terça-feira, 30 de setembro de 2008
domingo, 28 de setembro de 2008
DOSTOIEVSKI
a voz subterrânea
(...)
Olhai bem! Hoje em dia nem sequer sabemos onde se esconde a vida, o que é, como se chama. Se nos abandonarem, se nos tirarem os livros, ficaremos imediatamente desasados, confundimos tudo, não sabemos para onde ir, como comportar-nos, o que devemos amar, o que devemos odiar, o que devemos respeitar, o que devemos desprezar. Até nos é penoso ser homens, homens possuindo corpo e sangue próprios; temos vergonha disso, consideramos isso um opróbio e sonhamos vir a ser uma espécie de seres abstractos, universais. Nós somos nados-mortos, e já há muito que não nascemos de pais vivos, o que sobretudo nos agrada; gostamos disso. Em breve encontraremos um meio de nascer directamente de uma ideia.
Mas basta! Já não quero fazer ouvir mais a minha «voz subterrânea».
(...)
Trad. Célia Henriques/Vitor Silva Tavares, edição & etc, 1989, Lisboa
sábado, 27 de setembro de 2008
Fragmento de Uma paixão inocente de
JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE
Servia-me chá de verbena e laranja. Dizia-me:« A beleza não é uma questão de estética, é uma questão de metafísica» Sei que com esta frase queria, de facto, dizer-me não ser a beleza uma transformação empírica aberta a toda e qualquer possibilidade. Havia qualquer coisa que enviava para uma ideia definitiva do belo e onde, o seu caminho, o seu olhar procurava o que poderia haver de imutável no ser imutável da arte.
-«Deixe lá, importa pouco o que digo. Venha antes até esta janela para ver o movimento do porto. Mas deste lado pouco podemos aperceber. Os barcos estão acostados e envolve-os o silêncio, que é o sentimento da sua superioridade.»
E nos barcos eu apenas via de muito longe em longe passar um cão de marinheiro; fora as muitas gaivotas que quebravam, com o seu traço, o exaltado azul do céu e o reflexo verde das águas do rio. A luz do meio-dia crescia sobre os ombros, dominava desde aquela janela a solar realidade e a bem estranha criatura que eu acabara de conhecer. De conhecer?
De conhecer, como? se em todos os seus movimentos os traços se decompunham e o que mantivera, o que mantinha aquele seu corpo era a estreita fórmula da beleza. E o repouso que fôra o sustentáculo dessa mesma beleza - e ainda o era -, mostrava-se como a calma do próprio rio, um mar de sua condição. O repouso permitia a sua forma humana e o rosto exibia o espelho do seu espírito, no qual a unidade e a indiferença transpareciam o mais verdadeiro.
Posso dizer que naquela criatura dominando o rio e o porto e a cidade baixa e ribeirinha; aquela criatura que me mostrava a sua janela, inventara as suas regras e o caos do seu querer. O rosto era o repouso e a calma; mas o seu rosto também seria o espelho de contrastes violentos e de inabituais acções.
Voltou a servir-me chá. Fê-lo com a convicção de quem está na posse de uma ciência da vida: suspendeu o coador sobre a minha chávena para que nenhuma folha caísse; deixou o perfume da verbena e da laranja ganhar um reflexo poético. E nem sei porque digo «um reflexo poético» ao tentar narrar uma tão simples vista de janela, ao colocar uma chávena de chá sobre um pires marcado por um fugitivo vinco amarelo. (...)
Livros Cotovia, Lisboa, 1989
sexta-feira, 26 de setembro de 2008
Traduzidos por Eugénio de Andrade
GAZEL DO MENINO MORTO
Todas as tardes em Granada
todas as tardes morre um menino.
Todas as tardes a água se senta
a conversar com os seus amigos.
Os mortos levam asas de musgo.
O vento enevoado e o vento limpo
são dois faisões voando pelas torres,
e o dia , esse é um rapaz ferido.
