quarta-feira, 25 de julho de 2012

Trabalho plástico de Isabel de Sá

Poema de José Miguel Silva




A CAMINHO DE IDAHO - GUS VAN SANT (1991)




A liberdade conjuga-se no corpo, e esses anos
de prostituto foram os mais felizes da minha vida.
Tinha na carne o livre-trânsito do sexo disponível,
o instrumento da autonomia. Viver, para mim,
era sobretudo ver - ou seja, viajar, sem bagagem
nem destino, por lugares insubmissos, de um centro
para outro centro. Era uma vida lenta, idílica,
sem compromissos. Ao mínimo sinal de enfado,
não pensava duas vezes: o primeiro comboio
ensinava-me o caminho. Ficava sempre a ganhar.
Podia passar meses numa cidade (Toulouse, Barcelona,
Roterdão) ou apenas meia noite - era comigo.
Confiava plenamente no inesperado.


E se tivesse tido a sorte de morrer em toda a firmeza
do corpo (antes dos malditos trinta anos),
não precisaria de suportar agora a indignidade
de um horário servil, o paternalismo do gerente,
o boleado tom de voz com que me perguntais
se o arroz-doce é realmente caseiro.


Telhados de Vidro, nº4, Maio, 2005

Poema de Manuel de Freitas



OS VELHOS DE VILA REAL



                         para o A.M.Pires Cabral



É à sombra, no improviso
de esplanadas contíguas
a tabernas, que preferem acabar
a vida. Já não bebem, pouco
dormem - o futuro é uma beata
que lhes caiu das mãos.



A minha vida acabou mais cedo,
mas não faço disso lamento.
Foi sempre inútil termos estado aqui
e nenhum chão, por muito que invoquemos
o cansaço, acolhe o desejo de não ser,



os meus indesejados versos.



Telhados de Vidro, nº4, 2005

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Poema de João Borges



A FIGURA E O SEU DUPLO*



Espelho

enquanto alguns rostos

são devorados pelas trevas,

outros se mostram à luz.

Não tens esperança,

por que fechas os olhos?





Espelho

por que mostras um acrobata
paralisado?

Porquê essa inclinação

para a sepultura?





Espelho

não esqueces, ficas à espera,
os dias perdidos.



*título de uma pintura de Graça Martins


Lisboa, 20.4.10

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Joana Amaral Dias

Maníacos de Qualidade - Joana Amaral Dias

Às vezes é assim, a vida dá muitas voltas, fica-se ocupada com coisas várias e até a leitura de um livro é adiada. Foi o que aconteceu com o livro da Joana Amaral Dias. Terminei hoje a sua leitura, e o livro foi adquirido em 2010, com dedicatória da autora de 9 de Julho de 2010. Gostei imenso do livro e as páginas dedicadas ao Fernando Pessoa são muito cuidadas. Admiro imenso o Fernando Pessoa e, para mim é o único GÉNIO português! A sua OBRA, a sua VIDA foram um exemplo de genialidade absoluta!!!! Fiquei triste, muito triste, quando terminei as páginas dedicadas ao Fernando Pessoa. O Super-Camões que não encontrou a alma gémea. Que desde muito cedo, aos seis, anos inventou o Chevalier de Pas, o 1º heterónimo, criado na Rua de São Marçal, perto do Príncipe Real. Tinha nascido na casa perto do Largo de S.Carlos, onde viviam a avó paterna, duas empregadas e os pais, mas o pai morreu, vitima de tuberculose, tinha o Pessoa cinco anos e mudaram-se para a Rua de São Marçal. Teve uma infância atravessada por demasiadas perdas, mortes, lutos, ausências. A sua solidão era do tamanho do mundo. Morreu com 47 anos.

« A única compensação moral que devo à literatura é a glória futura de ter escrito as minhas obras presentes.»

(...) "Realmente Pessoa tinha uma ideia grandiosa de si mesmo e caracterizava-se por uma crença inabalável em si próprio. E se esses traços o defendiam da dor, também o colocavam a coberto do fracasso emocional. Quando o poeta afirma que não aprofunda as suas relações porque «tem mais que fazer», porque é à sua obra que deve dedicação e prioridade, está também a dizer que as falhas nas suas relações não se devem às suas dificuldades. Existem, mas não porque ele não consegue. Apenas porque ele não quer. Tal como se resguardou do sofrimento consequente ao suicídio de Sá-Carneiro, escudando-se no esoterismo, Pessoa defendeu-se toda a vida de amar, optando pela abstinência sexual e até emocional. O poeta preferia esse regime a experimentar penar e errar, como seria fatal caso ensaiasse esses laços."

« Em torno de mim está-se tudo afastando e desmonorando. (...) Que serei eu daqui a dez anos - de aqui a cinco anos, mesmo? Os meus amigos dizem-me que eu serei um dos maiores poetas contemporâneos...(...) Mas sei eu ao certo o que isso, mesmo que se realize, significa? Sei eu a que isso sabe? Talvez a glória saiba a morte e a inutilidade, e o triunfo cheire a podridão.»

(...) Pessoa não era um homem extrovertido, nem tão-pouco alguém para quem fosse prioritária a vida de sociedade. Porém, é um mito que fosse alguém extremamente isolado, fechado sobre si próprio e parco em contactos. Essa imagem foi, em parte, alimentada pelo próprio e, por outro lado, construida por Gaspar Simões. Afinal, é o poeta, ele mesmo, que escreve palavras como:

« Estou cercado de amigos que não são amigos e de conhecidos que não me conhecem.»

