segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Dizem que a paixão o conheceu


dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice

conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nunhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos


Al Berto

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Foto de Juan Pavon

1923 - 2012 - WISLAWA SZYMBORSKA - Prémio Nobel de Literatura em 1996 .






POSSIBILIDADES

Prefiro cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos nas margens do Warta.
Prefiro Dickens a Doistoievski.
Prefiro-me gostando dos homens
em vez de estar amando a humanidade.
Prefiro ter uma agulha preparada com a linha.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não afirmar
que a razão é culpada de tudo.
Prefiro as excepções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar com os médicos sobre outra coisa.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não escrever.
No amor prefiro os aniversários não redondos
para serem comemorados cada dia.
Prefiro os moralistas,
que não prometem nada.
Prefiro a bondade esperta à bondade ingénua demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos países conquistadores.
Prefiro ter abjecções.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro contos de fada de Grimm às manchetes de jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães com o rabo não cortado.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que aqui não disse,
e outras tantas não mencionadas aqui.
Prefiro os zeros à solta
a tê-los numa fila junto ao algarismo.
Prefiro o tempo do insecto ao tempo das estrelas.
Prefiro isolar.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.
Prefiro levar em consideração até a possibilidade
do ser ter a sua razão.


Wislawa Szymborska, in "rosa do mundo" assírio & alvim, 2001

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Trabalho plástico de Alberto Pancorbo

Rimbaud

(...)  Juventude

III

Vinte Anos

As vozes instrutivas exiladas...a ingenuidade física amargamente aquietada...Adágio. Ah! o egoísmo infinito da adolescência, o optimismo estudioso: como o mundo estava em flor, nesse verão! O ar e as formas morriam...Um coro, para acalmar a impaciência e a ausência! Um coro de bebidas e melodias nocturnas... Com efeito: os nervos vão já pôr-se à cata.

IV

Ainda vais na tentação de António. As correrias do zelo infantil, os tiques do orgulho pueril, a fraqueza e o pavor. Mas perfarás este trabalho: todas as possibilidades harmónicas e arquitecturais te rodearão emocionadas. Criaturas perfeitas, imprevistas, se oferecerão às tuas experiências. Das cercanias afluirá sonhadora a curiosidade de antigas multidões e de luxos indolentes. Tua memória e teus sentidos serão só alimento do teu impulso criador. Quanto ao mundo, que será feito dele, quando saíres? Em todo o caso, nada conservará das aparências actuais.


Jean-Arthur Rimbaud, Iluminações Uma cerveja no inferno, Tradução, prefácio e notas de Mário Cesariny, Estúdios Cor, 1972

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Palavras sábias de Maria Gabriela Llansol

Trabalho plástico de Alberto Pancorbo


                                                                                                         

Antero de Quental - Vivo na morte (Maníacos de Qualidade - Joana Amaral Dias

"Falei de Rainer Maria Rilke. É curioso que Lou Andreas-Salomé, que seria sua amante, diria, a propósito da sua relação: «Todos os homens, não importa quando os conheci, sempre parecem esconder um irmão. Realmente, também a obra de Rilke está marcada pela presença da ausência e até, em determinados momentos, como em Requiem, o poeta parece advertir sobre a necessidade da morte não ficar a rondar...como ficou, no eixo da sua própria vida.
Teriam os meus pais projectado sobre mim o receio de uma morte prematura? Viveria com a responsabilidade de realizar a vida de outro? Teria existido acompanhado sempre por esse fantasma de um gémeo enterrado? Certo é que, quando nasci, era um bebé do sexo masculino como o meu irmão morto e, consequentemente, recebi o seu nome.
Ah, mas já volveram tantos anos. E assim, a esta distância, não deixa de ser irónico que tenha sobrevivido ao primeiro tiro. Foram precisas duas balas para me matar, como se, em mim, fôssemos dois. Por fim, ainda agonizei já depois do segundo disparo. Eu, que tinha vivido morto, estava vivo na minha própria morte..."


Maníacos de Qualidade, Portugueses Célebres na Consulta com uma Psicóloga,  editado pela Esfera do Livro, 2010.

Strange Little Girl - Encenação plástica de Graça Martins (1ªsérie) 2012

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Muriel

Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas a dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos
junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido


Ruy Belo

Obra Poética, Volume 2, Editorial Presença, organização e posfácio de Joaquim Manuel Magalhães, 1981.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

ARTE de ISABEL DE SÁ

"Sómente pela arte podemos sair de nós...mesmos".

