quarta-feira, 27 de julho de 2011

Carta de Manuela Santos para José Miguel Wisnik depois da descoberta da cantora brasileira ELZA SOARES.


Uma tal Elza Soares

Descobri por acaso este disco “DO CÓXIS ATÉ AO PESCOÇO” e tenho-o partilhado com alguns amigos. (O disco e as primeiras impressões que registei mal o ouvi):
Trata-se dum objecto musical insólito, desconhecido entre nós, e francamente desconcertante, provavelmente esdrúxulo na própria carreira da intérprete.

Tudo começou numa aula de ginástica, já no ido 2004, com uma canção do Cole Porter cantada por uma voz negra americana, mas em... brasileiro. Em dueto com Chico Buarque. Uma voz de espantação. Investigada a origem, lá fui para a FNAC à procura duma tal Elza Soares e descobri este disco fulminante.

A voz, em vez do açúcar brasileiro, tem ácido sulfúrico. E as letras são puro veneno. Como não usei antídoto, a corrosão fez estragos na alma. Mas dos bons, fiquei em estado de exaltação. Perguntei-me (e continuo a perguntar) se seria mesmo um grandecíssimo disco, ou se estaria a exagerar...

A mistura duma voz antiga, negra, forte, plástica, com ritmos alucinados, as letras que ela ousa gritar como quem atira nitroglicerina às trombas de todos nós, a explosão de vitalidade e criatividade, organizados com tanta riqueza e inovação formais, pareceram-me um assombro.

No Samba, no Rap, no Choro ou no Tango, em todas as cores, perfumes, timbres, eu ouvi SÉCULOS DE DESESPERO EM FORMATO TROPICAL. Muito ritmo, muita festa, muito excesso, muito carnaval. E uma dor e uma raiva que arranham a alma, e uma
 
grandeza que assombra, e uma coragem tão excessiva que é quase imolatória.
 
Esta Elza Soares em cada frase celebra toda a tragédia da escravatura e da negritude quando dança ou quando chora, quando grita ou murmura. Mesmo quando a voz se adoça, sabe a sangue, e a gargalhada abre-se em ferida.

Em algumas das faixas, por trás duma parafernália electrónica, surge aquela voz, qual oficiante duma celebração satãnica ou divina; homicida e suicida; rezando e blasfemando, numa implosão de contrastes que nos abrasam com o mesmo fogo em que se consome a celebrante.

Passei a considerá-lo, seguramente, um dos discos da minha vida.

Depois de escrever estas  1.ªs impressões que o disco me causou, enviei-as a um amigo brasileiro e pedi-lhe algumas informações sobre a cantora. Mais tarde, uma pesquisa na Internet deu-me mais dados.

E o que vim a saber confirmou e explica o que senti desde o início: a genialidade duma intérprete de excepção; as trágicas atribulações biográficas que se alquimicaram em dor e raiva na voz; um milagre de energia e inovação aos 72 anos de idade; a falta do reconhecimento devido, como paga do excesso de ousadia e do pouco tino comercial.

A “B.B.C.” elegeu-a em 2000 a “cantora do milénio”, e só por isso arranjou editora para este colossal disco, e das mais pequenas.

Quando o disco saiu, em Abril de 2002, muitos críticos da MPB logo o elegeram como o “disco do ano” no Brasil, e alguns deles,
nem tão poucos como isso, disseram mesmo que era o melhor disco dos últimos 5 anos editado no Brasil. Mas nem isso ajudou a sua divulgação em Portugal. Nem uma referência, e apenas a FNAC teve alguns exemplares à venda.

Estupefacta com a relação qualidade do objecto ó   nacional ignorância, e disposta a fazer justiça à minha modestíssima escala, aproveitei o Natal para oferecer o disco aos amigos, justificando a escolha com uma carta de apresentação, partilhando as intensas emoções experimentadas.

Pensei eu, ingenuamente, que bastaria conhecerem o disco, e a mesma assombração tombaria sobre aquele grupo de amigos que partilha comigo algumas idiossincrasias. Nada mais falso...

Só alguns, bem raros.

Confesso que não percebi o desacerto, e achei que se explicasse melhor... se contasse algumas peripécias biográficas da cantora, então sim, far-se-ia luz nas mentes um pouco obscurecidas dos meus amigos. E escrevi uma segunda carta. Engano meu! As reacções continuavam a ser simpáticas, mas nada entusiastas, com as tais, raras, excepções.

O que me deixa, confesso, um pouco atordoada. Porque não me convenço que seja apenas uma privadíssima idiossincrasia. Ainda acredito que, independentemente dos meus pessoalíssimos gostos, este disco é, de facto, invulgarmente bom.
 
E é assim que mando este objecto do (meu) culto

Espero que agrade.

A quem decidir ouvi-lo, faça-o como quem reza – no maior recolhimento, a sós, eventualmente com um copo de vinho e um brinde a todos os prodígios deste mundo. 

E depois partilhe as suas impressões comigo, sejam próximas, opostas, ou nem isso.

(Mas a quem gostar, partilhe-as também com os seus melhores amigos.)

Manuela Santos*

Psicóloga, Grupanalista, Psicoterapeuta de Inspiração Psicanalítica.

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