sexta-feira, 31 de julho de 2009


NARRATIVA
Paulo da Costa Domingos

Na actualidade, volta a não existir lugar onde não grasse a censura. Erva daninha tudo invadindo, lares adentro. À escuta. Interiorizada, auto-contida, à coca de oportunidades para fazer imperar os velhos dogmas. Os interditos, os "parece mal", os "não se fala com a boca cheia", as afixações proibidas! Mas nada, nada, nada nunca mais poderá envolver-nos julgando-se dissimulado, porque, se a virgindade se perdeu, também a obediência veio ajoelhar à sua própria lama.
A terrível saída da adolescência vinha aí: insaciável. A esticões luciferinos, no género Lúcifer Sem Dor. Daí por diante, a um único apelo tenho respondido: acção poética - e será como atravessar um campo de minas.
frenesi, 2009, Lisboa

quarta-feira, 29 de julho de 2009




Luís Miguel Nava

EM ENTRELINHAS

Tem furos na consciência, este rapaz. Tem a memória
em cacos. Que fará da minha infância quando entrar no
rasgão com que deu a todo o comprimento dela? Que sabe
ele do labirinto onde uma letra se extravia ou do horizonte
em que pressinto um sublinhado? Ignoro o que ele fará,
bem como o que dirá ao ver num poema o céu em entre-
linhas.

A Inércia da Deserção, editora & etc, Lisboa, 1981

quinta-feira, 23 de julho de 2009


Poema de Manuel de Freitas

RUE DU MARCHÉ AUX HERBES

Desta vez foi o teu corpo
-não o sabias tão sensato -
quem tudo fez para impedir o poema,
versos a doer nos músculos.

A cidade adormece, num langor
de puta velha, depois de ter
anestesiado centenas de turistas
com luz inepta e música de encomenda.
Nós, de pé, apenas pedíamos sombra

e eu preferia não situar na Grand Place
uma discreta canção de Brel,
que teve a sorte de morrer
antes de ver a cidade reduzida
a estábulo dos príncipes da mediocridade;
esses que decidem o futuro que não há
e usam gravatas de seda enquanto nos exterminam.

A cidade adormece, cansada de ser puta,
enquanto nós, menos putas,
procuramos em vão esse luxo.
E há baratas, não propriamente
alaúdes, no cerco abrupto das janelas.

Manuel de Freitas, Intermezzi, Op.25, Editora Opera Omnia, Guimarães, 2009

terça-feira, 21 de julho de 2009

Pedro Ayres Magalhães

Ao cair da tarde
Penso sempre mais
E a luz que me invade
São as cores naturais

Cada figura
que passa por mim
nem me perturba
e eu fico assim

Longe me leva este silêncio
e o sentir que se altera
são as cores do sol

E eu fico encantada
e eu sinto-me a arder
quando o dia se apaga
fica tanto por ver

Ao Cair da Tarde Penso Sempre Mais

segunda-feira, 20 de julho de 2009

A CIDADE QUE NÃO DORME

Postagem dedicada ao Camel & Coca Cola
e ao seu gosto pela Poesia, Arquitectura,

edições raras de Livros e Editoras portuguesas
http://camelecocacola.blogspot.com/
http://www.livropelacapa.blogspot.com/

AURORA

A aurora de Nova Iorque tem
quatro colunas de lodo
e um furacão de negras pombas
que chapinham nas águas apodrecidas.

A aurora de Nova Iorque geme
nas escadas imensas
a procurar entre as pedras
nardos de angústia desenhada

A aurora chega e não há quem a receba na sua boca
pois ali não há manhã nem esperança possível.
Às vezes, em enxames furiosos, as moedas
perfuram e devoram abandonados meninos.

Os primeiros a sair compreendem com os ossos
que não haverá paraíso nem amores desfolhados;
sabem que vão para o lodo de números e leis,
para os jogos sem arte, para suores sem fruto.

A luz é sepultada por correntes e ruídos
num repto impudico de ciência sem raízes.
Nos bairros há pessoas que vacilam insones,
como recém-saídas de um naufrágio de sangue.