"Somente pela arte podemos sair...de nós mesmos"

Somente pela arte podemos sair de... nós mesmos, saber o que um outro vê desse universo que não é o mesmo que o nosso e cujas paisagens permaneceriam tão desconhecidas para nós quanto as que podem existir na lua. Graças à arte, em vez de ver um único mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se, e quantos artistas originais existem tantos mundos teremos à nossa disposição, mais diferentes uns dos outros do que aqueles que rolam no infinito e, muitos séculos após se ter extinguido o foco do qual emanavam, fossem eles Rembrandt ou Vermeer, ainda nos enviam o seu raio especial.


Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido. 

"Havemos de engordar juntos." Esta frase tão realista do JOSÉ LUÍS PEIXOTO, também se aplica a amizades especiais. Há amizades muito próximas do amor. Esse cuidado e atenção pelo outro...São muito raras mas existem.

O José Luís Peixoto é famoso porque sabe falar da vida...e cria EMPATIA!!!!

Amor burguês

Havemos de engordar juntos.
Normalmente, toda a gente está demasiado preocupada em colocar a barra que diz "cliente seguinte", estão ansiosos, nervosos, têm medo que aquele que está à frente lhes leve os iogurtes, têm medo de pagar o fiambre daquele que está atrás. Enquanto não marcam essa divisão, não descansam. Depois, não descansam também, inventam outras maneiras de distrair-se. É por isso que poucos chegam a aperceber-se de que a verdadeira imagem do amor acontece na caixa do supermercado, naqueles minutos em que um está a pôr as compras no tapete rolante e, na outra ponta, o outro está a guardá-las nos sacos.
As canções e os poemas ignoram isto. Repetem campos, montanhas, praias, falésias, jardins, love, love, love, mas esse momento específico, na caixa do supermercado, tão justo e tão certo, é ignorado ostensivamente por todos os cantores e poetas românticos do mundo. Bem sei que há a crueza das lâmpadas fluorescentes, há o barulho das caixas registadoras, pim-pim-pim, há o barulho das moedas a caírem nas gavetas de plástico, há a musiquinha e os altifalantes: responsável da secção de produtos sazonais à caixa 12, responsável da secção de produtos sazonais à caixa 12; mas tudo isso, à volta, num plano secundário, só deveria servir para elevar mais ainda a grandeza nuclear desse momento.
É muito fácil confundir o banal com o precioso quando surgem simultâneos e quase sobrepostos. Essa é uma das mil razões que confirma a necessidade da experiência. Viver é muito diferente de ver viver. Ou seja, quando se está ao longe e se vê um casal na caixa do supermercado a dividir tarefas, há a possibilidade de se ser snob, crítico literário; quando se é parte desse casal, essa possibilidade não existe. Pelas mãos passam-nos as compras que escolhemos uma a uma e os instantes futuros que imaginámos durante essa escolha: quando estivermos a jantar, a tomar o pequeno-almoço, quando estivermos a pôr roupa suja na máquina, quando a outra pessoa estiver a lavar os dentes ou quando estivermos a lavar os dentes juntos, reflectidos pelo mesmo espelho, com a boca cheia de pasta de dentes, a comunicar por palavras de sílabas imperfeitas, como se tivéssemos uma deficiência na fala.
Ter alguém que saiba o pin do nosso cartão multibanco é um descanso na alma. Essa tranquilidade faz falta, abranda a velocidade do tempo para o nosso ritmo pessoal. É incompreensível que ninguém a cante.
As canções e os poemas ignoram tanto acerca do amor. Como se explica, por exemplo, que não falem dos serões a ver televisão no sofá? Não há explicação. O amor também é estar no sofá, tapados pela mesma manta, a ver séries más ou filmes maus. Talvez chova lá fora, talvez faça frio, não importa. O sofá é quentinho e fica mesmo à frente de um aparelho onde passam as séries e os filmes mais parvos que já se fizeram. Daqui a pouco começam as televendas, também servem.
Havemos de engordar juntos.
Estas situações de amor tornam-se claras, quase evidentes, depois de serem perdidas. Quando se teve e se perdeu, a falta de amor é atravessar sozinho os corredores do supermercado: um pão, um pacote de leite, uma embalagem de comida para aquecer no micro-ondas. Não é preciso carro ou cesto, não se justifica, carregam-se as compras nos braços. Depois, como não há vontade de voltar para a casa onde ninguém espera, procura-se durante muito tempo qualquer coisa que não se sabe o que é. Pelo caminho, vai-se comprando e chega-se à fila da caixa a equilibrar uma torre de formas aleatórias.
Quando se teve e se perdeu, a falta de amor é estar sozinho no sofá a mudar constantemente de canal, a ver cenas soltas de séries e filmes e, logo a seguir, a mudar de canal por não ter com quem comentá-las. Ou, pior ainda, é andar ao frio, atravessar a chuva, apenas porque se quer fugir daquele sofá.
E os amigos, quando sabem, não se surpreendem. Reagem como se soubessem desde sempre que tudo ia acabar assim. Ofendem a nossa memória.
Nós acreditávamos.
Havemos de engordar juntos, esse era o nosso sonho. Há alguns anos, depois de perder um sonho assim, pensaria que me restava continuar magro. Agora, neste tempo, acredito que me resta engordar sozinho.
José Luís Peixoto, in revista Visão (Janeiro, 2012)