Não ficava no ar nem fibra de calhandra
quando nos encontrámos nas grutas do vinho.
Não ficava na terra migalha de nuvens
quando tu te afogavas no rio.
Um gigante de água caiu sobre os montes
e o vale foi rodando com cães e com lírios.
Teu corpo, com a sombra violeta de meus dedos,
era, morto na margem, um arcanjo de frio.
A noite não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.
Porém eu irei,
embora um sol de lacraus me devore a fronte.
Porém tu virás
com a lingua queimada por chuva de sal.
O dia não quer vir
para que tu não venhas,
nem eu possa ir.
Porém eu irei,
entregando aos sapos meu cravo mordido.
Porém tu virás
pelas turvas cloacas da obscuridade.
O dia e a noite não querem vir
para que por ti morra
e tu morras por mim.
Não me leves a lembrança.
Deixa-ma só no meu peito,
frágil cerejeira branca
no martírio de janeiro.
Só me separa dos mortos
um muro de pesadelos.
Dou mágoas de lírio fresco
a um coração de gesso.
Meus olhos, como dois cães,
a noite toda no horto.
A noite inteira, correndo
por uns frutos de veneno.
Algumas vezes o vento
é uma tulipa de medo,
é uma tulipa doente,
a madrugada de inverno.
Um muro de pesadelos
me separa dos defuntos.
A névoa cobre em silêncio
teu corpo, vale cinzento.
No arco do nosso encontro
a cicuta cresce agora.
Deixa-me a tua lembrança,
deixa-me só no meu peito.
quarta-feira, 24 de setembro de 2008
segunda-feira, 22 de setembro de 2008
domingo, 21 de setembro de 2008
Dois fragmentos do livro o nosso reino de valter hugo mãe
era o homem mais triste do mundo, como numa lenda, diziam dele as pessoas da terra, impressionadas com a sua expressão e com o modo como partia as pedras na cabeça e abria bichos com os dentes tão caninos de fome.
era o homem mais triste do mundo, diziam , não faz mal a ninguém, mete dó, tinha olhos de precipício como se vazios para onde as pessoas e as coisas caíam em desamparo. mas era impossível não os fitarmos, fascinados por eles como ficávamos, e era com eles que iluminava o caminho à noite, garantiam alguns, quando se embrenhava pelo mato em direção à sua cabana secreta, ou cova, toca o que pudesse haver para lá do emaranhado desconhecido de onde vinha . era com os olhos, como lanternas, que competia com os bichos da noite, perplexos com tal ser.(...)
(...)desde há semanas que não me confessava ao padre, que estava absolutamennte possesso pela falta. exigi-o, se me obrigarem a confessar-me ao padre salto do rochedo e morro. salto o lado das as pedras, bato com a cabeça e morro. estive dois dias a silêncio, pão e água, por pecar o pecado da desobediência. mas não estava a brincar, era a minha força toda, não falarei com o padre filipe que me bate, é mau, precisa de ser salvo, não pode salvar. assim. passei o verão a frequentar a missa e a subir mais cedo à merciaria para o bolo de sempre, por vezes, a medo, ouvia o canto final do senhor hegarty já ao pé da porta, como o avanço de uma lebre na corrida. (...)
sexta-feira, 19 de setembro de 2008
NOVA CARTA AOS PSIQUIATRAS
Disseram que ia ser confortável, que ia ficar tranquilo
Deram-me os vossos comprimidos:
Quero masturbar-me e não posso
Onde está a minha solidão? Quero a minha solidão
Onde está a minha angústia? Quero a minha angústia
Onde está a minha dor? Quero a minha dor
Deram-me os vossos comprimidos:
Engordei e fiquei lustroso como um gato a quem tivessem cortado os tomates
SIÃO, org. Al Berto, Paulo da Costa Domingos, Rui Baião, Lisboa, 1987