Lorca - Nova Iorque num Poeta, Hiena Editora, 1995, Lisboa
A Poesia de LORCA quando visitou a cidade de Nova Iorque
A queixa de Lorca contra Nova Iorque tinha origem no divórcio entre vida e natureza que ele encontrava na arquitectura extra-humana e no ritmo furioso, dissociação que a cidade impõe ao visitante. Antes de atendermos a esta queixa deveríamos dizer, porém, que a Nova Iorque dos poemas - sobretudo para nós, que os lemos cinquenta ou mais anos depois de terem sido escritos - não se limita a ser cidade mas encarnação global dos valores sociais e culturais dos americanos, e além disso encarnação de uma qualquer megalópolis do mundo capitalista.
A sua angústia e a sua geometria triunfam sobre os elementos da existência, ao passo que a comunidade orgânica, que entre si e a natureza não abriu nenhuma brecha, passa precisamente pelo contrário: os elementos é que governam os seres vivos e alguns esquemas impõem às suas ambições e aos seus desejos. O canto profundo cantava a noite, e a quem os escutasse recordava a natureza trágica do homem. Lembrá-lo era espiritualmente saudável e unia-os mais, relacionando-os também com o mundo das plantas e dos outros seres. Por outro lado, a noite de Nova Iorque está adulterada, e o céu viciado, e a lua escurecida. Ninguém dorme, insiste Lorca em dizer, na cidade sem sono . Ninguém dorme em nenhum dos sentidos da palavra dormir, pois nem aos mortos a cidade oferece paz:
Há um morto no cemitério mais distante
que há três anos se queixa
por ter no joelho uma paisagem seca;
e o menino que esta manhã enterraram chorava tanto
que só chamando os cães se calou.
Fragmento de A Cidade Sem Sono, Lorca, Nova Iorque num poeta, Hiena

