quarta-feira, 11 de dezembro de 2013
sexta-feira, 29 de novembro de 2013
domingo, 17 de novembro de 2013
sexta-feira, 15 de novembro de 2013
quarta-feira, 23 de outubro de 2013
Clarice Lispector
"Mesmo os que gostavam muito de Clarice a achavam cansativa. Ela evocava nos outros uma sensação de protecção, uma ânsia de a ajudar no seu grande sofrimento, embora os amigos deixassem bem claro que ela não lhes pedia nada. "era mais um sentimento que ela despertava na gente", disse Rosa Cass. E a carência de Clarice era extenuante. Tati de Moraes, a primeira das nove mulheres de Vinícius de Mora...es, perguntou uma vez a Rosa: "Há quanto tempo você é amiga de Clarice? Porque ninguém aguenta isso muito tempo."
A nível artístico e intelectual, Clarice era absolutamente independente, mas a nível emocional era tão dependente como uma criança. Nos seus livros de apontamentos pessoais, ela falava da dificuldade de se relacionar com as outras pessoas:
"Me perguntei se eu não evito aproximação com as pessoas por medo de vir a odiá-las. Com todo o mundo me dou mal. Eu não tenho tolerância. Ela me disse (...) que sou uma pessoa difícil de dar carinho. Respondi: bem, não sou o tipo que inspira carinho. Ela: você quase que empurra a mão que lhe dão para ajudar. Às vezes você precisa de ajuda, mas não pede."
Clarice não diz o nome da mulher com quem estava a ter esta conversa, mas o tom sugere uma terapeuta, Inês Besouchet, ou a mulher que ela começou a consultar no início de 1968, Anna Kattrin Kemper, conhecida por Catarina. Kemper era uma amiga alemã de Inês Besouchet e de Hélio Pellegrino, e tinha vindo para o Rio de Janeiro depois da guerra.
Clarice tinha vergonha ou sentia-se inquieta, pelo facto de fazer psicanálise, e não queria que essa informação se tornasse pública."
CLARICE LISPECTOR, Uma Vida, Benjamin Moser, Civilização Editora, 2009.
A nível artístico e intelectual, Clarice era absolutamente independente, mas a nível emocional era tão dependente como uma criança. Nos seus livros de apontamentos pessoais, ela falava da dificuldade de se relacionar com as outras pessoas:
"Me perguntei se eu não evito aproximação com as pessoas por medo de vir a odiá-las. Com todo o mundo me dou mal. Eu não tenho tolerância. Ela me disse (...) que sou uma pessoa difícil de dar carinho. Respondi: bem, não sou o tipo que inspira carinho. Ela: você quase que empurra a mão que lhe dão para ajudar. Às vezes você precisa de ajuda, mas não pede."
Clarice não diz o nome da mulher com quem estava a ter esta conversa, mas o tom sugere uma terapeuta, Inês Besouchet, ou a mulher que ela começou a consultar no início de 1968, Anna Kattrin Kemper, conhecida por Catarina. Kemper era uma amiga alemã de Inês Besouchet e de Hélio Pellegrino, e tinha vindo para o Rio de Janeiro depois da guerra.
Clarice tinha vergonha ou sentia-se inquieta, pelo facto de fazer psicanálise, e não queria que essa informação se tornasse pública."
CLARICE LISPECTOR, Uma Vida, Benjamin Moser, Civilização Editora, 2009.
domingo, 20 de outubro de 2013
A POESIA VAI ACABAR
A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: " Que fez algum
poeta por este senhor?" E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
- Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? -
Manuel António Pina
Algo parecido com isto, da mesma substância, Afrontamento, 1992.
O Corpo Desenhado
Talvez a linha se acenda e continue
ondeando a página e sendo nós só a margem
de um domínio onde fulge a inocência,
talvez se revele a transparência inicial
em que a luz de estar a ver seja a palavra mesma.
Vêm figuras que se espraiam e crescem
até serem apenas ondulada memória.
Adensam-se outros corpos e enterram-se no fogo.
As linhas enovelam-se num delírio exacto.
A alegria ilumina penumbras de volumes.
Em tensos membros lúcidos e redondos
move-se o desenhado corpo ligeiro
e lento. Aumenta a densidade até ao centro
de um deus que diz o esplendor silencioso.
