sábado, 28 de fevereiro de 2009


Foto de Graça Martins

Dois Poemas de João Borges

NO SILÊNCIO O INFERNO


O silêncio do meu quarto
está crivado de sangue.
Será isto o inferno?

As luzes da cidade
não me trazem os teus passos.
Posso esquecer o tempo,
os nossos encontros roubados
ao sono, tudo.

O frio toma conta de mim.
Sento-me numa pedra
à espera de viver.
PORQUE ACONTECE?

Abri a caixa
onde guardava as nossas coisas.
Incapaz de me conter,
devastado, deixei de existir.
Dentro de mim
o caos avançou, avançou.
A chuva de verão
não parava de cair
e as palavras eram
o corpo da traição. Voltei
a morrer uma vez mais.

Desenho de Graça Martins



Três poemas de Luís Miguel Nava

O CÉU AGRADA-ME PENSAR

O céu agrada-me pensar que é a memória de dois ou três amigos, aqueles contra cujos lábios a partir de dentro empurraremos docemente os nossos nomes e que, quando levam a comida à boca, sabem que é a nós que estão a alimentar. São dois ou três amigos, aqueles só em cujos corações enfiamos achas, o clarão atinge-lhes os olhos, pensarão: hoje a memória é como se a trouxéssemos em braços. Não sei se quando o mar lhes vier ao espírito o ouviremos rebentar, o certo é que por ele às vezes sobem as marés. Há ondas que se vê terem por ele passado antes de contra os nossos corpos deflagrarem.
OS OLHOS
Sempre que sobre mim poisava os olhos, o olhar dele era o de quem os volta para dentro de si próprio, como se nesse espaço me quisesse aprisionar ou dele, sem que eu sequer o suspeitasse, há muito me tivesse feito residente. Raro era , porém, surgirem sob as pálpebras, no rosto, onde seria de esperar vermo-los, esses olhos. Não o faziam senão quando, como depois veio a ser sabido, até aí com ímpeto os alçava o seu mar interior nas suas cristas.
O NOME
Todo ele estava torcido para dentro da memória.
Sentia-se-lhe o corpo a abarrotar de sombra, a qual se lhe escapava com frequência pela boca, destruindo-lhe assim parte da cabeça.
Há quem sugira que o seu nome, de que nunca ninguém soube a forma exacta, se situa onde dele nada aos nossos olhos é visível; quem pelo contrário admita que talvez alguém a quem o coração sirva de lupa algures o venha ainda a decifrar.
Escalda-me a saliva onde a memória a surpreende, costumava-me ele dizer. Começa-se o verão a descolar por toda a parte. A uma luz que de nós próprios irradia é impossível conhecer seja o que for.
Rebentação, & etc, Lisboa, 1979

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009


O seu tempo é o presente, o seu desejo é parar o tempo, o nunc stans, o eterno. Quando o tempo pára, as coisas revelam a perfeição da sua essência, e acabam todas as aspirações porque se está para lá do desejo.

Alberoni

domingo, 22 de fevereiro de 2009

A Nova Desordem Amorosa
Pascal Bruckner Alain Finkielkraut

O TUMULTO
Amo-te: esta mensagem supostamente primeira é de facto um entrançado de afectos exclusivos e indissociáveis e na sua aparente simplicidade combina o júbilo, a ansiedade, a homenagem e a alergia. (...)
«Amo-te» é antes de mais, é a sua evidência gramatical, uma fórmula afirmativa: proclama um êxtase, afirma um paroxismo, denomina uma felicidade. É também optativo: digo«amo-te» para voltar a ser o «eu» que, desde o meu amor, já não sou, para reintegrar o rubro da intensidade e da substância do qual fui deposto. Falo de um não-lugar - onde deixei de ser; designo um lugar - «tu»- onde o Outro ainda não está, mas onde desejo vê-lo descer. «Amo-te» é portanto uma expressão propiciatória que pede aos prenomes para produzirem pessoas: «eu» revela a nostalgia da interioridade perdida, e «tu» revela o desejo que o objecto amado corresponda a uma identidade. No «amo-te» existe também a veemência do imperativo: ama-me! Ordeno-te que me ames! é preciso que pagues a tua dívida. Meu amor, quer queiras quer não, faz de mim o teu credor: foi um mal, uma ferida que fizeste e que apenas poderás curar aceitando a reciprocidade. Para exigir que me ames, apoio-me no meu amor, exactamente como o debochado, nas instituições sádicas, se apoia no desejo que experimenta para submeter o ser cobiçado. todos os ternos enamorados são sádicos do afecto e a sua confissão de dependência é exigência de reparação.
Finalmente, é preciso perceber o «amo-te» na interrogativa: amas-me? Pergunta-pânico pois é a minha entrada no paraíso que está subordinada à resposta. Ouvir o consentimento, com efeito, far-me-á mudar de mundo.