domingo, 19 de julho de 2009







ARNO GRUEN - A TRAIÇÃO DO EU - O Medo da Autonomia no Homem e na Mulher

(...)George Orwell descreveu, num dos seus ensaios, o cerne daquela experiência que dá origem à sensação de desamparo e desespero numa criança. Numa passagem autobiográfica, o reitor do seu colégio interno acaba de bater no jovem Orwell.
«Nem mesmo agora estava eu a chorar por causa da dor. A segunda carga, então,já nem tinha doído muito. O medo e a vergonha pareciam ter-me anestesiado. Chorei, em parte porque senti que tal era esperado, em parte por arrependimento sincero, mas em parte, também, por uma melancolia mais profunda que é própria da infância e não é fácil de transmitir: Uma sensação de solidão sem consolo e impotência, de estar aprisionado não só num mundo adverso mas num mundo do bem e do mal e onde as regras estavam feitas de uma maneira que, na prática, me fosse impossível cumpri-las.» (Such, such were the joys, 1968).
Este tipo de desespero leva a que o nosso interior se nos torne estranho, independentemente da nossa personalidade se desenvolver no sentido da rebelião ou no da adaptação às «normas». A partir daí seremos fieis a formas exteriores, quer estas correspondam à ideologia oficial da sociedade ou a outra que se lhe oponha. É por sermos alienados do nosso mundo interior - o que faz que este nos pareça disforme, anárquico e, por conseguinte, ameaçador - que, literalmente, nos agarramos às formas exteriores na tentativa de conservarmos algum sentido de identidade.
Franz Kafka descreve este fútil acto do agarrar-se a exterioridades com muita sensibilidade. No seu romance O Processo, por exemplo, José K. esforça-se por provar quem ele é - mediante a sua licença de bicicleta! Os personagens de Kafka sofrem por terem em vão acreditado numa inadequada identidade exterior. Esperam encontrar a sua unidade pela adesão à lei «paterna» para, assim, se salvaguardarem da desintegração decorrente da sua aparente disformidade; mas também esse esforço é em vão. O contrário já acontece com os personagens dos romances de B. Traven, como por exemplo Koslowski na Nau dos Mortos, que luta até ao fim contra qualquer tentativa de lhe imporem uma determinada identidade.
No entanto, a diferença entre a rebelião e o conformismo é fundamental. Só a rebelião torna a autenticidade possível, mas ela tem de conduzir para um sentido de comunhão com os nossos semelhantes. Se ela se dirigir apenas contra algo, a rebelião torna-se um fim em si e conduz ao culto da própria importância. Neste caso, a procura de um Eu autêntico é rejeitada, sendo o resultado final de tal desenvolvimento um Eu sem coração. O perigo aqui, já não vem do exterior. Antes consiste no medo da eventualidade aterradora da solidão, assim como o do caos e da loucura.
Se a rebelião dirigida contra o mundo exterior não for acompanhada de uma transformação interior, o desenvolvimento acaba por ser idêntico ao do conformista. Já que Henry Miller, ele próprio um grande rebelde, nos informa sobre isto tão concludentemente, no seu referido ensaio sobre o falhanço de Rimbaud enquanto rebelde (1956), gostaria «, aqui, de voltar a ele.
A vida de Rimbaud, curta mas fervorosa - acabou a sua maior obra, Une saison en Enfer, aos dezoito anos - é a história de um homem que se revoltou contra o conformismo e o imobilismo e que «após conseguir, à custa de muito esforço, ampliar a sua liberdade e a sua consciência, arrepiou caminho em prol da segurança monetária.» Partindo de uma tentativa pouco habitual de examinar as «maravilhas da terra», este homem separou-se em jovem de amigos e familiares para experimentar a vida em toda a sua plenitude. Mas ele, que já enquanto jovem considerara «a desordem da sua mente sagrada», de repente renunciou completamente ao desafio único que a sua vida tinha sido. A sua procura de autenticidade encalhou, ele vacilou e, a partir daí, prosseguiu na direcção oposta. Transformou-se no inimigo que odiara.
Segundo Miller, Rimbaud, em jovem , fugiu do ambiente insuportavelmente provinciano da casa dos pais. Mais tarde, quando, por horror ou por medo da loucura, se colocou nas mãos que governam o mundo, ele pôs-se a negociar com ouro, espingardas e escravos. Segundo Miller, «desembaraçou-se do seu tesouro como se fosse esse o lastro
«Na Noite no Inferno», quando compreende que é escravo do seu baptismo, ele exclama: "Ó pais que causastes a minha infelicidade e a vossa própria." Renuncia a tudo que o ligue à época ou ao país em que nasceu. "Estou preparado para a perfeição," diz ele. E esteve, de uma certa forma. Tinha preparado a própria iniciação, tinha sobrevivido à terrível provação para depois voltar a perder-se na noite de que nascera. Tinha percebido que havia um degrau para além da arte e tinha transposto o seu limiar para, a seguir, retirar-se em pânico ou com medo da loucura. [...]Temos de chegar aos limites das nossas forças, aprender que somos escravos - de uma forma ou de outra -, para desejarmos a libertação. A vontade perversa, negativa, fomentada pelos nossos pais, tem de ser ultrapassada para poder tornar-se positiva e integrada com o coração e a mente. O pai (em todos os sentidos) tem de ser destronado para que o filho possa reinar [...] Ele é o preceptor severo, a letra morta da lei, o sinal Proibido. Fazemos trinta por uma linha, entramos em amok, cheios de uma falsa sensação de poder e de um orgulho idiota. Depois vamo-nos abaixo e o Eu que não é Eu desiste. Mas Rimbaud não se foi abaixo. Não destrona o pai, mas identifica-se com ele. [...] Altera a sua identidade tão profundamente que não se reconheceria se se encontrasse na rua. Talvez seja esse o último esforço desesperado para darmos a volta à loucura - tornamo-nos tão eximiamente saudáveis que nem nós saberemos que somos loucos.»
No fim da sua vida, «quando, na quinta da sua mãe avarenta, se arrastava dolorosamente para o seu fim», ralhou com alguém que tentou colocar-lhe algumas perguntas sobre a poesia da sua juventude:«Por favor, deixe-me em paz com isso! Toda essa merda acabou.» (Rimbaud, 1979)
Foi como se tentasse apagar os odiados contornos sobre a loucura da saúde mental - a qual se torna o refúgio do mais profundo ódio à vida - descreve a essência do que se passa num Eu sem autonomia. Independentemente de termos sido rebeldes ou conformistas, o que está em jogo, desde o princípio, é o ódio de si próprio que caracteriza todo o indivíduo que abandonou o seu Eu. (...)
Arno Gruen, A Traição do Eu, Assírio&Alvim, 1996, Lisboa

A vida não é lógica nem ordenada. O que tem vida é caótico

ARNO GRUEN

sábado, 18 de julho de 2009













Graça Martins, acrílico s/tela, 2009
POEMA DE JOÃO BORGES


O deserto tem este travo
de morte distante, faz-me
anticorpo para o meu corpo,
putrefacto e lento,
desleal ao mundo.

Um dia acordei e era isto.