Ou só o ar ondeia num planalto de vento.
António Ramos Rosa
Volante Verde, Moraes Editores, Lisboa, 1986.
domingo, 13 de outubro de 2013
quarta-feira, 25 de setembro de 2013
terça-feira, 24 de setembro de 2013
A propósito do filme E AGORA? LEMBRA-ME de Joaquim Pinto
“ Uma obra de Arte é boa quando
nasce de uma necessidade”
Rainer Maria Rilke
A
Eduarda (escritora Eduarda Chiote) tinha-me avisado: Gracinha, tu vais
chorar muitas vezes ao ver o filme do Quim Zé! Eu chorei, é verdade, mas talvez
por razões diferentes das que a Eduarda imaginaria! Eu chorei como choro ao
ouvir a Sonata a Kreutzer de Beethoven ou Tristão e Isolda de Wagner. Eu choro
perante a evidência da BELEZA, eu choro com o excesso dessa beleza. E o filme
do Joaquim Pinto é a BELEZA TOTAL. É um filme filosófico que me transporta para
as palavras da filósofa Maria Zambrano nos seus livros “A Metáfora do Coração”
ou “Clareiras do Bosque”. E porquê? Porque o filme de Joaquim Pinto ao focar
uma libélula, um caracol ou lesma, os pássaros agitados, um pássaro morto,
vermes, coelhos mortos, moscas, mosquitos, abelhas, todos na sua sobrevivência,
no seu tempo de vida, REVELA-NOS o
renascer constante da natureza e a sua morte, o tempo, a destruição: Está a falar
da VIDA! Da vida de todos nós, do planeta, das pessoas, da nossa condição
precária, da nossa frágil imunidade. Mas não só, mais importante que tudo o que
se revela neste filme tão poético e com imagens belíssimas é a consciência do
AMOR! E só quem experienciou o amor, o pode reconhecer. O amor atravessa este filme do princípio ao
fim. E essa felicidade, é a maior dádiva. Como diz Joaquim Pinto são tralhas a mais,
muita tralha que não vale a pena. A vida é imprevisível, é a realidade! Qualquer
um de nós pode morrer amanhã, atropelado, na queda de um avião, num atentado,
esfaqueado num assalto, um ataque cardíaco, um tiro numa cena de ciúmes, um
acidente de automóvel, um simples mergulho no mar ou numa piscina, infectado
com um vírus, uma picada de mosquito, tanta coisa, mas também já dizia Maria
Gabriela Llansol: “Aquele que não amou vai prestar contas aos Deuses”.
A troca de amor, o afecto protector
que nos aparece no filme de Joaquim Pinto, não como uma ficção mas como uma
vivência real é a MAIOR beleza deste
filme, assim como o instinto de sobrevivência. Tratamentos de choque e a
resistência para continuar porque o outro, aquele que está ao nosso lado,
continua ali, atentamente, à nossa espera, ao nosso acordar. E se quisermos
procurar essa história das mensagens, então a mensagem que me foi revelada é a
de que andamos a perder tempo. A VIDA existe em toda a sua plenitude à nossa
volta, seja na natureza e nos seus ciclos de vida, seja na beleza encontrada na
pessoa que amamos, independentemente do seu género. Parabéns Joaquim Pinto
(queridos Quim Zé e Nuno). A tua poética
já revelada nos belíssimos filmes “Onde bate o Sol” e “Uma pedra no bolso” é o
fio condutor de todo um programa que aqui atinge o ponto máximo, com as suas
imagens autobiográficas, políticas e sempre ligadas à natureza e à vida real.
PARABÉNS!
Graça Martins
segunda-feira, 23 de setembro de 2013
Poema de António Ramos Rosa
Eu diria que não vejo nada e que não sei.
Algo está suspenso. A hora repousa.
Eu quero estar vivo como uma ferida, como um signo,
não mais do que um rumor de coisa nua.
Neste momento nada é confuso e opaco.
Os labirintos são trémulos, transparentes.
Dir-se-ia que atravesso um jardim e toda a vida
repousa entre as forças da cinza
e o fulgor da chama. E adormeço
sentindo a beleza e o tempo, o mesmo ...arco
iluminado."
