quarta-feira, 25 de julho de 2012

Poema de José Miguel Silva




A CAMINHO DE IDAHO - GUS VAN SANT (1991)




A liberdade conjuga-se no corpo, e esses anos
de prostituto foram os mais felizes da minha vida.
Tinha na carne o livre-trânsito do sexo disponível,
o instrumento da autonomia. Viver, para mim,
era sobretudo ver - ou seja, viajar, sem bagagem
nem destino, por lugares insubmissos, de um centro
para outro centro. Era uma vida lenta, idílica,
sem compromissos. Ao mínimo sinal de enfado,
não pensava duas vezes: o primeiro comboio
ensinava-me o caminho. Ficava sempre a ganhar.
Podia passar meses numa cidade (Toulouse, Barcelona,
Roterdão) ou apenas meia noite - era comigo.
Confiava plenamente no inesperado.


E se tivesse tido a sorte de morrer em toda a firmeza
do corpo (antes dos malditos trinta anos),
não precisaria de suportar agora a indignidade
de um horário servil, o paternalismo do gerente,
o boleado tom de voz com que me perguntais
se o arroz-doce é realmente caseiro.


Telhados de Vidro, nº4, Maio, 2005

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