Acordei tarde e fiquei preso
ao silêncio de ter perdido o dia.
Esperei pela noite
para beber um pouco,
fumar uns cigarros no bar do costume
e passear sózinho
pela alameda às seis da manhã
com a tua casa atrás de mim,
como uma sombra
a sublimar o medo.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Os anos 50




PAULO DA COSTA DOMINGOS

NARRATIVA

NEM ME LEMBRO de ter nascido. Estou aqui desde sempre. Faça-se de conta que nada disto aconteceu. Há quem julgue o imaginário menos cruel que a vida quotidiana. Talvez menos que a memória; mesmo a memória sumária. Abro uma gaveta, uma madeixa de cabelo em caracol, presa de um laço em seda, ilumina-a o Sol. Pedaço de mim. A cédula militar - pedaço de tempo: perdido. Esfacelado, da correria na mata empós de javalis na jovialidade tôla de fardas recrutas obedientes. Dementes horas, absurdos dias, meses de demência febril no Verão Quente. E, súbito: o cachorrito ao colo. A nesga do sol na gaveta confina toda a década de 50. E as de 60 e 70. Décadas de inúteis, e sem prodígio: funcionários de deus-pátria-família. Até à noite dos filhos, que se lhes seguiu - néonnada, mas noite; e ainda não parou. Parece aqueles verões de estâncias de férias para trabalhadores, infindáveis até nos namoros sobre a caruma. Dilacerantes às primeiras chuvas, ao gelo nas hastes desfolhadas, no sagrado coração. 1953 não recordo. Um mês depois de eu chegar, partia António Maria Lisboa. Nesse preciso ano escreveu alguém a ácido nas paredes, no centro nevrálgico do capitalismo, «ne travaillez jamais». Era na época da tortura fascista dissimulada, rosto debaixo do chapéu, olhar encoberto pela aba (hoje, é esta coisa amorfa sem rosto, estes voos sem escala, se tanto cinco minutos, do médico de família). (...)

O universo de um miúdo lisboeta pouco mais se estende além da medida dos seus braços e pernas. O que dá para muito recreio em volta, e proporcionais ralações familiares. Assim era por esses dias; as próteses tecnológicas teorizadas pelo MacLuhan vinham distantes: hoje, está a circum-navegação acessível a qualquer um, qualquer condição de classe, e, faça-se o que se fizer a impedi-lo, em qualquer idade. Indianas, latinas, asiáticas - osso que será virtual -, mas sobretudo delirantes imagens, falsa carne, vieram substituir os velhos índios e soldaditos de plástico. As minúsculas tendas são agora serralhos, e a regra do jogo define-se pela intencional omissão de todas as regras. Ninguém saberá ao certo quanto lhe é permitido ou o quê, excepto nalguns frágeis ditos arcaicos, tabus, ignorando-se se da ordem supersticiosa da religião, se da da higiene ou saúde públicas. (...)

Fragmento do livro NARRATIVA, editado pela FRENESI, Junho 2009, Lisboa

PARAÍSO DO LIVRO - Livros antigos, raridades e brinquedos
Rua José Falcão - Porto - Um espaço muito simpático





















terça-feira, 14 de julho de 2009

JOSÉ LUÍS PEIXOTO

não quero mentir mais. estou cansado de mentir.
vejo o teu rosto parado numa fotografia e a memória
que guardo de ti é tão diferente da realidade assustadora das fotografias.
mas não vou mentir. estou cansado de mentir.
a minha vida também és tu, o teu rosto parado na minha memória.
a minha vida és tu e todas as mãos que me seguraram e me quiseram,
todos os lábios que me beijaram, todas as línguas que me desenharam figuras
na pele, todos os dentes que me morderam, todas as vozes que me disseram amo-te
e me fizeram acreditar nisso. não quero mentir mais. estou cansado de mentir.
não és quase nada, mas não quero e não vou fingir que nunca exististe.
BLOOD BLOOD - ANISH KAPOOR





























José Luís Peixoto

todo o amor do mundo não foi suficiente porque o amor não serve de nada. ficaram só
os papeis e a tristeza, ficou só a amargura e a cinza dos cigarros e da morte.
os domingos e as noites que passámos a fazer planos não foram suficientes e foram
demasiados porque hoje são como sangue no teu rosto, são como lágrimas.
sei que nos amámos muito e um dia, quando já não te encontrar em cada instante, em cada hora,
não irei negar isso. não irei negar nunca que te amei. nem mesmo quando estiver deitado,
nu, sobre os lençois de outra e ela me obrigar a dizer que a amo antes de a foder.

ANISH KAPOOR