Algo está suspenso. A hora repousa.
Eu quero estar vivo como uma ferida, como um signo,
não mais do que um rumor de coisa nua.
Neste momento nada é confuso e opaco.
Os labirintos são trémulos, transparentes.
Dir-se-ia que atravesso um jardim e toda a vida
repousa entre as forças da cinza
e o fulgor da chama. E adormeço
sentindo a beleza e o tempo, o mesmo ...arco
iluminado."
António Ramos Rosa, in "Acordes"
O Poeta das palavras solitárias trocou-nos por Orfeu!
Morreu hoje o poeta António Ramos Rosa. Autor de uma obra poética muito vasta
(mais de cem títulos). Poeta, ensaísta. Um homem sensível e generoso, atento à poesia que ia aparecendo . Lembro-me quando escrevia crítica de poesia no JL. Uma chamada de atenção a jovens poetas e sempre elegante nas suas análises. Tinha 34 anos quando publicou o primeiro livro, em
1958. "O Grito Claro".
Influenciou dezenas de autores, foi várias vezes premiado. Nos últimos anos vivia numa Casa de Repouso, perto do CCB. Um espaço sossegado, rodeado de natureza. Continuava a fazer os seus poemas e a reeditar vários livros. A mulher da sua vida, Agripina, cuidava do seu conforto assim como a sua incansável sobrinha Gisela Ramos Rosa. Tanto Agripina como Gisela Ramos Rosa publicaram livros de poemas. Faria 89 anos no próximo mês
de Outubro.
terça-feira, 3 de setembro de 2013
Mónica Baldaque - Dias contados (JL de Julho de 2013).
Nasci na província, à meia-noite de um domingo de 12 para 13 de maio. Descia a procissão das velas pela quinta dos meus avós, e a lua em quarto-crescente brilhava no céu azul-limpo.
Nasci num dos quartos do mirante, sobre o magnífico vale da Régua. Magnífico, quando tudo eram quintas e caminhos estreitos entre muros e oliveiras; e as vidas eram secretas; e o canto compassado dos cavadores me inquietava, como se preparassem um ritual de morte.
Não era uma vila, nem uma aldeia, mas um lugar: lugar de Godim, antiquíssimo, referido em pergaminhos do tempo de Egas Moniz.
Aquela casa fora dos meus bisavós, e passara para minha avó e a sua irmã, espanholas de Zamora.
Quando eu nasci, alguém me tirou o coração e o escondeu na casa. Por isso ele nunca deixou de bater lá, e continua, para sempre.
A família do Douro era uma gente estranha. Liam muito, escreviam bem, tinham uma tendência para o teatro, e um temperamento feroz; para eles, nada era verdadeiramente importante, nem viver nem morrer, nem ser isto ou aquilo, e geriam com desprendimento as fortunas que vinham e iam.
Eles representavam o mundo fantástico para uma criança. Eu era feliz, porque não me exigiam mais do que aquilo que era natural eu dar, o que significava que vivia ali num estado de liberdade e de confiança nos adultos.
Depois de um mês de férias no Douro eu chegava a casa dos meus pais, no Porto, com os deveres por fazer, má pronúncia, feridas no corpo, porque me alimentava de batatas fritas e ovos estrelados. Sempre detestei que chamassem por mim para ir para a mesa!
Nas tardes de muito calor, eu lia na sala às escuras as histórias as histórias da Elena Fortún, em espanhol: os dias de Célia e as suas primitas que viviam em Madrid e passavam férias em Santander. Representavam já uma época um pouco antiquada, mas não deixava de me tocar pelas ligações familiares que se esboçavam, divertidas, complexas, agitadas.
Com os meus pais, as regras mudavam: era a escola, o estudo, as obrigações de cumprir, de me formar no conhecimento da vida e das pessoas. Exigiam que eu estivesse atenta e soubesse exprimir-me.
Chorava, quando vinha do Douro, mas enfrentava com coragem e determinação este outro desafio a vencer.