Cantus in memorian Benjamin Britten - Arvo Part

Bailado Pedro e Inês de Olga Roriz Música - Arvo Part

Bailado Isolda de Olga Roriz Música -Tristão e Isolda de Richard Wagner

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009




A Nova Desordem Amorosa
Pascal Bruckner & Alain Finkielkraut
O amor transfigura seres vulgares em seres de fuga: é quando o outro frustra as minhas projecções e confunde os meus fantasmas que tenho a certeza de o amar. O pleonasmo amor étereo. Mas o privilégio de um ser volátil é poder desaparecer, e toda a cintilação evoca a iminência do seu desvanecimento.
«Uma gaiola ia à procura de um pássaro», escreve Kafka; isto, em matéria de amor, pode enunciar-se assim: uma palavra-gaiola ia à procura de um Outro-pássaro.

Simone &Milton Nascimento - Eu Sei Que Vou Te Amar

A Música Brasileira no seu melhor de outros tempos...

Nada Mais por Gal Costa

A simplicidade das palavras e a intencionalidade conseguida

Um Dia de Domingo - Gal Costa & Tim Maia

A economia das palavras numa voz cristalina

Dos 8 aos 80, Histórias Pintadas

Ilustração de Graça Martins para a história a camisola arco-íris


Dos 8 aos 80, Histórias Pintadas
Seis histórias e seis pintoras.
Armanda Passos, Emília Nadal, Graça Martins, Graça Morais, Gracinda Candeias e Paula Rego assinam as imagens de um livro escrito para qualquer idade.
Da autoria da jornalista Helena Osório
Editor - Editorial Novembro
SÁBADO 21 DE FEVEREIRO pelas 17 Horas
Apresentação da obra na livraria Centésima Página em Braga, com a presença da autora, algumas das pintoras e exposição das ilustrações originais.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

EASY RYDER de Dennis Hopper

Homenagem aos 40 anos de Easy Rider - Este filme será exibido no Fantasporto

O filme que marcou a grande viragem do cinema norte americano na década de 60, em pleno movimento hippie. Dennis Hopper e Peter Fonda nas suas Harley's percorrem o interior profundo da América num filme de extrema actualidade.

FANTASPORTO - Cinema e Arquitectura

Não é possível pensar-se a relação entre cinema e arquitectura sem regressar ao mítico METROPOLIS de Fritz Lang. Antes de : THE MATRIX BLADE RUNNER STAR WAR e 2001: A SPACE ODYSSEY

Metropolis de Fritz Lang

Artificial Inteligence de Steven Spielberg

Blade Runner de Ridley Scott

Immortel de Enki Bilal

UMA BELEZA Vi ontem este filme no Rivoli Fantasporto

O designer e homem da BD Enki Bilal traz-nos em "Immortal" um dos melhores exemplos do conceito arquitectónico aplicado à banda desenhada e, neste caso ao cinema de animação. Os seus trabalhos de que se destacam os publicados na revista Heavy Metal, têm uma marca inconfundível de arquitecto. A transição para o cinema era inevitável. Depois da experiência de "Tykho Room" e sobretudo de "Bunker Palace Hotel", ambos exibidos no Fantas, Bilal reinventa o género ao fazer um filme híbrido onde personagens reais ( como Charlotte Rampling) interferem e coexistem com CGIs numa Nova Iorque Futurista.
http://www.fantasporto.com/
valter hugo mãe

o freud senta-se aos pés da cama

temos os dois exactamente o mesmo
sonho à noite. o freud senta-se aos pés da
cama e angustia-se. por definição, ele
estará ali horas, como em túneis, optando
por mais túneis, escondendo extremamente
o motivo por que veio falar-nos. a mim,
desespera-me o facto de me ser impossível
entender alemão e aconselhá-lo no caminho
para a felicidade. o bruno regozija no
momento em que julga ter conseguido um
autógrafo válido para depois de acordar.
acordamos.na minha casa o silêncio
parece ainda esconder a presença do freud. na casa
do bruno não está ninguém. ele diz-me,
a cada noite me fica mais distante a
conclusão do universo, a ternura da vida, a
explicação vocabular. Há como que um
emudecimento contínuo que nos levará a
uma anulação completa da existência. eu
admiro o freud por nos ter denunciado e nos
procurar para expiação da sua eternidade. eu
odeio acordar sem garantia de que a vigília
me será mais favorável do que o sono, porque
a cada noite me fica mais distante a
conclusão do universo, a ternura da vida, a
explicação vocabular.

