E que é deles, os exemplares “devolvidos”? – Por “distracção lamentável”, comunicado da distribuidora, foram-se para a guilhotina na companhia de toneladas de tralha impressa tida por jornais e revistas.» Ou sobre a segunda edição de O Bispo de Beja, de Homem-Pessoa (1980), «excepção única à regra de a &etc não fazer reedições». O «folheto original» fora apreendido à ordem do Ministério Público, por suposto crime de abuso de liberdade de imprensa (um regresso à censura, seis anos depois do 25 de Abril), sendo os exemplares «regados a gasolina e sujeitos a auto-da-fé no pátio do Tribunal da Boa Hora». Mas quando o editor decidiu «voltar ao objecto do crime», o processo foi arquivado, sem medidas persecutórias para a reedição: «Tudo bons rapazes na justiça portuguesa!»
Como seria de esperar, o que há mais em Uma Editora no Subterrâneo são textos de elogio e tributo – justíssimo – à figura e à obra de Vitor Silva Tavares. Toda a gente sublinha o seu rigor, o seu compromisso cívico e ético, a sua verve, a sua casmurrice, a sua têmpera, a sua honestidade intelectual e humana. «Falar com o Vitor Silva Tavares foi um momento de pura epifania», chega a escrever Graça Martins. Para mitigar um pouco esta atmosfera de quase canonização, que até deve gerar um certo desconforto no destinatário, é transcrito um artigo de Luiz Pacheco, publicado no Diário Popular (Fevereiro de 1976), com «avisos» e «reprimendas», nomeadamente ao facto de VST ter suspendido a publicação da revista &etc logo a seguir ao 25 de Abril: «quando chegou o momento (…) de tomar posição clara, a folheca emudece. Foi pena.» Tantos anos depois, Paulo da Costa Domingos ainda reage com virulência às acusações de imaturidade («anarquismo de berlinde e calção») que Pacheco lhe fazia: «Não posso responder pelo Vitor Silva Tavares. No que me diz respeito, nunca dei a Luiz Pacheco mais crédito cultural do que aquele que ele me dava a mim. Desde a primeira hora, cavou um fosso que o tinha a ele de um lado (o bêbado) e do outro lado autores como eu (os drogados). Convicção dele. Por isso lhe puseram uma bandeira sobre o caixão: por causa dessas tristes convicções.»
[Texto publicado no suplemento Actual do jornal Expresso]
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