Super- Camões morreu num pequeno hospital em Lisboa, no centro do Bairro Alto. (...) Dias antes de falecer, Pessoa ainda fora ao café Martinho da Arcada, onde conversara com Almada Negreiros. (...) Segundo Murteira França (1987:16), o último gesto de Pessoa antes de morrer foi pedir os óculos e escrever, em Inglês: «Não sei o que o amanhã trará.»
O enterro realizou-se no dia 2 de Dezembro e Pessoa foi sepultado no jazigo de Dionísia, a sua avó louca, no Cemitério dos Prazeres em Lisboa. Cinquenta anos depois, o seu corpo foi transladado para o Mosteiro dos Jerónimos (poderia ter ido para o Panteão...), o que não deixa de ser irónico, já que Pessoa nunca comungou da fé cristã. Sarcástico se pensarmos que São Jerónimo se flagelou pelos pecados do mundanismo. Pessoa não se açoitava por tais tentações porque impunha a si mesmo uma disciplina despótica que evitava qualquer pecadilho. Sardónico se considerarmos que Jerónimo é o padroeiro dos tradutores, actividade que o Super-Camões prosseguiu como mero ganha-pão.
Diz-se que, nesta mudança, não foi descoberto um esqueleto, como seria expectável, mas um corpo mumificado. Quase tão mítico como o de Afonso VI. Ou até de D.Sebastião. E Pessoa está sepultado, naturalmente, entre o túmulo de Vasco da Gama e o de...Camões. (...)

fragmento do livro Maníacos de Qualidade de Joana Amaral Dias - Portugueses célebres na consulta com uma psicóloga, editado pela A Esfera dos Livros, 2010, Lisboa.

sábado, 14 de julho de 2012

Rui Paes

Konstadinos Kavafis

FUI


Não me manietei. Dei-me totalmente e fui.
Aos deleites, que metade reais,
metade volteantes dentro da minha cabeça estavam,
fui para dentro da noite iluminada.
E bebi dos vinhos fortes, tal
como bebem os denodados do prazer.



Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis
Relógio D'Água Editores, 1994

A propósito do livro de CULTO - Anti- Édipo/Capitalismo e Esquizofrenia de Gilles Deleuze & Felix Guattari

O Anti- Édipo, escrito numa altura de forte contestação social (anos 80), depressa se tornou num livro de culto. Os seus autores, Gilles Deleuze e Félix Guattari, adquiriram o estatuto de estrelas intelectuais, ao desconstruir a Psicanálise, e ao introduzir uma Esquizoanálise do Capitalismo, mas face ao cinismo dos anos 80 e à  insatisfação dos anos 90, as suas teorias eram muitas vezes acolhidas com sarcasmo. No entanto, em 2012, no centro de uma crise financeira sem precedentes, e num contexto onde a natureza anti-democrática dos fluxos monetários anónimos é cada vez mais criticada,  esta obra está de novo na luz da actualidade!!!! Um livro muito interessante. Li-o nos anos 80 e chamo a atenção para uma leitura atenta e criativa. Às vezes basta um parafuso de uma engrenagem desacertar para comprometer todo o SISTEMA!!!!

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Francis Campbell Boileau Cadell

Um belo Soneto de Shakespeare

XVIII

Devo igualar-te a dia de Verão?
És mais encantador, mais temperado:
Em Maio, o vento agita-lhe o botão,
E o bem do Estio foge apressurado.

Sei que o olhar do Céu chega a queimar,
E o seu aspecto de  ouro se embacia;
O belo pode às vezes declinar,
Se acaso a Natureza se transvia:

Mas teu eterno Estio não se vai,
Nem perdes a beleza que deténs;
Da Morte o manto sobre ti não cai,
Se em verso perdurarem os teus bens:

Enquanto alguém respire e possa ver,
Enquanto isto existir, hás-de viver.



Tradução em verso de Maria do Céu Saraiva Jorge

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Exposição de Luís Manuel Gaspar - Um Lugar nos Olhos - Biblioteca Nacional, Campo Grande, 83, Lisboa - 2 de Julho a 31 de Agosto

"Como nenhum outro ilustrador, o essencial da sua obra pode ser encontrado algures entre a Natureza e a palavra (nos livros de poesia, capas e miolo; dando rosto aos volumes de ficção; em livro infantil com animais; nas bandas desenhadas que ilustram poemas de Sophia, Pessoa, O’Neill entre tantos outros). luis_m_gaspar_capa2Uma parte deste campo visual radica no naturalismo mais despojado, aqui e ali retocado pelas cores vibrantes do acrílico. São lugares (recantos de cidade) e paisagens (de beira-mar), gatos em diversas poses com todos os pêlos (sim, contei-os…), moscas ou objectos. E retratos, de escritores ou de felídeos. A riqueza de pormenor vai do cenário de ópera íntima à dentição completa do peixe. A segunda parte acomoda-se na gaveta dos surrealismos, como se as gralhas dos textos se transfigurassem em híbridos do mundo natural. Tenho-os no aconchego da mão e não me canso de os mirar: aracnídeos em flor, ramos secos que se locomovem em patas de aranha, pássaros que se desfazem em estames e corolas, ausências de branco no coração de um bailado de folhas. Neste reino desenhado de Gaspar com pujante ciência, animal e vegetal e inanimado fazem-se criatura única que evolui perante os nossos olhos na superfície do papel. Uma composição por vezes abstracta que faz todo o sentido. O que parecia arbitrária conjugação de factores pulsa uma naturalidade óbvia, que parece dizer-nos, então não tinhas reparado que os gravetos de pinho são invertebrados de exoesqueleto quitinoso?"

João Paulo Cotrim