sábado, 14 de janeiro de 2012

Kate Moss fotografada por Nan Goldin

OLMO

Para a Ruth Fainligth


Conheço o fundo, diz ela. Cheguei lá com a minha raiz maior:
É disso que tu tens medo.
Mas eu não tenho medo: já lá estive.

É o mar o que ouves em mim,
As suas insatisfações?
Ou a voz do nada que era a tua loucura?

O amor é uma sombra.
Como ficas prostrada e chorosa depois
Escuta: são os cascos dele: desapareceu como um cavalo.

Toda a noite vou galopar, assim, impetuosamente,
Até que a tua cabeça fique uma pedra e a tua almofada um pequeno monte de turfa,
Fazendo eco, fazendo eco.

Ou deverei eu trazer-te um som de venenos?
Agora é a chuva, este quase silêncio.
E este é o seu fruto: da cor metálica do arsénico.

Tenho sofrido a atrocidade dos crepúsculos.
Queimados até à raiz
Os meus filamentos vermelhos ardem, ficam espetados, mão de fios eléctricos.

Desfaço-me em bocados de caruma que voam em várias direcções.
Um vento tão violento
Não aguenta espectadores: tenho de gritar.

Também da lua  está ausente a piedade: havia de arrastar-me
Cruel, na sua esterilidade.
O seu esplendor ofusca-me. Ou talvez a tenha agarrado.

Vou deixá-la ir. Vou deixá-la ir
Diminuída e esvaziada, como após uma operação radical.
Como os teus sonhos maus me possuem e alimentam.

Sou habitada por um grito.
Noite após noite bate as asas
Procurando com as garras algo para amar.

Aterroriza-me esta coisa tenebrosa
Que dorme dentro de mim;
Todo o dia sinto o macio voltejar das suas penas, a sua malignidade.

As nuvens passam e dispersam-se.
Serão essas as faces do amor, esfumadas coisas que não se recuperam?
É por isto que perturbo o meu coração?

Sou incapaz de aprender mais.
O que é isto, este rosto
Tão assassino em seus tentáculos estranguladores?

O seu ácido silvo de serpente.
Petrifica o desejo. Erros que isolam, essas falhas lentas
Que matam, e matam, e matam.


Sylvia Plath

Ariel, tradução de Maria Fernanda Borges, Relógio D'Água, 1996

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Inês Leitão - Cartas a R.

Cartas a R.

Lourenço Marques, 5 de Janeiro de 1969

Querido R.

As tuas cartas ainda me fazem rir.
Nunca conseguirei aceitar que um corpo seja compreendido como uma oportunidade. Um corpo a dormir comigo nunca foi uma oportunidade: para mim, fenómenos dessa natureza são analisados criteriosamente sob a semelhança de um atropelamento grave.
Tenho a nítida impressão que todos os meus relacionamentos com homens foram acidentes de viação violentos que me amputaram membros ou – tão estranhamente - me acrescentaram órgãos ao corpo, Tenho mais rins, mais fígados, mais tripas do que qualquer outra pessoa que conheças.
Corpos deitados na minha cama sempre me fizeram sentir mais sozinha: e eu sou sozinha como nunca imaginaste que uma mulher podia ser. Sou envergonhadamente sozinha. Tanto, que me enterneço de compaixão pelos dedos dos meus pés ou pelos pêlos que me crescem a medo, lentos de medo.
Às vezes tenho vontade de pegar em mim ao colo e levar o meu corpo para longe: uma oportunidade nunca comportará o respeito e o amor suficientes para mim e para o meu corpo.

