sábado, 29 de novembro de 2008
Réquiem por Ruth Handler
Morreu ontem a mãe da Barbie,
a boneca adolescente. À semelhança de
Atena, Barbie saiu armada dum
cérebro, não divino, mas industrioso,
com a longa cabeleira e a azúlea mirada.
Morreu a mãe da Barbie, a filha
que nunca será órfã, pequeno duende
de sutiã 38 e de 33 polegadas
de altura. Trinta e três polegadas
multidesejantes de sonho
anatomicamente impossível.
Morreu a mãe da Barbie, que
faz balé, esqui, patins em linha e
todos os desportos radicais e tem
um namorado elegante que jamais
a trairá e amigos tão anatomicamente
imperfeitos como ela.
Morreu a mãe da Barbie, que vai
a todas as festas com muitos
vestidos de gala e emagreceu
há uns anos, qual Naomi Campbell, para
ser consumida pela boa
consciência racial do Ocidente.
Morreu a mãe da Barbie, que jamais
a viu, assim anatomicamente imutável,
padecer de uma gravidez adolescente.
A Barbie é sabida e deve ter tido educação
sexual. Que fará ela com o Ken
no regresso de tantas festas?
Nem paixão nem desgosto nem fome
ou uma boa sova dos adultos alteram
a sua fábula de plástico, muito menos
fabulosa do que a de Branca de Neve ou a
da Bela Adormecida, onde existiam
humanas bruxas, vencidas maldições
e príncipes que davam beijos para acordar.
Morreu a mãe da Barbie, cedo demais
para inventar uma Barbie de burka,
ou com explosivos escondidos no cinto. No
fim da vida continuava a vender milhões
de próteses mamárias, na seqüência da sua
própria mastectomia. Coisas sem brilho,
impossíveis de acontecer à Barbie.
quarta-feira, 26 de novembro de 2008
segunda-feira, 24 de novembro de 2008
POESIA
IN PROGRESS
Dia 27 de Novembro
Quinta-Feira
21.30h.
Café Progresso
Porto
Poemas de Natália Correia, Isabel de Sá, Florbela Espanca, Ana Luísa Amaral, Sophia de Mello Breyner, Catarina Nunes de Almeida,Helga Moreira, Eduarda Chiote, Inês Lourenço, Graça Pires, Fiama Hasse Pais Brandão, Maria do Rosário Pedreira,Adília Lopes, Irene Lisboa, Maria Albertina Mitelo.
Leitura de poemas por:José Carlos Tinoco, Susana Guimarães, Ana Afonso, André Sebastião, Olga Oliveira, Rui Fernandes, Celeste Pereira, João Borges.
Acompanhamento Musical: Orlando Mesquita - viola
Abri a caixa de cigarrilhas café crème
no jantar de aniversário. Na tua gravata
o alfinete, um triângulo de oiro
que ela trouxera nessa manhã.
Por fim ofereci-lhe o poema, depois
arrependi-me. O tempo passou
e então ela trocou-me
por um bocado de caça envenenada.
O Brilho da Lama, & etc, 1999, Lisboa
Dir-me-ás que a paixão se desfez,
que já esqueceste o nome e os poemas.
Dir-me-ás
que não queres a loucura
dos sentidos, que tens medo
e foges na direcção do pântano
onde o brilho da lama
serve a exclusão.
Entre nós o mundo, outro amor,
a curva da tua nuca e esse olhar
de quem acorda lentamente. De mim
o corpo defendia-se do escuro enquanto
o tempo sepultava na cinza a nossa pele.
Um lençol de sombra sobre as pernas
no tumulto onde ardia o coração.
Molhar as mãos de lágrimas só reacende
a mágoa de viver depois de ter acontecido.
Importa lembrar o sucesso, o esplendor
do instinto que nos levou ao encontro.
O Brilho da Lama, & etc, 1999, Lisboa
sábado, 22 de novembro de 2008
DETONAÇÃO
De repente a luz branca
cobriu
as casas.
Um segundo isolado no tempo:
detonação
Senti toda a cidade
estremecer.
Relembrei cada rua
onde a distância
preenche os nossos passos, as palavras,
a escuridão
a dois, da mesma boca
o beijo e os poemas. Mas é agora
cruel e despida
a realidade. Nunca soube encarar
confesso,
a forma como
me sorrias, a superfície quente do teu corpo,
a frieza dos teus lugares
e mais que tudo
a imobilidade do teu amor.
Neste mundo escuro e destruído
devo caminhar
pelas canções tristes,
pelas tardes cinzentas.
Pela consequência da explosão. Não é
mentira
quando te digo
que não perco tempo a chorar:
o choro és tu.
Chorar
é não esquecer cada uma
das camas em que me deste vida, cada um
dos sítios onde o teu amor
traía os dias.
Doeu-me ver despertar
o que dentro de mim dormia
mas nada mais
me doi.
Nem o abandono ao deserto.
Vejo a claridade algures
num céu longínquo
e não quero ficar neste lugar
onde o sangue me seca
as mãos
e cardos me ferem
o corpo.
quarta-feira, 19 de novembro de 2008
terça-feira, 18 de novembro de 2008
A CÂMARA CLARA
de ROLAND BARTHES
(...) Todavia, quando se trata de uma pessoa - e já não de uma coisa - a evidência da Fotografia tem todo um outro sentido. Ver fotografados uma garrafa, um ramo de íris, uma galinha, um palácio, apenas compromete a realidade. Mas um corpo, um rosto e, mais ainda, tantas vezes os de um ser amado? Uma vez que a Fotografia (é esse o seu noema) autentifica a existência de tal pessoa, eu quero encontrá-la por inteiro, isto é, na essência, «tal como ela própria é», para além de uma mera semelhança, civil ou hereditária. Aqui , a crueza da foto torna-se mais dolorosa, porque ela só pode responder ao meu desejo louco através de qualquer coisa de indizível: evidente (é a lei da fotografia) e, contudo, improvável (não posso prová-lo). Esse qualquer coisa é o ar.
O ar de um rosto é indecomponível (a partir do momento em que posso decompor, eu provo ou recuso; em suma, duvido, afasto-me da Fotografia que, por natureza, é toda a evidência: a evidência é aquilo que não quer ser decomposto). O ar não é um dado esquemático, intelectual, como o é uma silhueta. O ar também não é uma simples analogia - por muito avançada que seja - como o é a «semelhança». Não, o ar é essa coisa exorbitante que leva do corpo à alma - animula, pequena alma individual, para uns boa, para outros má. (...) O ar é, assim, a sombra luminosa que acompanha o corpo; se a foto não consegue mostrar esse ar, então o corpo vai sem sombra, e, uma vez cortada essa sombra, como no Mito da Mulher sem Sombra, nada mais resta do que um corpo estéril, é através desse umbigo subtil que o fotógrafo dá vida. Se ele não sabe, ou por falta de talento ou por falta de oportunidade, dar à alma transparente a sua sombra clara, o sujeito morre para sempre. (...)