podemos fazer festas ao freud como a um
gato que se aninha tão coitado. mas
a psicose ressente o pai e dá-nos para
sangrar como torneiras abertas sobre
o mais provável do futuro. sabemos que
não vamos ser felizes. mas impomos a
nossa existência aos gritos, e queremos
manter tudo assim, hirtos no combate
diário e em exultantes modos, somos como
varas de fogo de artifício e, perseguidos
por freud, não deixamos de ser deslumbrantes
e maravilhar as fileiras de mulheres alistadas
para a nossa guerra

vem cá bichano, está tudo bem, é o freud, sim,
mais uma vez sentado aos pés da cama

folclore íntimo,cosmorama edições, 2008

domingo, 15 de fevereiro de 2009

FOTOS de BILL DURGIN









Fotos de Bill Durgin
Fotógrafo americano fascinado pelo corpo humano. Nas palavras do próprio, «as minhas fotografias expressam o meu fascínio pelo corpo humano enquanto forma. A estrutura física torna-se não só uma concha, mas também uma escultura em movimento feita de pele, músculo, gordura e ossos»



sábado, 14 de fevereiro de 2009


















Foto de David Hamilton

VALENTINE'S DAY

E assim termino este dia, com uma figura emblemática da musica brasileira - ALCIONE fala-nos de emoções ao rubro e de relações atravessadas por algum Tsunami.

Minha Estranha Loucura por Alcione

Quatro poemas de João Borges

MADRUGADA LENTA – ADÁGIO

Sentindo o teu peito
dourado, o ventre
liso, num gemido
o sexo
queima as pernas.
Quero de ti
o orvalho mais vivo.
PEDRA

Esta pedra que não vês
mas eu sinto
explodirá no teu peito.

Observo lentamente, não
tenho pressa. Nascemos
para o desejo. Pedras,
sangue, esperma,
tudo explode
no limite dos corpos.
ANÁLISE DO ROSTO

Um rio de lume
une a nossa pele,
o rosto inteiro.

A estrada prolonga-se
até ao deserto onde a noite
é sempre noite.

Fecha os bares onde estou,
desencontrado. Leva-me
para casa e adormece-me
pela primeira vez.
O SANGUE: O CORAÇÃO

Nunca te quis matar
em mim. Nesta encruzilhada
o sangue enlameia o coração.
Peço apenas que me deixes ser
a roupa do teu corpo.

Três poemas de Isabel de Sá

A flor de papel em violento rosto. De difuso braço a música eclodia. A palavra ardente sobre o lago. Os fumos.
Um amigo despede-se de outro amigo. Gesto a deslizar. A placa de espelho, serpente em relevo e fina textura. Flor de papel doirada sobre a mesa, tocando a página, o livro.
Um homem despede-se de outro homem. A luz irrompe das pupilas e em árvore se transforma.
O corpo do rapaz irradiava um esplendor juvenil. Os músculos eram macios, a pele coberta por uma penugem ainda leve.
Atravessáramos o Inverno absorvidos pela ânsia de conhecimento. Não seria especialmente a ternura ou o afecto que nos unia, antes a aventura dos corpos no extremo da adolescência. Ele tinha uma forma peculiar e sensível de brincar com os meus cabelos muito lisos, fazendo passar por eles os dedos como agulhas. Este corpo de rapaz vivera no poema.
Um mamilo pequeno e claro trouxera à minha pele lenta memória de infância: a menina que um dia me tomara por recém-nascido alimentando-me do seu brevíssimo seio.
Chegara Setembro com a poalha ténue do entardecer. Nossos corpos entravam no estado adulto onde cada um procurava o poema, isolado numa solidão própria.
Só o lume dos teus beijos rompe
a treva onde a solidão nos mata.
Enrolamos a vida no escuro,
na semente de um amor atribulado.

Conhecemos o ritmo e a sede,
a convulsão do desamparo.
No sentido do corpo, no acerto
desce a força pelos braços
na violenta festa do prazer.

Tudo o que disseste
no desaforo da paixão
só podia incendiar a vida inteira
e encher de esperança o universo.

Isabel de Sá, Repetir o Poema, Quasi Edições, 2005
14 de Fevereiro Dia dos Namorados, dos Amantes, dos Apaixonados.