Eu não tomo bem conta do meu corpo.
No fundo, recuso-me.

Talvez por isso, inteligentemente, a natureza me tenha feito uma mulher estéril: nunca saberia ser mãe, nunca saberia tomar conta de um corpo mais pequeno que o meu. E tenho muito medo do meu coração, esse órgão que tão estranhamente se mantém único, sem duplicação. Tenho medo do meu coração como órgão e como cova. Tomo os medicamentos certos para deixar de ter medo dele, de que um dia pare ou se descontrole num desses tantos atropelamentos que vou tendo
( a dor no corpo continua depois do choque). E sabes porquê, R.? O confronto do corpo com a morte de uma parte do seu coração é o mais duro de todos e requer impreparação.
Assim R.., um outro corpo na minha vida nunca significaria uma oportunidade, seria sempre um acidente, com as consequentes hospitalizações.

Sempre tua,

I.

ENJOY THE SILENCE...

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Prémio D.Dinis - Fundação Casa de Mateus para o romance As Luzes de Leonor da poeta e escritora MARIA TERESA HORTA

PARABÉNS a Maria Teresa Horta - Prémio D. Dinis - As Luzes de Leonor

O Prémio Literário D. Dinis, da Fundação da Casa de Mateus, foi atribuido à escritora e poeta Maria Teresa Horta, pelo seu romance AS LUZES DE LEONOR, sobre a vida da marquesa de Alorna. O júri constituido pelos escritores Vasco Graça Moura, Nuno Júdice e Fernando Pinto do Amaral, foi unânime na decisão.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Foto de Lidia Martinez

Só temos a certeza de que tudo declina.
Os verbos, o amor, o saber,
O sol.
É quando a beleza mais se exibe,
Quando a carne é madura
E a sombra cresce
Como outro ser ao lado do ser
Quando a memória
Acompanha o curso desse rei que vai nu
E ninguém denuncia.
Quando a paixão tem o canto do cisne
Ou o fulgor que não queima
A voz de quem cantou.
(...)

Armando Silva Carvalho
Pus-me preso às minhas ordens para não me perder de mim.

Almada Negreiros

2012 - ANO NOVO VIDA NOVA !!!!!!!!!!!

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Poema de Isabel de Sá - publicado na Antologia Poesia e Ciência na Literatura Portuguesa - O binómio de Newton & a Vénus de Milo - Fundação Champalimaud, 2011

NÃO SE PASSA NADA

Nada de cinismo
a vida é boa
ainda não há guerra
nem peste nem fome.

Ninguém cospe no teu rosto.

O fruto cai da árvore
a fêmea é fertil
o macho  vigoroso
as crias alegram o prado
e o sol brilha brilha.

A ciência não pára
de nos surpreender
e dar conforto:
nascer crescer ser velho
e falecer. Moléculas
átomos e neutrões
amparam-nos na queda
dizem-nos o que é o amor.

O amor também é feito
de vermes e bactérias.
A sua chama
transforma os nossos corpos
na mais bela cinza.




O binómio de Newton & a Vénus de Milo, Edição Aletheia, Lisboa, 2011. Fundação Champalimaud

Poema de João Borges - publicado na Antologia Poesia e Ciência na Literatura Portuguesa - O binómio de Newton & a Vénus de Milo - Fundação Champalimaud, 2011

A CIÊNCIA CONTINUA


Mudámos de ano, de década,
de século, de milénio
e não mudou nada:
a casa em frente é ainda bege,
a rua sinuosa
e as pessoas mascaradas.

O dia termina luminoso
no muro coberto de glicínias,
no passeio onde calcorreei
magma do cansaço.

A ciência continua, prolonga a vida
e invade os dias. Ainda não se descobriu
cura para o cancro
nem as pessoas estão confortáveis
com o silêncio
ou a realidade da morte.

Porto, 25 de Junho de 2010




O binómio de Newton & a Vénus de Milo, Edição Aletheia, Lisboa, 2011. Fundação Champalimaud

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Espaço Llansol em Sintra.