Mas o tempo da primeira infância, passei-o em Coimbra. Meu pai concluía Direito, minha mãe escrevia e tratava de mim e da casa. Vivíamos numa pequena casa dentro de um jardim, próxima da dos meus avós paternos. Meu avô era militar, e todos os dias o impedido lhe trazia o cavalo a casa, para ele seguir para o quartel. Levava-me a passear a pé até à Quinta das Lágrimas ou ao Portugal dos Pequeninos, o que significava andar 5 quilómetros por dia! Muito pequena, já olhava as plantas com imensa delicadeza e ternura. Chegava a cas sempre com um raminho de alecrim.
Mudámos entretanto para o Porto. Gostei de fazer a primária na escola pública de Cedofeita.
Lembro-me de todas as amigas que lá tive, da rua que percorria, das lojas, do recreio da escola com duas enormes tílias que o ensombravam. E de escrever no caderno - 1952.
Depois o Liceu Michaelis, a que não consegui adaptar-me. Não gostava do edifício, nem dos corredores, nem dos recreios. Tudo aquilo era inóspito e hospitalar. O meu rendimento era mau. Mudaram-me para o Colégio da Paz, das freiras Doroteias.
Sempre me enfastiaram as aulas. Bom, era o tempo de férias no Douro! Lá, se moldou a minha alma provinciana e resistente.
Nunca tive medo de nada. Nem do escuro, nem dos mortos, nem dos fantasmas, nem dos ladrões. Ficava sempre do lado dos personagens mais temíveis, não para os catequizar e trazer para o lado da luz e do bem, mas pelo prazer de os desmontar.
A gente do Paço, de Vila Meã, da parte do meu avó materno, era uma gente valente e aventureira. E a aventura não implica forçosamente partir para o Brasil, ou outros lugares distantes. Pode ser-se aventureiro no espaço limitado do vale onde se nasceu, viveu e morreu, sem de lá ter saído.
No fim do verão, fazia a viagem de comboio, com a minha avó, da Régua até Vila Meã. Ia receber rendas, acertar contas, ouvir queixas, despedir uns, admitir outros.
No fim do verão, fazia a viagem de comboio, com a minha avó, da Régua até Vila Meã. Ia receber rendas, acertar contas, ouvir queixas, despedir uns, admitir outros.
A minha tia Amélia (a Sibila), recebia-me à porta da cozinha, sem um sorriso nem um beijo. Punha-me um avental comprido, e um grosso cordão de ouro ao pescoço. "Aqui todos trabalham" - dizia-me.
Eu aceitava aquela extravagância e procurava não me sair mal. Trocava o babeiro de fustão e bordado inglês branco que usava no Douro pelo avental de chita...Aprendi a fiar linho e a dar de comer aos porcos, e ouvia em silêncio as conversas cheias de conflitos, dos adultos, à luz da candeia de azeite.
Só muito mais tarde percebi o sentido do avental e do cordão de ouro. Era como quem me dizia: - tu és aqui rainha, podes usar o ouro, mas trabalhas com os outros todos.
Pouco convivi com essas tias, irmãs do meu avó materno, mas esse ensinamento ficou-me para toda a vida. E a suspeita, ainda, de que elas consideravam o amor coisa de velhos e ociosos!
Com meu avó, já convivi mais. Não confiava nele. Vivia ao contrário de todos nós, e transtornava a vida da casa. Almoçava às três da tarde, saía às cinco, e só voltava de madrugada. O avó jogava, e fazia negócios. No jogo ganhava, nos negócios perdia. Lia romances de capa - e - espada que lhe mandavam em caixotes, da livraria.
Já muito doente, pediu que lhe pendurassem no quarto, em frente à cama, o relógio da sala de jantar. Queria saber a que horas ia morrer, o que nos pareceu bem.
1962 - o grande ano de todas as mudanças. Fomos viver para Esposende. Uma casa isolada num pinhal, numa terra de pescadores, deserta no inverno. A mãe fazia uma vida retirada, e eu não podia ser mais feliz naquela terra sem perigos, onde passeava sozinha com o cão, à beira-mar, na praia deserta.
Minha mãe dava-me para ler, Dickens, e mandava-me ir ver os filmes do Bergman. Meu pai desenhava, e ensinava-me a desenhar.
Aí, comecei a escrever. A escrever cartas intermináveis, que eram como diários de bordo.