A Metáfora do Coração - Maria Zambrano

A visão do coração
(...)
O coração em chamas ou o fogo do coração é uma metáfora, a forma de que se revestiu nas suas aparências históricas. Mas na terminologia popular, nessa vida que o «coração»levou em seus fieis territórios, o coração não é fogo, mas parece apresentar-se em símbolos espaciais: é como um espaço que dentro da pessoa se abre para acolher certas realidades. Lugar onde se albergam os sentimentos indecifráveis, que saltam por cima dos juizos e daquilo que pode ser explicado. é amplo e também profundo, tem um fundo de onde saem as grandes resoluções, as grandes verdades que são certezas. E às vezes arde nele uma chama que serve de guia através de situações complicadas e difíceis, uma luz própria que permite abrir passagem onde parecia não haver passagem nenhuma; descobrir os poros da realidade quando esta se mostra fechada. Encontrar também a solução de um conflito interior quando se caiu num labirinto inextrincável por obra das enredadas circunstâncias. Nesta cultura permanente do coração, não arde como fogo mas como chama, chama que não produz dor mas felicidade. E é luz que ilumina para sair de impossíveis dificuldades, luz suave que dá consolo. Nesta mesma cultura, o coração tem feridas; lentas, às vezes impossíveis de sarar; dir-se-ia que as feridas nele nunca se fecham porque têm um certo carácter activo, são feridas vivas, como feridas, das quais emana constantemente uma gota de sangue que impede a sua cicatrização. E, por último, o coração pesa; e é o pior, pode fazer sentir o seu peso, que equivale ao do universo inteiro, como se nele, pesasse a vida de alguém que, na vida, não pode já vivê-la. (...)
A Metáfora do Coração, Assírio & Alvim, Lisboa, 1993

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

MARIA ZAMBRANO

Maria Zambrano atravessou o mundo e o século como uma exilada e escreveu uma obra numerosa em que fala do exílio essencial para que fomos relegados pela razão.

Maria Zambrano é uma emissária do sagrado, mediadora entre o mundo iluminado da razão e o obscuro sentir.

Maria Zambrano é uma filósofa de alto risco, para quem no fracasso é que aparece a máxima medida do homem. A garantia de um mais completo renascer. Afiança que o amor, porque é o agente de destruição mais poderoso, acaba por ser também o mais terapêutico:«Porque ao descobrir a inanidade do seu objecto, deixa livre um vazio, um nada que ao princípio é aterrador» Mas depois nesse silêncio é possível alcançar outro conhecimento.

Para Maria Zambrano, a filosofia nasce como paixão do ver, e antes de ser um conteúdo é uma atitude, um olhar. Daí a utilização da metáfora da luz para indicar o «apriori» do ser humano que, antes de ser-para-a-morte, é ser-dado-à-luz -essa luz para a qual se deve dirigir e que guia os «olhos da mente».

Palavras de Fátima Maldonado e António Guerreiro a propósito do livro "A Metáfora do Coração"de Maria Zambrano, Assírio &Alvim, 1993

Porque, tendo chagado
este meu coração, não o saraste? Depois de o ter roubado,
porque assim o deixaste
e não guardas o roubo que roubaste?

S.João da Cruz

domingo, 8 de fevereiro de 2009


valter hugo mãe

a vida sexual do bruno

começou aos treze anos
com uma mulher mais velha que
lhe disse gostar de levar à boca
pequenas conchas e certos
frutos secos. o bruno serviu-lhe
de delicado amor com discrição
ansiando embora que ela o
tratasse com importância e o
quisesse para sempre. o coração
do bruno divide-se entre estes dois
extremos, como uma noz, o da facilidade
perante a sedução, e o da angústia infinita por
perder a cada minuto a candura
redentora do desconhecimento. a casca
do coração é dura, o
interior tão intrincado

com o tempo, o bruno
desenvolveu um néctar viciador
que, às bocas ávidas, inventava
territórios de sonho para onde a
consciência se matava. com tal
truque, ele metamorfoseou-se em
terminador de ofícios como o da
poesia, do ensino da música ou
da colheita de amostras marinhas
do céu. matando sem piedade
as mulheres obstinadas pelo seu néctar,
o bruno viu a terra esvaziar-se e o
diálogo escassear, mesmo sobre o
sexo ou a saudade de se ser amado
sem artifícios
em seu redor, ele agigantado, as
coisas pareciam mingar e pedir-lhe
auxílio. mas da sua natureza não faz
parte voltar atrás, por isso, vive
preparado à porta das casas
para impressionar quem, cedo pela
manhã, sai à rua em busca ainda do
amor

eu regozijo. deixei
de escrever poesia para melhor ver
o lado não metafísico do céu. e posso
entrar no mar em busca de todas as
coisas impossíveis, porque sei que
não as vou encontrar. à noite, sonhamos
os dois com o mesmo, uma
ladeira íngreme onde fiquemos seguros
de cair pelas flores fincando o pé
às milhares, e as raparigas em toda a volta
pedem-nos em casamento e nós aceitamos
tendo mil filhos e amando cada uma
profundamente felizes, à beira
de inventarmos infinitamente o melhor do mundo

folclore íntimo, COSMORAMA Edições

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009











Foto de David Hamilton
Dormirás sobre meu ventre
aí depondo teus receios.

