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NA MORTE DE MARILYN
Morreu a mais bela mulher do mundo
tão bela que não só era assim bela
como mais que chamar-lhe marilyn
devíamos mas era reservar apenas para ela
o seco sóbrio simples nome de mulher
em vez de marilyn dizer mulher
Não havia no fundo em todo o mundo outra mulher
mas ingeriu demasiados barbitúricos
uma noite ao deitar-se quando se sentiu sozinha
ou suspeitou que tinha errado a vida
ela de quem a vida a bem dizer não era digna
e que exibia vida mesmo quando a suprimia
Não havia no mundo uma mulher mais bela mas
essa mulher um dia dispôs do direito
ao uso e ao abuso de ser bela
e decidiu de vez não mais o ser
nem doravante ser sequer mulher
O último dos rostos que mostrou era um rosto de dor
um rosto sem regresso mais que rosto mar
e toda a confusão e convulsão que nele possa caber
e toda a violência e voz que num restrito rosto
possa o máximo mar intensamente condensar
Tomou todos os tubos que tinha e não tinha
e disse à governanta não me acorde amanhã
estou cansada e necessito de dormir
estou cansada e é preciso eu descansar
Nunca ninguém foi tão amado como ela
nunca ninguém se viu envolto em semelhante escuridão
Era mulher era a mulher mais bela
mas não há coisa alguma que fazer se certo dia
a mão da solidão é pedra em nosso peito
Perto de marilyn havia aqueles comprimidos
seriam solução sentiu na mão a mãe
estava tão sozinha que pensou que a não amavam
que todos afinal a utilizavam
que viam por trás dela a mais comum imagem dela
a cara o corpo de mulher que urge adjectivar
mesmo que seja bela o adjectivo a empregar
que em vez de ver um todo se decida dissecar
analisar partir multiplicar em partes
Toda a mulher que era se sentiu toda sozinha
julgou que a não amavam todo o tempo como que parou
quis ser atá ao fim coisa que mexe coisa viva
um segundo bastou foi só estender a mão
e então o tempo sim foi coisa que passou.
Ruy Belo
Transporte No Tempo
Acontece-lhe pensar que o inconsciente das pessoas é mais interessante do que o consciente?
Sempre. Obrigatoriamente. Interessa-me muito mais o não-dito do outro do que aquilo que ele diz. Conversas sobre o tempo definitivamente não me interessam.
Alguma vez consultou um psicanalista?
Fiz duas análises de personagem e fiz psicodrama durante 17 anos.
Disse que gostava de conseguir arranjar o seu inconsciente. Está sempre a psicanalisar-se?
Sim, claro. De manhã, quando faço a barba, analiso sempre os meus sonhos. Às vezes, acontece-me acordar a meio da noite, perceber o sonho, e de manhã lembrar-me do seu significado, mas não do sonho.
Vale a pena interpretar os sonhos?
Quando se tem uma mina de ouro, às vezes, abrimos pistas e não encontramos nada; mas há um dia em que pode valer a pena.