No decurso do II Encontro da Associação Portuguesa de Prevenção do Alcoolismo, foi abordado o tema “O Álcool na Literatura _ O Escritor e a Obra” que incluiu uma homenagem a Natália Correia, para a qual me pediram colaboração. Escolhi nessa ocasião dar um testemunho sobre algumas dimensões menos visíveis da personalidade desta escritora que me impressionaram e tocaram duma forma especial (por ter sido sua amiga e por ter privado com ela) e poderão ajudar a compreendê-la um pouco melhor.
Se um talento esplendoroso, uma inteligência luminosa e um magnífico sentido de auto-encenação foram responsáveis pela incendiada admiração que tantos de nós sentimos por Natália Correia, a pose majestática, tonitruante e por vezes feroz, assustaram outros tantos; mas apenas um olhar disponível e sem preconceitos podia dar-se conta, ao arrepio dos lugares comuns que sempre se foram dizendo a seu respeito, do absoluto desamparo e da total fragilidade deste ser excessivamente complexo e paradoxal.
A quem se deixava impregnar pelo carisma desta mulher extraordinária, não podia deixar de surpreender o intenso curto-circuito que a sua personalidade exprimia pela mistura do esplendor com o arcaico, ou como ela própria disse em “Madona”, referindo-se a uma personagem, podíamos senti-la como se estivesse “...misticamente ligada a uma religião onde as forças extremas, o sórdido e o sublime se fundiam numa única e inominável divindade... não havia qualquer duplicidade moral nesta sua forma de tocar os dois pólos da alma. Dir-se-ia que o seu espírito tinha um perpétuo movimento circular que incessantemente abrangia o superior e o inferior” (p. 41)
Esta complexidade e estes contrastes foram desde sempre para mim um poderosíssimo apelo à decifração. Tentar esclarecer alguns equívocos que envolveram a figura e a vida de Natália Correia é um tributo de quantos a conheceram e amaram.
O primeiro equívoco é sugerido pela associação da Natália à problemática do alcoolismo. Já por altura da sua morte houve quem, nunca a tendo conhecido, comentasse terem sido o álcool e o tabaco a vitimá-la. Nada mais injusto.
É verdade que Natália frequentava um bar regularmente, animando noite após noite tertúlias e convívios; defendeu exaltadamente marginalidades e marginais; celebrou com álcool festas e encontros; e abominou em discursos excessivos todas as formas de puritanismo. Tratava-se duma postura intelectual, uma atitude romântica, insubmissa e desafiadora, que partilhava desde a juventude com os surrealistas, de quem foi amiga, companheira de muitos percursos e em alguns casos musa inspiradora.
No entanto bebia muito moderadamente, apenas em situações sociais, e afirmava mesmo nunca se ter excedido. Quando deixou de beber e fumar por conselho médico, nunca a ouvi queixar-se por lhe sentir a falta; apenas sofria por ter perdido a saúde que lhe permitira no passado beber e fumar.
Aquilo que de mais subterrâneo a terá impelido para certos ambientes, sugeriu-o em “Madona”, a propósito de bares e do cortejo de seres bizarros que sempre lhes estão associados: “Perante essa inquietante sociedade de seres oníricos [Miguel], dava-me a impressão de um coleccionador de coisas fantásticas nas quais fazia entrar a tragédia afogada em risos desses palhaços da comédia dos sexos” (p. 84). Ou: “... Mas o que ele procurava era uma forma... de nadar naquele mar de naufragados, o único elemento que lhe permitia a sensação de se agitar e de se achar vivo no pulsar dessa agitação” (p.55). Ou ainda: “É no meio desses infelizes que eu me posso sentir um ser humano” (p.178).
Outro equívoco terrível que crucificou Natália Correia em vida diz respeito à lenda de “mulher fatal”, “vamp”, “devoradora de homens” (ou nem só), tecida através de inúmeras histórias e enredos, qual deles mais descabelado, com que mistificaram a sua vida amorosa. Este equívoco partilhou-o com outras mulheres de gerações próximas da sua. Grandes actrizes que ajudaram a criar e difundir o mito da “mulher fatal” surgem-nos hoje em dia, através de biografias póstumas (Garbo, Marlene, Marilyn, etc.), como vítimas destroçadas pelas armadilhas a que deram rosto, e revelam-se-nos mulheres imaturas, sexualmente inibidas, com vidas amorosas precárias e infelizes. Esta verdadeira patologia da feminilidade não parece encontrar-se nas gerações com menos de 60 anos. O cinema continua a promover imagens de mulheres belas e sensuais, mas distantes da “mulher fatal” dos anos 50. Sucessivas revoluções sexuais fizeram aparecer novas expressões para a mesma patologia da feminilidade, e ironicamente os herdeiros actuais destas “femmes fatales” dos idos 50 parecem ser certos travestis do “show business”.