Ainda estive um ano interna no colégio das Doroteias, na Póvoa, onde andara minha mãe. Mas tendo seguido a área de Letras, que no colégio não havia, fiquei dois anos em casa a estudar com um professor particular que lá ia todos os dias dar-me aulas. Um privilégio fantástico! Era dona do meu tempo.
Entrei em História na Faculdade de Letras do Porto. Fiz uma única cadeira - Paleografia. A mais interessante, porque me obrigava a decifrar, e não a decorar. Mudei para Belas-Artes. Frequentei dois anos a Escola do Porto, e, zangada, pedi a transferência para Lisboa. Fui viver para casa de uma senhora judia alemã, mesmo nas traseiras da sinagoga. Ela fazia-me seguir a sua alimentação Kasher, e contava-me episódios terríveis da guerra, com um sentimento de uma dor apagada e adormecida.
Não gostei de Lisboa. Demasiada luz, demasiada gente, demasiadas ruas perpendiculares, demasiado rio, demasiado pouco do que eu realmente precisav a para seguir o meu destino. Precisava do nevoeiro a entrar-me pela casa dentro, dos negros e azuis da paisagem, da pronúncia de corte castelhana, da linha do Douro, e de tudo o que eu já tinha aprendido e não podia esquecer. É importante que cada um conheça bem os limites do seu mundo, para que ele possa crescer como deve, de dentro para fora, e nunca de fora para dentro, inchando-nos.
Os meus pais compraram a casa do Gólgota, sobre o rio, e aí se fixaram. Foi uma casa de ingleses, que mantém a mesma traça e a mesma atmosfera. Já pouco lá vivi, porque casei entretanto. Mas sinto ser essa, hoje, a casa de família.
Semeou sécias no jardim, e morreu lá, minha avó materna; e as coisas todas foram tomando conta do seu lugar.
A casa do Douro foi vendida, e eu dormi lá na última noite com as minhas filhas. Demos uma volta aos quintais antes de entregarmos a chave, e tive uma pena imensa das galinhas que ficavam no galinheiro.
Ah! Fiz uma carreira nos museus, de que já me esqueci. Não por mágoas, mas porque isso foi a minha vida paralela que ficou para trás, esbatida. Foi uma tarefa que cumpri, mas não um destino. Esse, é só meu, não partilhável, e será o que eu deixo em testamento aos meus três filhos.
Eu aceitava aquela extravagância e procurava não me sair mal. Trocava o babeiro de fustão e bordado inglês branco que usava no Douro pelo avental de chita...Aprendi a fiar linho e a dar de comer aos porcos, e ouvia em silêncio as conversas cheias de conflitos, dos adultos, à luz da candeia de azeite.
Só muito mais tarde percebi o sentido do avental e do cordão de ouro. Era como quem me dizia: - tu és aqui rainha, podes usar o ouro, mas trabalhas com os outros todos.
Pouco convivi com essas tias, irmãs do meu avó materno, mas esse ensinamento ficou-me para toda a vida. E a suspeita, ainda, de que elas consideravam o amor coisa de velhos e ociosos!
Com meu avó, já convivi mais. Não confiava nele. Vivia ao contrário de todos nós, e transtornava a vida da casa. Almoçava às três da tarde, saía às cinco, e só voltava de madrugada. O avó jogava, e fazia negócios. No jogo ganhava, nos negócios perdia. Lia romances de capa - e - espada que lhe mandavam em caixotes, da livraria.
Já muito doente, pediu que lhe pendurassem no quarto, em frente à cama, o relógio da sala de jantar. Queria saber a que horas ia morrer, o que nos pareceu bem.
1962 - o grande ano de todas as mudanças. Fomos viver para Esposende. Uma casa isolada num pinhal, numa terra de pescadores, deserta no inverno. A mãe fazia uma vida retirada, e eu não podia ser mais feliz naquela terra sem perigos, onde passeava sozinha com o cão, à beira-mar, na praia deserta.
Minha mãe dava-me para ler, Dickens, e mandava-me ir ver os filmes do Bergman. Meu pai desenhava, e ensinava-me a desenhar.
Aí, comecei a escrever. A escrever cartas intermináveis, que eram como diários de bordo.
