domingo, 19 de novembro de 2017

Isabel de Sá - MANHÃ DE AGOSTO


MANHÃ DE AGOSTO


Nesta manhã de Agosto...
encontrei o papel onde tinha escrito
a idade em que Blaise Cendrars
perdeu a mão direita
e fiquei a sentir a dor
que me atormentava. Não tomei aspirina
nem esqueci a tua carta
de ontem, aquele momento
em que dizes eu querer
arrastar-te comigo "para esse universo
onde a vida é trocada por palavras".

Tenho lido os poetas
da minha geração. Conheço
o primeiro poema, aquele que inaugurou
a vida, também em mim.
Cansada de ir à praia, à piscina,
procuro livros, uma emoção linguística,
o verso desconhecido.
Guardei uma frase de Musil, na caixa
onde tenho os selos, um minúsculo relógio
que decidi não usar.
Não posso viver sem a música de Schubert,
ou aquela peça de Brahms - tudo isto
são palavras, a vida passa-se lá fora,
o Inverno há-de vir e não poderei
totalmente fugir ao desconforto.
Falava-se de As Tulipas
e começo a entender. Esta música,
estas palavras, a morte na dobra do lençol,
meu frio corpo na penumbra, no paraíso inicial
da anestesia. Perdida a razão no inferno
da dor, a cabeça irreal, meu poema
esquecido na margem do sono. A morfina,
as enfermeiras, tudo o que pudesse
polir o tormento.
E hoje acabei
por tomar aspirina, gastar o rosto,
permanecer em casa.


Isabel de Sá, in Os Cem Melhores Poemas Portugueses dos Últimos Cem Anos, Companhia das Letras, Lisboa, 2017

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