Natália Correia contribuiu para este equívoco que se lhe colou à pele e à vida: foi uma mulher muito bela e uma sedutora compulsiva, uma “allumeuse”. Com as suas ideias libertárias e atitudes desafiadoras demoliu publicamente muitos tabus, sexuais incluídos, ajudando a criar uma imagem com que viria a ser perversamente agredida.
Era por isso totalmente inesperado darmo-nos conta, ao privar com ela, de quanto a sua vida e os valores pelos quais pautava o seu comportamento contradiziam esta ousada encenação intelectual. Confessava repetidamente, a pessoas quase sempre incrédulas, que se considerava uma mulher sexualmente inexperiente, inapetente e inapta. Emitia juízos de valor a respeito de comportamentos de pessoas que lhe eram próximas, que mais do que conservadores, chegavam a ser reaccionariamente puritanos.
Mas ela própria afirmou: “A minha ousadia era puramente intelectual, ou seja, a cobardia de viver” (“Madona”, p. 165). Ou: “...A poesia é o défice das nossas inibições. Viver poeticamente é viver as coisas em potência.” (Ibid., p. 154). Ou ainda: “... Fazer poemas enquanto se mata/ durante a cópula quando faminto/ esses nunca os vi fazer// A poesia é sempre em vez/mênstruo da alma uma vez por mês/ sangrenta flor abortada/ da natureza infecunda” (“Poema Sáfaro”, in “O Vinho e a Lira”).
Perante a perplexidade de quantos a procuravam compreender, tornava-se claro que não se tratava de fingimento: não havia uma Natália actriz “vs “ a pessoa; a figura pública “vs” a existência privada; a máscara “vs” o rosto. Ao contrário, estávamos sempre dentro do mesmo cenário, barroco, que ora nos aparecia pelo direito, ora pelo avesso, numa constante reversibilidade dos contrários.
Um dia contou-me que, quando criança, ainda nos Açores, vira num filme bíblico cristãos a serem devorados por leões num circo romano, e imediatamente tomara o partido dos leões. Nesta frase extraordinária, Natália Correia condensou toda a sua tragédia narcísica: ela foi sempre a vítima, condenada implacavelmente a ser comida pelo leão – em que ela própria se tornava para poder sobreviver. Cristão devorado e leão devorador, Natália Correia cumpriu este destino em vida e obra. Vítima sacrificial desde sempre crucificada na sua tragédia interior, o que a compeliu a trabalhar obsessivamente, e magnificamente, o tema da descrucificação.
Esta primordial crucificação (tão dilaceradamente exposta em “Uma Estátua Para Herodes”) dum ser que simultaneamente irrompia com uma energia anímica assombrosa (Henry Miller chamou-lhe “uma força da natureza”) pertencia ao que em Natália Correia permanecia um enigma em busca de decifração. Sensíveis à carga mítica que desde sempre a envolveu, podíamos ao mesmo tempo adivinhar a criança dependente, humilhada e culpabilizada que também foi. Com a sua admirável vitalidade “deu a volta por cima”, sem no entanto se soltar do fio da navalha onde sempre se equilibrou pela criação e fantasia que fizeram dela a genial fabricante de sonhos que conhecemos.
A devoção e admiração que procurava permanentemente obter à sua volta, foram a forma sublime com que recusou submeter-se à sua aflita dependência, que noutros planos sentiu com um desmesurado embaraço. A vergonha e humilhação transfigurou-as em magnífica arrogância com que golpeava implacavelmente quantos ameaçavam apequená-la. A terrível culpabilidade em que se consumia converteu-se em desafio e provocação com que “levantava as saias a essa podridão vestida de marido, de pai, de sacerdote” (“Madona, p. 36).
Neste precário equilíbrio entre dependência e necessidade de ser admirada, humilhação e arrogância ou mesmo culpa e desafio, Natália cumpriu-se excessiva e exuberante em cada um destes pólos antitéticos.
Alquimicando esta humaníssima dilaceração, o seu extraordinário talento marcou-lhe encontro com as próximas gerações, quando a sua vastíssima obra for conhecida, compreendida, apreciada e ocupar o lugar cimeiro que lhe pertence no panorama cultural do nosso século. O futuro deixar-se-á impregnar pela genialidade fulgurante das suas dádivas maiores: “...E à branca praia nos leva a onda materna/ Porque os deuses aí não são longínquos./ Têm seus tronos onde nos esperam/ Imutáveis os mitos” (in “O Armistício”).
