Caríssima Manuela,
Há tempos recebi de você uma carta maravilhosa sobre o cantar de Elza Soares. Você nomeava com uma propriedade espantosa e entusiasmante as qualidades poderosas e únicas dessa artista que eu também quero tanto. Preciso te dizer que reconheci um por um dos meus próprios sentimentos naquilo que você escreveu, sem tirar nem por. Você se espantava e se decepcionava com a percepção de que aquilo que nos parece acachapantemente óbvio não ressoava no comum das pessoas com a mesma intensidade. Talvez hoje em dia você tenha admitido que essa discrepância de sentimentos, e a ausência de uma entrega total à escuta de uma voz tão entregue ao canto e à vida, sejam mais comuns do parecem, e que fazem parte do modo como as pessoas se resguardam, se protegem e anestesiam. O que não é admissível, para mim, no entanto, é que eu mesmo, ao chegar de Portugal ao Brasil, daquela vez, tenha me desorganizado e deixado sua carta num lugar perdido entre tantas coisas, e não tenha te respondido à altura. Inclusive porque você pedia expressamente que as impressões fossem partilhadas. Foi um momento feliz, mas tingido de remorso, este em que eu reencontrei a carta, e em que te escrevo. Quero reparar esse silêncio de anos, agradecendo a você pelas maravilhosas palavras e gesto, como o dessa dádiva com que você multiplicou o “Do cóccix até o pescoço” pelo mundo.
Um abraço carinhoso e reconhecido
Do
José Miguel*
*José Miguel Soares Wisnik, músico, compositor, ensaísta brasileiro, professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo.
*Manuela Santos, Psicóloga, Grupanalista, Psicoterapeuta de Inspiração Psicanalítica.
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