
quarta-feira, 22 de outubro de 2008
DESPOJOS DE UMA TRAGÉDIA DE FREDERICO NIETZSCHE
(...)
Corre a vida sem parar e os melhores amigos não sabem nada um do outro. Não é pequena habilidade viver sem que me deixe dominar pela melancolia. Frequentemente, atravesso estados nos quais quisera contrair um empréstimo com o meu velho, forte, florescente e valoroso amigo Rhodes, estados em que necessitaria duma transfusão de sangue - de sangue de leão e não de cordeiro! - e encontro-me perante o impossível, pois o meu amigo está em Tübingen, casado e rodeado de livros, isto é, inacessível para mim, por todos os motivos. Vejo, então - ai, meu amigo!- que tenho que continuar vivendo à custa das minhas próprias «reservas», ou seja (como sabem todos quantos hajam pretendido fazer idêntica experiência) bebendo o meu próprio sangue. Quando isto acontece, é preciso cuidar de não perder a sede de si mesmo, mas também de não esgotar por completo o rubro licor vital.
(...)
domingo, 19 de outubro de 2008
sábado, 18 de outubro de 2008
quinta-feira, 16 de outubro de 2008
PORQUE SEM BELEZA NÃO SE AGUENTA ESTAR VIVO
Somos tu e eu no inferno do amor.
Limpo a cinza do rosto
sem tocar a morte que o cobre.
Nenhuma experiência é igual a outra.
Dividido, o texto é um destroço.
O abismo iluminado voltou. Matar-me-ás
com beleza, beleza.
O abismo iluminado voltou.
Numa manhã a Morte sorriu.
A criança vagueava. Um homem
de encontro a outro homem na beleza
da folhagem. Serás ele. Ela.
O poema nascia, cristalino.
Não existe saída na escuridão
da página. Quisera alienar-me
com o poema. Celebrar a vida
ou vaguear até ao suicídio.
Ninguém há que seja eu. A beleza
do início fala de um lodaçal
encoberto pela bruma das palavras.
O poema é um acto insurrecto.
Chegada é a hora propícia às sombras.
Do nada estoiram visões. Impossível
esconder o rosto ou fugir ao tumulto.
As palavras agitam-se em filamentos
de luz. O poema transforma
o nosso rosto naquele que desconhecemos.
Necessito de beleza, fortalece-me
a destruição, o desejo.
Ardem as páginas sob o gesto
frio da mão que escreve.
O menino louco. À sua infância
foi dado mais um ser que amou
inteiro. Há uma espécie de anestesia
que é também autismo. Crianças
com seus trajes fúnebres, grinaldas.
Por vezes tudo é ruína.
Esqueci-me das palavras
do passado. Não soube prescindir da beleza.
O teu corpo
agora menos só. Digo-te que desistas.
És desconhecida de ti.
Eram palavras brancas desenhadas a pincel.
Uma menina passou em busca de beleza.
Recolhia desencantos, visões. Nada sabia
do sentido do tempo. Pérolas rolavam
em direcção ao seio da mulher.
Rimo-nos primeiro com essa alegria
do princípio. E a tarde caía como nos romances.
a minha palavra favorita, Edição Jorge Reis-Sá, Centro Atlântico.pt
COMO ESTAVA AZUL, O CÉU
Encontro. A figura refere-se aos momentos felizes que imediatamente se seguiram ao primeiro encantamento, antes de nascerem as dificuldades da relação de amor.
Embora o discurso do amor não seja senão uma poeira de figuras que se agitam segundo uma ordem imprevisível à maneira do voltear de uma mosca num quarto, posso atribuir ao amor, pelo menos retrospectivamente, imaginariamente, uma transformação organizada: é por este fantasma histórico que por vezes me preocupo: uma aventura. A evolução de amor parece então seguir três etapas ( ou três actos) : é, inicialmente, instantaneamente, a captura ( sou seduzido por uma imagem) ; sucedem-se então vários encontros ( combinações, telefonemas, cartas, pequenos passeios) durante os quais «exploro» com embriaguez a perfeição do ser amado, isto é, a inesperada adequação de um objecto ao meu desejo: é a doçura do princípio, o característico período do idílio. Este tempo feliz adquire a sua identidade ( a sua clausura) por oposição (pelo menos na recordação) à «continuação»: a «continuação» é a longa cadeia de sofrimentos, dores, angustias, depressões, ressentimentos, desesperos, embaraços e armadilhas de que sou vitima, vivendo então permanentemente sob a ameaça de uma decadência que atingiria ao mesmo tempo o outro, eu próprio e o prestigioso encontro que nos fez descobrir um ao outro.
