Poema de JOAQUIM MANUEL MAGALHÃES
antes do Tsunami - UM TOLDO VERMELHO
OLHOS COR DE CHICOTE
Fiz uma casa com traves funestas
e a casa estava toda em fogo.
À hora da tarde quando o canto dos melros
e dos tentilhões começa a enlouquecer.
Por vezes a chama fugia da casa
à espera de viragem que não vinha.
A distância naufraga em soro branco,
o arbusto recolhe na falésia a profecia,
na carcuma onde a poalha não tem fim.
Torna-se ainda mais convulso
o remorso que tomba, ouvia-se
cada um dos soluços, pisados
por todos os que passavam.
Um nome ganha temor, a penumbra, o cipreste,
a crepitação das coisas que dizimam.
Um jorro negro é a sua frente.
E tu dizes-me: vais deixar
de ouvir as ondas, o verão não voltará,
podes esquecer e ser feliz.
Mas já é tarde. Não valia a pena
cada lágrima, a casa calcinada,
o bosque ao abandono, a geada no bebedouro,
o regresso de mais um sonho.
Em todos eles se liquefazem as árvores,
o torreão afogado do caminho, o curral,
o saque da fruta por larvas de uma grade.
E continua a arder no quarto
que rebenta.
Tudo se acumula na representação.
Assim um sismo
retira cidades do que foi cidade.
Então o fogo, cada uma das suas homilias,
corre pelo vazio veloz de todo o fogo.
No corpo desmantelado chamamos
à ignorância que de dentro nos mata
o destino, a casa arder,
a passageira ondulação final.
Incham os orgãos até à gangrena,
as mucosas apodrecem, os tendões
esmagam-se de encontro à terra
numa dança de cinza.
De vez em quando passam os cavalos,
vão pelo silêncio para o alto.
De cada vez os teus olhos pousam
na pradaria de silva e cana seca.
Passam os cavalos com o cavaleiro,
enredam arvoredos, o seu tropel sustém
tocas mineiras, muros derruídos, a tarde
uma canção em luta. Nada traz
nenhum aviso ao plaino ácido,
ao mundo sem açaime.
E chega o escuro
donde desaparecem os cavalos. A vigília
em ligadura, sufocações por trás do que não sabemos,
uma prag certa vez ouvida, incurável na recordação.
Líquidos que batem, molas que não agarram,
galhos donde evapora a seiva.
Uma casa arrasta para longe
do humano, a natureza traz-nos
ao que somos diante de coisa alguma.
Se eu tivesse uma máquina suspeita
que, de encontro ao pano da montanha
e do mar em seu redor, arrancasse
o que pelo sol fora abatido,
animais ominosos ouvir-se-iam de repente.
Assim, apenas em redor do meimendro
se debruçam os arcos rasteiros da arnica.
Tanto tempo os confundi com as azedas
pelo campo desarticulado.
Na cremação viscosa dos telhados,
no cerco dos olhos incapazes de seguir,
no alarme do verdete da fonte,
no túnel donde escorre a fuligem,
no perigo de passeios com cadastro
perdi todo o trevo desses lábios
que sabiam prender-se com os meus.
ALTA NOITE EM ALTA FRAGA, RELÓGIO D'ÁGUA, 2001
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