Grand Hotel København, 326
Onze horas: a tua mão adormecida marca
agora um conto de Karen Blixen
- veremos em breve essa casa cinzenta,
em Helsingør - enquanto eu ouço uma sonata
de Scarlatti tocada por Scott Ross
e sei que também isso ficarei a dever à Dinamarca.
Apontamentos culturais? Podem até chamar-lhes
assim, ignorando a áspera nudez da voz,
o grito comum que viemos suspender aqui.
Lá em baixo, por exemplo, os funcionários do
restaurante, terminado o serviço, abrem
a terceira garrafa de champanhe e fumam
ruidosamente, como se amanhã não existisse.
A questão, no fundo, é apenas esta: há momentos
em que a vida nos parece quase bela,
escolhos onde embatem as mais íntimas certezas.
Talvez adormeçamos lado a lado,
de costas para a morte, e haja corsários ao fundo,
um mar de gelo protegendo-nos da noite.
All you need is love 2
Mas não é bem assim, dir-se-á.
Vinte e seis séculos de lírica
deviam, pelo menos, provar o contrário
- na hipótese argilosa de esses
cadáveres afamados terem alguma coisa
a dizer-nos quanto ao melhor método
de atravessar ruas superpovoadas.
Onde eu te vi passar, meu amor,
com o lenço vermelho, os cabelos
mais curtos e as pernas que embora
tenazes herméticas te davam - por
assim dizer - um ar sofrível de corpo.
Não sei porque é que reparei nisso,
logo eu, logo hoje. Simples distracção da morte
- a reinvindicar uma anatomia, e paz.
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