Ainda estive um ano interna no colégio das Doroteias, na Póvoa, onde andara minha mãe. Mas tendo seguido a área de Letras, que no colégio não havia, fiquei dois anos em casa a estudar com um professor particular que lá ia todos os dias dar-me aulas. Um privilégio fantástico! Era dona do meu tempo.
Entrei em História na Faculdade de Letras do Porto. Fiz uma única cadeira - Paleografia. A mais interessante, porque me obrigava a decifrar, e não a decorar. Mudei para Belas-Artes. Frequentei dois anos a Escola do Porto, e, zangada, pedi a transferência para Lisboa. Fui viver para casa de uma senhora judia alemã, mesmo nas traseiras da sinagoga. Ela fazia-me seguir a sua alimentação Kasher, e contava-me episódios terríveis da guerra, com um sentimento de uma dor apagada e adormecida.
Não gostei de Lisboa. Demasiada luz, demasiada gente, demasiadas ruas perpendiculares, demasiado rio, demasiado pouco do que eu realmente precisav a para seguir o meu destino. Precisava do nevoeiro a entrar-me pela casa dentro, dos negros e azuis da paisagem, da pronúncia de corte castelhana, da linha do Douro, e de tudo o que eu já tinha aprendido e não podia esquecer. É importante que cada um conheça bem os limites do seu mundo, para que ele possa crescer como deve, de dentro para fora, e nunca de fora para dentro, inchando-nos.
Os meus pais compraram a casa do Gólgota, sobre o rio, e aí se fixaram. Foi uma casa de ingleses, que mantém a mesma traça e a mesma atmosfera. Já pouco lá vivi, porque casei entretanto. Mas sinto ser essa, hoje, a casa de família.
Semeou sécias no jardim, e morreu lá, minha avó materna; e as coisas todas foram tomando conta do seu lugar.
A casa do Douro foi vendida, e eu dormi lá na última noite com as minhas filhas. Demos uma volta aos quintais antes de entregarmos a chave, e tive uma pena imensa das galinhas que ficavam no galinheiro.
Ah! Fiz uma carreira nos museus, de que já me esqueci. Não por mágoas, mas porque isso foi a minha vida paralela que ficou para trás, esbatida. Foi uma tarefa que cumpri, mas não um destino. Esse, é só meu, não partilhável, e será o que eu deixo em testamento aos meus três filhos.
quarta-feira, 21 de agosto de 2013
7 Perguntas a Graça Martins - Correio do Porto - online
segunda-feira, 29 de julho de 2013
MÃE
mãe
terminou o tempo
de sorrir
desculpa-me a morte
das plantas
tatuei a tua antiga
imagem loura
em todos os pulsos
que anjos inclinam
de existires
perdi-me noite na planície
branca
sobrevivente das madrugadas
da memória
trocaram-me os dias
e as ruas de ancas
verticais
e nas minhas mãos incompletas
trouxe-te
um naufrágio
de flores cansadas
e o único jardim de amor
que cultivei
de navios ancorados
ao espaço
Maria Teresa Horta
mãe
terminou o tempo
de sorrir
desculpa-me a morte
das plantas
tatuei a tua antiga
imagem loura
em todos os pulsos
que anjos inclinam
de existires
perdi-me noite na planície
branca
sobrevivente das madrugadas
da memória
trocaram-me os dias
e as ruas de ancas
verticais
e nas minhas mãos incompletas
trouxe-te
um naufrágio
de flores cansadas
e o único jardim de amor
que cultivei
de navios ancorados
ao espaço
Maria Teresa Horta
TU
Com esse teu ar
de arcanjo negro
pálido e magro
triste e alheado
ficas por vezes quase etéreo
calado
enquanto eu te olho docemente
Num espanto condenado
quase místico
debruço-me secreta à tua beira
e numa espécie de prece
porque existes
alheado - magro
belo e triste
estou de joelhos
meu amor
e beijo-te
Maria Teresa Horta
Com esse teu ar
de arcanjo negro
pálido e magro
triste e alheado
ficas por vezes quase etéreo
calado
enquanto eu te olho docemente
Num espanto condenado
quase místico
debruço-me secreta à tua beira
e numa espécie de prece
porque existes
alheado - magro
belo e triste
estou de joelhos
meu amor
e beijo-te
Maria Teresa Horta
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