É lá que a Natália Correia nos espera.
Se um talento esplendoroso, uma inteligência luminosa e um magnífico sentido de auto-encenação foram responsáveis pela incendiada admiração que tantos de nós sentimos por Natália Correia, a pose majestática, tonitruante e por vezes feroz, assustaram outros tantos; mas apenas um olhar disponível e sem preconceitos podia dar-se conta, ao arrepio dos lugares comuns que sempre se foram dizendo a seu respeito, do absoluto desamparo e da total fragilidade deste ser excessivamente complexo e paradoxal.
A quem se deixava impregnar pelo carisma desta mulher extraordinária, não podia deixar de surpreender o intenso curto-circuito que a sua personalidade exprimia pela mistura do esplendor com o arcaico, ou como ela própria disse em “Madona”, referindo-se a uma personagem, podíamos senti-la como se estivesse “...misticamente ligada a uma religião onde as forças extremas, o sórdido e o sublime se fundiam numa única e inominável divindade... não havia qualquer duplicidade moral nesta sua forma de tocar os dois pólos da alma. Dir-se-ia que o seu espírito tinha um perpétuo movimento circular que incessantemente abrangia o superior e o inferior” (p. 41)
Esta complexidade e estes contrastes foram desde sempre para mim um poderosíssimo apelo à decifração. Tentar esclarecer alguns equívocos que envolveram a figura e a vida de Natália Correia é um tributo de quantos a conheceram e amaram.
O primeiro equívoco é sugerido pela associação da Natália à problemática do alcoolismo. Já por altura da sua morte houve quem, nunca a tendo conhecido, comentasse terem sido o álcool e o tabaco a vitimá-la. Nada mais injusto.
É verdade que Natália frequentava um bar regularmente, animando noite após noite tertúlias e convívios; defendeu exaltadamente marginalidades e marginais; celebrou com álcool festas e encontros; e abominou em discursos excessivos todas as formas de puritanismo. Tratava-se duma postura intelectual, uma atitude romântica, insubmissa e desafiadora, que partilhava desde a juventude com os surrealistas, de quem foi amiga, companheira de muitos percursos e em alguns casos musa inspiradora.
No entanto bebia muito moderadamente, apenas em situações sociais, e afirmava mesmo nunca se ter excedido. Quando deixou de beber e fumar por conselho médico, nunca a ouvi queixar-se por lhe sentir a falta; apenas sofria por ter perdido a saúde que lhe permitira no passado beber e fumar.
Aquilo que de mais subterrâneo a terá impelido para certos ambientes, sugeriu-o em “Madona”, a propósito de bares e do cortejo de seres bizarros que sempre lhes estão associados: “Perante essa inquietante sociedade de seres oníricos [Miguel], dava-me a impressão de um coleccionador de coisas fantásticas nas quais fazia entrar a tragédia afogada em risos desses palhaços da comédia dos sexos” (p. 84). Ou: “... Mas o que ele procurava era uma forma... de nadar naquele mar de naufragados, o único elemento que lhe permitia a sensação de se agitar e de se achar vivo no pulsar dessa agitação” (p.55). Ou ainda: “É no meio desses infelizes que eu me posso sentir um ser humano” (p.178).
Outro equívoco terrível que crucificou Natália Correia em vida diz respeito à lenda de “mulher fatal”, “vamp”, “devoradora de homens” (ou nem só), tecida através de inúmeras histórias e enredos, qual deles mais descabelado, com que mistificaram a sua vida amorosa. Este equívoco partilhou-o com outras mulheres de gerações próximas da sua. Grandes actrizes que ajudaram a criar e difundir o mito da “mulher fatal” surgem-nos hoje em dia, através de biografias póstumas (Garbo, Marlene, Marilyn, etc.), como vítimas destroçadas pelas armadilhas a que deram rosto, e revelam-se-nos mulheres imaturas, sexualmente inibidas, com vidas amorosas precárias e infelizes. Esta verdadeira patologia da feminilidade não parece encontrar-se nas gerações com menos de 60 anos. O cinema continua a promover imagens de mulheres belas e sensuais, mas distantes da “mulher fatal” dos anos 50. Sucessivas revoluções sexuais fizeram aparecer novas expressões para a mesma patologia da feminilidade, e ironicamente os herdeiros actuais destas “femmes fatales” dos idos 50 parecem ser certos travestis do “show business”.