Visita ao Espaço Llansol em Sintra. A simpatia da Etelvina Santos e a disponibilidade do João Barrento desdobraram-se em cuidados explicativos sobre os objectos da casa, os livros de eleição da escritora e recordações dos últimos anos de vida do Augusto e da Maria Gabriela. Por razões de trabalho a ausência da Hélia Correia, que em conjunto com João Barrento e Etelvina Santos, desenvolvem um trabalho notório sobre a obra desta escritora. Imagens dos espaços de criação.

O lugar dos objectos íntimos de Llansol : os frascos antigos de família, os cheiros, os pout-pourri, as caixas de louça, o espelho.

Maria Gabriela Llansol: Um Beijo Dado Mais Tarde - Texto de João Borges

O LIVRO DOS PODERES DA CASA

No primeiro Livro de Horas publicado de Maria Gabriela Llansol, 'Uma Data em Cada Mão' (2009), lemos que, originalmente, a escritora tinha pensado como título 'O Livro dos Poderes do Livro' para o livro que acabou por chamar-se 'A Restante Vida' (1982).
Aquele título ocorreu-me ao terminar, pela segunda vez, 'Um Beijo Dado Mais Tarde' (1990), que poderia muito bem ser uma espécie de livro sobre os poderes da Casa. Entre 1977 e 1988, Maria Gabriela publicou seis livros essenciais da sua bibliografia, que compõem duas trilogias ligadas entre si: 'Geografia de Rebeldes' ('O Livro das Comunidades', 1977, 'A Restante Vida', 1982 e 'Na Casa de Julho e Agosto', 1984.) e 'O Litoral do Mundo' ('Causa Amante', 1984, 'Contos do Mal Errante', 1986 e 'Da Sebe ao Ser', 1988.). No entanto, se eu tivesse que relacionar 'Um Beijo Dado Mais Tarde' com livros anteriores de Maria Gabriela Llansol, talvez eu o relacionasse mais com os dois diários publicados até aí, 'Um Falcão no Punho' (1985) e 'Finita' (1987): talvez porque, neste romance, mais do que em qualquer outro dos até aí editados, sentimos muito profundamente uma presença da própria Maria Gabriela, que, desta vez, escreve sobre alguns episódios da sua infância, relacionados acima de tudo com a família. Pode parecer demasiado simplista ver assim este livro, no entanto, talvez estejamos na altura de não olhar mais a obra de Llansol como encriptada, e de começarmos a compreender a simplicidade que está depois da compreensão das regras e desvios da sua escrita.
O tema da família de Llansol não surge aqui pela primeira vez. Vale a pena recordar 'E Que Não Escrevia', um dos 'livros' que formava o segundo volume publicado da autora, em 1972, 'Depois de Os Pregos na Erva'. Em 'E Que Não Escrevia', encontramos já aquelas que serão as figuras matriciais para ler 'Um Beijo Dado Mais Tarde': a criança, que será uma projecção de Maria Gabriela, a criada Maria Adélia, o pai e a filha que o pai terá tido com essa criada, e que não chegou a nascer, que, no livro de 1972, se chama 'a irmã uterina'. Não sei se será muito adequado dizer que este livro é uma reescrita do de 1972, mas, sendo que a história é, de alguma forma, partilhada pelos dois, será impossível não notar que os quase vinte anos que separam estes dois textos são relevantes para aquilo que é 'Um Beijo Dado Mais Tarde', no que toca a uma outra fluidez do discurso escrito e a uma maior riqueza de imaginário que também se faz sentir: por assim dizer, 'Um Beijo Dado Mais Tarde' tem mais elementos do que 'E Que Não Escrevia' e, no entanto, é escrito com maior clareza e maior simplicidade.
Este livro começa com uma imagem deveras violenta e grotesca. Uma cabra é presa a um castanheiro e, de seguida, o homem vem e corta-lhe a língua: mais nenhum ruído atravessou o nosso sossego, mas uma segunda língua, com parte no céu-da-boca, principiou a nascer-lhe,      e ela foi a voz.
(p.7)
A violência do corte da língua física é seguida do nascimento de uma segunda língua que, aqui, é também linguagem. Deste momento, surgem duas figuras tutelares para a restante obra de Llansol, Aossê (Que é Fernando Pessoa.) e a rapariga que temia a impostura da língua, Témia.