Rolland Barthes, Fragmentos De Um Discurso Amoroso
ROLAND BARTHES
FRAGMENTOS DE UM DISCURSO AMOROSO
A solidão do apaixonado não é uma solidão de pessoa (o amor confia-se, fala-se, conta-se), é uma solidão de sistema (talvez porque sou incessantemente abatido pelo solipsismo do meu discurso). Difícil paradoxo: posso ser ouvido por todos (o amor vem dos livros, o seu dialecto é corrente, mas só posso ser escutado (recebido «profeticamente») pelos sujeitos que têm exactamente e presentemente a mesma linguagem que eu. Banquete de Platão -Os apaixonados, diz Alcibíades, assemelham-se aos que foram mordidos por uma víbora: «Não querem, diz-se, falar do seu acidente a ninguém, excepto àqueles que dele também já foram vítimas, por serem estes os únicos capazes de compreender e desculpar tudo o que aqueles ousaram dizer e fazer sob o efeito das dores»: miserável tropa dos «Defuntos famílicos», dos Suicidas de amor ( quantas vezes se não suicida um mesmo apaixonado?), a quem nenhuma grande linguagem ( se não for, fragmentariamente, a do Romance passado) empresta a voz.
quarta-feira, 15 de outubro de 2008
Regresso
As estátuas foram as primeiras a partir. Depois
foi a vez das árvores, dos homens, dos animais. O local
tornou-se deserto. Não havia vento.
Jornais e lixo corriam pelas ruas.
À noite, as lâmpadas acendiam-se sozinhas.
Um homem chegou, deitou um olhar em redor,
tirou uma chave, enterrou-a no chão
como se a devolvesse a qualquer mão subterrânea
ou plantasse uma árvore. Depois ergueu-se, subiu
a escadaria de mármore e demoradamente olhou a cidade.
Uma a uma, com parcimónia, as estátuas regressaram.
Tradução de Eugénio de Andrade
domingo, 12 de outubro de 2008
na morte de Mário Cesariny
corpos visíveis,
nobilíssimos,
inseparável luz que move as coisas,
ter um inferno à mão seja qual for a língua,
toda a água é inocente e escoa-se entre as unhas,
à porta do forno crematório alguém lhe toca,
vai lá, vai que te acolham, brilha, brilha muito, brilha tanto
/quanto não possas,
brilha acima,
faz brilhar a mão que melhor redemoinha,
a mão mais inundada,
e ele entra sem esperança nenhuma,
só na última linha quando o coração rebenta,
reconhece quem o olha
Herberto Helder , A Faca Não Corta o Fogo
(súmula & inédita)", 2008, Assírio & Alvim
sábado, 11 de outubro de 2008
SOBRE MIM A TUA BOCA
Do lodaçal deserto onde
a luz se confunde com o breu,
caminhei à procura do dia.
Cada segundo, uma facada
no coração. O sono fugia
e eu queria matar
o lodo entranhado na minha vida.
Agora, o calor e a luz
secam as lágrimas. Passam
os carros, inteiros são os dias.
A tua boca perfeita
sobre mim
parece a eternidade.
Historical Portraits

Entrevista de Cindy Sherman
(fragmento)
Margarida de Medeiros
Fotografia e Narcisismo
O auto-retrato contemporâneo
Assírio & Alvim
Cindy Sherman - Para mim , toda a ideia de nudez em arte é muito aborrecida, porque está muito ligada à glorificação do corpo da mulher, e em certos casos ligada ao erotismo. A representação do homem nu na arte não parece estar relacionada eroticamente com as mulheres, não é a mesma forma de erotismo. Parece mais uma afirmação de grandeza e de força. Agora é diferente, mas continua a não estar relacionada com as mulheres, mas com os homens, na homossexualidade, o que é uma coisa em que estou a trabalhar mais recentemente. A ideia de incorporar a nudez no meu trabalho nunca teve a ver com a ideia de me revelar a mim mesma. Houve pessoas que me falaram disso, por que é que não aparecia a minha nudez, mas nunca achei que isso fosse uma forma de me revelar. Por isso, as próteses que surgem, as barrigas, os seios, é uma forma de falar da nudez, preservando um lado composto, artificial, sem ter de usar a minha própria nudez.(...) Mas para mim faz muito mais sentido usar próteses, até porque acho que há algo de tão artificial na representação tradicional da nudez, desde há séculos!...Ou mesmo nas revistas de nus, tudo aquilo é tão artificial, as mulheres não se parecem com aquilo.
quinta-feira, 9 de outubro de 2008
quarta-feira, 8 de outubro de 2008
domingo, 5 de outubro de 2008
publicado na revista RELÂMPAGO nº18, Abril de 2006
A VERDADEIRA BIOGRAFIA
A minha biografia
é evidentemente excepcional.
Tive um Pai uma Mãe
nasci numa Casa
fui à Escola da vila
depois do concelho.