Natália Correia contribuiu para este equívoco que se lhe colou à pele e à vida: foi uma mulher muito bela e uma sedutora compulsiva, uma “allumeuse”. Com as suas ideias libertárias e atitudes desafiadoras demoliu publicamente muitos tabus, sexuais incluídos, ajudando a criar uma imagem com que viria a ser perversamente agredida.
Era por isso totalmente inesperado darmo-nos conta, ao privar com ela, de quanto a sua vida e os valores pelos quais pautava o seu comportamento contradiziam esta ousada encenação intelectual. Confessava repetidamente, a pessoas quase sempre incrédulas, que se considerava uma mulher sexualmente inexperiente, inapetente e inapta. Emitia juízos de valor a respeito de comportamentos de pessoas que lhe eram próximas, que mais do que conservadores, chegavam a ser reaccionariamente puritanos.
Mas ela própria afirmou: “A minha ousadia era puramente intelectual, ou seja, a cobardia de viver” (“Madona”, p. 165). Ou: “...A poesia é o défice das nossas inibições. Viver poeticamente é viver as coisas em potência.” (Ibid., p. 154). Ou ainda: “... Fazer poemas enquanto se mata/ durante a cópula quando faminto/ esses nunca os vi fazer// A poesia é sempre em vez/mênstruo da alma uma vez por mês/ sangrenta flor abortada/ da natureza infecunda” (“Poema Sáfaro”, in “O Vinho e a Lira”).
Perante a perplexidade de quantos a procuravam compreender, tornava-se claro que não se tratava de fingimento: não havia uma Natália actriz “vs “ a pessoa; a figura pública “vs” a existência privada; a máscara “vs” o rosto. Ao contrário, estávamos sempre dentro do mesmo cenário, barroco, que ora nos aparecia pelo direito, ora pelo avesso, numa constante reversibilidade dos contrários.
Um dia contou-me que, quando criança, ainda nos Açores, vira num filme bíblico cristãos a serem devorados por leões num circo romano, e imediatamente tomara o partido dos leões. Nesta frase extraordinária, Natália Correia condensou toda a sua tragédia narcísica: ela foi sempre a vítima, condenada implacavelmente a ser comida pelo leão – em que ela própria se tornava para poder sobreviver. Cristão devorado e leão devorador, Natália Correia cumpriu este destino em vida e obra. Vítima sacrificial desde sempre crucificada na sua tragédia interior, o que a compeliu a trabalhar obsessivamente, e magnificamente, o tema da descrucificação.
Esta primordial crucificação (tão dilaceradamente exposta em “Uma Estátua Para Herodes”) dum ser que simultaneamente irrompia com uma energia anímica assombrosa (Henry Miller chamou-lhe “uma força da natureza”) pertencia ao que em Natália Correia permanecia um enigma em busca de decifração. Sensíveis à carga mítica que desde sempre a envolveu, podíamos ao mesmo tempo adivinhar a criança dependente, humilhada e culpabilizada que também foi. Com a sua admirável vitalidade “deu a volta por cima”, sem no entanto se soltar do fio da navalha onde sempre se equilibrou pela criação e fantasia que fizeram dela a genial fabricante de sonhos que conhecemos.
A devoção e admiração que procurava permanentemente obter à sua volta, foram a forma sublime com que recusou submeter-se à sua aflita dependência, que noutros planos sentiu com um desmesurado embaraço. A vergonha e humilhação transfigurou-as em magnífica arrogância com que golpeava implacavelmente quantos ameaçavam apequená-la. A terrível culpabilidade em que se consumia converteu-se em desafio e provocação com que “levantava as saias a essa podridão vestida de marido, de pai, de sacerdote” (“Madona, p. 36).
Neste precário equilíbrio entre dependência e necessidade de ser admirada, humilhação e arrogância ou mesmo culpa e desafio, Natália cumpriu-se excessiva e exuberante em cada um destes pólos antitéticos.
Alquimicando esta humaníssima dilaceração, o seu extraordinário talento marcou-lhe encontro com as próximas gerações, quando a sua vastíssima obra for conhecida, compreendida, apreciada e ocupar o lugar cimeiro que lhe pertence no panorama cultural do nosso século. O futuro deixar-se-á impregnar pela genialidade fulgurante das suas dádivas maiores: “...E à branca praia nos leva a onda materna/ Porque os deuses aí não são longínquos./ Têm seus tronos onde nos esperam/ Imutáveis os mitos” (in “O Armistício”).
É lá que a Natália Correia nos espera.
Maria Manuela Gonçalves dos Santos
Publicado na revista de Psicanálise, Psicoterapia e Desenvolvimento Humano, "Se...,Não! nº2, 2011
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