A imagem inicial da morte e renascimento da língua é continuado durante a morte de Assafora, tia da narradora, cujo aproximar da morte a leva de volta para a casa da infância, na Rua Domingos Sequeira, em Lisboa. E assim, depois da morte de Assafora, a casa tem sobre a narradora, enquanto eu central, o poder de lhe devolver o tempo passado e, mais importante ainda, o tempo antes dela nascer. A casa vai sendo esvaziada dos seus móveis e dos seus objectos, alguns que a narradora leva para a sua casa actual, outros que vende em dois lugares distintos, e é no espaço que ali fica que a narradora descobre a sua própria história. Podemos relembrar Gaston Bachelard, que, no seu 'A Poética do Espaço' nos fala do espaço da casa como centros do devaneio que são meios de comunicação entre os homens do sonho. Mais ou menos assim poderíamos ver a casa da Rua Domingos Sequeira. Ela é o meio de comunicação entre o eu que nos conta a história e as figuras que orientarão, de certa forma, essa história. Há várias figuras presentes: Aossê, Johann (Bach), Infausta, Anna Magdalena e também a Jovem Vestindo o Seu Jardim (Que aqui surge pela primeira vez.), entre outras. No entanto, as figuras essenciais para esta história são mesmo Témia e Ana ensiando a ler a Myriam, a Estátua da Leitura.
Isto porque as relações essenciais entre a narradora e as dois elementos do seu passado, Maria Adélia e o pai, são expressas através do ensinar a ler, do aprender da língua, que se desenrola ao mesmo tempo que o medo da impostura dessa língua. E estes dois planos são também uma ponte para o nascimento da própria escrita, que, por si só, parece representar uma voz diferente, quase como uma segunda língua de características específicas
_Com voz mais baixa do que ler.
 _Com a voz de escrever.
(p.59)
Assim, a aprendizagem dessas vozes, de ler e de escrever, é o nascimento de um mundo, que se deseja, mas que, ao mesmo tempo se teme. Os objectos da casa, de alguma forma, acabam por responder à questão da escrita, ora aderindo a ela ou ora parecendo alinhar-se com o medo dela
um grande carneiro deitado, que eu julgava paralítico (...) move-se para ler
 (p.25)
Palonsa Gazela (...) Ela era, finalmente, o corredor que, no meu quarto quieto, desorientava, nas suas voltas, o meu coração e o meu texto
 (p.102)
Enquanto Ana ensina a ler a Myriam, a narradora vai escrevendo a sua casa, e o texto escrito é onde a casa se torna um espaço de confluência de tempos e de episódios, reunindo assim os homens do sonho de que Bachelard falava. A figura do pai, como Quimera ou Filipe, é uma espécie de figura que da sombra irradiasse, trazendo consigo toda a sorte de fantasmas já que, no fundo, todo este livro é construído precisamente em torno desses fantasmas, o que nos leva, de certa forma, de volta ao violento início deste livro.
__________ o homem só vulto esteve aqui hoje, com a sua imagem infeliz. (...) Quando o olho, no íntimo de mim mesma, e no seu lugar objectivo, não tenho pensamento. Ele traz às costas um saco onde vai deitando todos os restos de misericórdia que há por aqui, incluindo a misericórdia por nós que brota de uma  fonte algures, ignore onde. (...) Há-de voltar esta noite, enquanto eu dormir, para entrar no meu sonho. Transporta também o que for intimamente nosso, e que lhe tivermos entregue, por bem.
(pp 97,98)
À medida que a história vai sendo escrita, percebemos que a relação essencial dela, e que, na verdade, se transpõe pela imagem da Estátua da Leitura, é aquela entre a criança e a criada, em que o amor da segunda pela primeira, espécie de compensação pelo bastardo perdido que é projectado na criança legítima, é compensado pela primeira através do ensinar a ler. E a leitura toma o lugar do amor, ou torna-se um veículo deste.
Quase no final do livro, Ana parte da Estátua da Leitura, e esta torna-se vazia. O tempo de abandonar de vez a casa que testemunha toda a história aproxima-se e, deslocando-se nos vários tempos que estão a ser escritos, a narradora recolhe os últimos objectos que quererá guardar para si, e este momento parece trazer de volta a descoberta da figura do homem como iniciador do Universo, mas também como origem da perturbação, uma vez mais questões que são explicadas através da imagem da casa:
Sob o olhar masculino, girava uma casa dentro de outra - um princípio do Universo onde estava em vias de expandir-se o verde inicial. Ele só podia ser teu companheiro filosófico e meu amante.
Nesta atmosfera verde, de possibilidades de outras cores infinitas,
descubro o afecto do negro.
(p.107)
e, mais à frente, esse afecto do negro que pode ser símbolo de uma espécie de sofrimento, parece ser especificado por um dos últimos símbolos da história da casa, o lenço da noite:
 