Surgirás, em tal beleza, que não mais haverá distinções.
Serás ele. Ela

Isabel de Sá, Repetir o Poema, Quasi Edições, 2005










FOTOS DE DAVID HAMILTON














Poema de ISABEL DE SÁ

Sílvia, chamas-me tão confusamente que me suspendo no sono das palavras.
Dizes amar o que há de duplo em mim, outras facetas,
demorados abraços, um ombro marcado na palidez.
Encosto-me a fitar-te e lenta a voz me apanha
única, pasmada no reconhecimento da linha, a boca escura, clarão, sorriso.
Distancias-me? Não sei que te farei no meu silêncio.
Talvez repartir música em teus lábios, talvez amar-te.
Deixa tombar a nuca, recorda as águas da comporta.

Repetir o Poema, Quasi edições, 2005

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009



Oh Romeo
JOVEM POESIA ESPANHOLA

JOSÉ LUIS PIQUERO


ROMEU NO INTERNATO

Amava a inocência dele, o seu cálido contacto
casual durante o jogo,
o sorriso radiante que também cativara
desde o primeiro instante o Superior.
Os rapazes mais rudes ofereciam-lhe doces
e todos o escolhíamos para formar equipas.

Eu amava como um louco a preguiça dele nas tardes
de calor quando, meio adormecido,
a postura indolente, parecia perder-se
no quintal, tão longe detrás da janela enorme,
e o professor de Ciências era um adorno inútil.
Amava-o se a camisola lhe caía
da cintura quase aos tornozelos
ou se declarava muito sério detestar a sopa
ou não percebia uma piada das frescas.

Amava sobretudo a sua falta de defesa, as lágrimas
que tanto embelezaram o seu rosto certa vez
que se aleijou numa perna no recreio, e levá-lo
apoiado ao meu ombro para arranjar uma ligadura.

E no instante glorioso em que lhe deram
- pela sua cara bonita - o papel de Julieta
e pude por fim dizer-lhe quanto o amava, o amava
em voz alta, olhando-o nos olhos,
diante de todo o colégio, diante dos meus pais.

domingo, 1 de fevereiro de 2009












Fotografia de Graça Martins
Ele levou-me uma destas tardes para a inquietação. Deitou a face sobre a minha perna. Disse
Amar-te ao menos uma vez, deixar em ti algumas pétalas. Um cheiro.
No meu corpo de homem consenti. De canto a canto dos lençóis fui arrancando borboletas, farrapos, aneis.

Isabel de Sá, Repetir o Poema, Quasi Edições, 2005

Fragmento de FENDA ABERTA de

F. SCOTT FITZGERALD

(...) Mal se olha o Mediterrâneo ficamos logo a perceber por que é que o homem se pôs ali de pé, pela primeira vez, e estendeu ao sol os seus braços. É um mar azul; ou antes, mais azul será por causa da estafada frase que descreve todo o charco, desde o Pólo Norte ao Sul. É o azul feérico dos quadros de Maxfield Parrish; o azul dos livros azuis, da essência azul, de olhos azuis, e a sombra das montanhas é uma faixa de terra verde que contorna cinquenta quilómetros a costa e faz o campo de golfe do mundo. A Riviera! O nome das suas estações, Cannes, Nice, Monte Carlo, evocam a memória de uma centena de reis e príncipes sem trono que ali foram morrer, de rajás e beis misteriosos a atirar diamantes azuis a dançarinas inglesas, milionários russos a dilapidar fortunas na roleta nesses dias de caviar já perdidos, de antes da guerra. Desde Charles Dickens a Catarina de Médicis, desde Eduardo Príncipe de Gales no auge da popularidade a Oscar Wilde no mais fundo da desgraça, toda a gente veio esquecer aqui ou celebrar, esconder-se ou libertar-se, construir palácios brancos sobre saques da opressão ou escrever livros que às vezes minam esses mesmos palácios. (...)

MAXFIELD PARRISH



Sleeping Beauty de Maxfield Parrish


Cinderella de Maxfield Parrish


MAXFIELD PARRISH