Mudei de distrito para
continuar
e o caminho da instrução
concretizou-se na Faculdade
de Belas Artes.
Da infância passada em plena
Natureza lembro
a beleza das estações do ano
os rituais católicos
uma criada preferida
o instante em que aprendi a ler.
Chegou a adolescência
e com ela a certeza
Quero ser professora de Desenho.
Suponho que a Biblioteca
me salvou do desastre
interior.
Tinha dezassete anos
e requisitei "Uma Época
No Inferno" de um rapazito
chamado Jean-Arthur Rimbaud.
Na Biblioteca o empregado
olhava-me sempre com reserva.
Eu estudava o quê?
Um dia livros de medicina
outro dia de poesia.
Então a ciência é poética?
A entrada na vida adulta
aliada à independência
e ao amor: O meu país
sofreu uma revolução. A democracia
não honrou ainda a sua palavra.
Cumpro deveres e não posso
usufruir de direitos proporcionais.
Eu e alguns milhares
neste sentimental canto
europeu sob um regime
semiditatorial
contribuo
para a sopa e os vícios
de alguns milhares de parasitas.
Mudando de assunto a pátria
é grande e a família também.
Para mim já passou
o meio século. Já foi o Pai
a Mãe e o Irmão mais velho.
Estou por cá à espera
certamente.
Não é provável que me entregue.
Conheci o galinheiro do confessionário
ajoelhei-me diante do altar
da virgem. Apaixonei-me.
Também recebi um terço de prata
no dia da comunhão solene.
E na hora exacta o óleo
perfumado do crisma.
Sempre que vou a uma missa
de corpo presente lá está o mesmo altar
com a deslumbrante
virgem. Entretenho-me
a recordar que já tive
quinze anos e também
adorei.
Depois a Páscoa a soturna
via sacra onde sofria
pela minha dor
e as beatas exibiam lágrimas
como dádiva pelo calvário
a que Jesus foi sacrificado.
Jesus era belo na sua passividade.
Os longos cabelos
o olhar suplicante
as pernas
o tronco liso
o ventre. Por fim
a entrega. Braços abertos
para o bem e para o mal.
Agora neste dois mil e seis
trata-se de insistir. Já é tarde
para quase tudo.
Os meus contemporâneos alimentam
uma curiosidade fétida.
A obra é minha. Faço
o que quero. Escondo
rasgo
mostro
transformo
entrego ao crematório
deixo aos herdeiros
ao vaticano
não deixo.
Nunca esmolei. Não fui pobre.
Mas os sinais da exclusão
o ódio é tão luminoso
que seria patético
psicotisante até
não articular sequer
estes versos
antes da eutanásia.
sábado, 4 de outubro de 2008
Fragmento do livro O Prazer de Fumar Cigarros de JAMES FITZGERALD
(...)
Mais de metade da turma, mas sobretudo a maioria dos meus amigos, tinha tomado a decisão de fumar e ia para o monte. Os reis do monte ou tinham conseguido ser admitidos muito cedo ou não estavam a pensar na faculdade, personagens pretas e brancas que fumavam, todas, Camel. Eu queria entrar naquele grupo de rebeldes. Comecei a cravar cigarros e a andar com eles a cantar canções de Bob Dylan ( que tinha aparecido na capa da revista Life com uma camisa de trabalho estilo Woody Guthrie a fumar um Camel ) e a praguejar em silêncio contra aquele curioso processo por que estávamos a passar - crescer. Nessa altura, o tempo passou depressa . Ia para a faculdade. Após três dias de adaptação, assinatura de documentos e escolha do programa, (...) fui para o edifício da associação de estudantes e comprei o meu primeiro pacote de cigarros. Tinha chegado. Era oficial. Na faculdade, os cigarros adaptavam-se a qualquer situação e a qualquer pessoa com quem se estivesse. Fumava cigarros sem filtro quando tinha de ficar a pé toda a noite, cigarros com filtro na aula do professor liberal de Filosofia, que nos deixava fumar ao mesmo tempo que ele fumava e nos ensinava os meandros do pensamento Kierkegaardiano. Os de mentol eram para o dia seguinte e para gargantas inflamadas; havia Marlboro nas máquinas de cigarros dos bares (...) Todos cravávamos cigarros uns aos outros e passávamos alegremente o tempo de faculdade a fumar. (...) Tinha um isqueiro há dois anos que conseguira não perder e fixara-me numa marca específica; até era conhecido pela minha marca. A opção foi pelos Camel: era exótico, duro (adoro a cor amarela) e a minha mãe fumava-os - uma vez disse-me que eles provocavam sempre a mesma reacção: « Ah, fuma Camel?» As pessoas conheciam-me e identificavam-me com aqueles Camel, ainda que eu experimentasse outras marcas...