Apanho o lenço contemplando o sangue e as lágrimas que se esboçam nas dobras e secam sob o calor da noite,     que a noite exala. Sob o lenço da noite, sei que me oriento para o círculo do beijo que a jovem deposita na testa de meu pai___________ um Rei qualquer de papel.
_______________ e sofro, com receio de que o vento sopre, e leve o lenço onde eu me destino a ser semente de um outro Eu que ninguém delimita ou guarda.
(p.111)
como vemos, desafiando a percepção do tempo, a história termina quando o Eu está para nascer naquela casa.
Quase no final do livro, encontramos ainda um surpreendente texto, que surge de uma forma muito orgânica a todas as questões do livro, e que se prende com a própria escrita.
Grande parte dos poetas escrevem, a certa altura, a sua "arte poética", que é a sua explicação de como escrevem, de como fazem a sua poesia. Os prosadores também o fazem, senão nos próprios livros, muitas vezes em entrevista.
Este texto será uma das mais belas, mais complexas e mais completas explicações de como nasce e se transforma o texto de Maria Gabriela Llansol, em que as regras são constantemente redefinidas, tornando-se esse desvio uma nova regra:
 Cada vez está mais vento, com mutações de Sol excessivas para os meus olhos que agora, com o ar, o sol e a cor, se fatigam. Eu explico. Trabalho muito com eles, fixando intensamente um ponto-paisagem antes de começar a escrever; depois, o decurso do texto depende do que essa concentração, num lugar vazio, permite. O olhar atento vai voltando a si mesmo e, então, o que eu consigo ouvir são as ondulações vibratórias entre esses dois pontos. Os meus olhos recebem, num ponto-voraz, as linhas que sustentam o espaço, feixes incidentes paralelos, raios que se afastam progressivamente, termos geométricos.
Lá onde estás, deve ser assim.
Nunca olhes o bordos de um texto. Tens que começar numa palavra. Numa palavra qualquer se conta. Mas, no ponto-voraz, surgem fugazes as imagens. Também lhes chamo figuras. Não ligues excessivamente ao sentido. A maior parte das vezes, é impostura da língua. Vou, finalmente, soletrar-te as imagens deste texto, antes que meus olhos se fatiguem. O milionésimo sentido da voz, "tiro o lápis da mão", o gesto de partir a luz, o pensamento de uma criança, cópias da noite, passeio nocturno, "era um dia verde", o afecto do negro, sob o lenço da noite. O indizível é feito de mim mesma, Gabi, agarrada ao silêncio que elas representam.
(pp. 112,113)

13 de Outubro de 2011 –Postagem do  blogue Camel & Coca Cola  http://camelecocacola.blogspot.com

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Alguns dos livros de Maria Gabriela Llansol, publicados nos anos 80, pela editora Rolim e com capas criadas por mim (Graça Martins)

A cozinha da escritora. Pormenores como a planta Filomena do Nó e o livro Um Falcão no Punho, com capa e design gráfico da minha autoria.

Uma sala de leitura no Espaço Llansol, em Sintra. Livros e mobiliário da escritora.

Maria Olhuda

Jodoigne, 12 de Dezembro de 1976.

Envolvo-me
para me aquecer,
em mantas textuais e animais:
Jade, Herman Hesse, Rilke, Proust, os livros deste fim de ano; deitei-me na cama do quarto que não partilho com o Augusto; pus Maria Olhuda, a boneca de trapos que comprei em Lovaina, quando ainda habitava a mansarda da rua de Tirlemont, ao pé de mim.

(Finita, 131)

A boneca Juta - Maria Gabriela Llansol

...Juta, uma boneca da infância da minha tia Assafora, de há quase cem anos; mudei-lhe o nome para Miosótis e, ao querer lavá-la com algodão embebido em alcool, tirei-lhe o verniz do peito...


(Um beijo Dado Mais Tarde, 72)