sexta-feira, 31 de julho de 2009
Paulo da Costa Domingos
quarta-feira, 29 de julho de 2009
Luís Miguel Nava
Tem furos na consciência, este rapaz. Tem a memória
em cacos. Que fará da minha infância quando entrar no
rasgão com que deu a todo o comprimento dela? Que sabe
ele do labirinto onde uma letra se extravia ou do horizonte
em que pressinto um sublinhado? Ignoro o que ele fará,
bem como o que dirá ao ver num poema o céu em entre-
linhas.
A Inércia da Deserção, editora & etc, Lisboa, 1981
segunda-feira, 27 de julho de 2009
LUÍS MIGUEL NAVA
Às vezes procurava-me, trazia
no sangue a acentuação
do corpo, o que no fundo
dele é marítimo corria à superfície.
quinta-feira, 23 de julho de 2009
RUE DU MARCHÉ AUX HERBES
Desta vez foi o teu corpo
-não o sabias tão sensato -
quem tudo fez para impedir o poema,
versos a doer nos músculos.
A cidade adormece, num langor
de puta velha, depois de ter
anestesiado centenas de turistas
com luz inepta e música de encomenda.
Nós, de pé, apenas pedíamos sombra
e eu preferia não situar na Grand Place
uma discreta canção de Brel,
que teve a sorte de morrer
antes de ver a cidade reduzida
a estábulo dos príncipes da mediocridade;
esses que decidem o futuro que não há
e usam gravatas de seda enquanto nos exterminam.
A cidade adormece, cansada de ser puta,
enquanto nós, menos putas,
procuramos em vão esse luxo.
E há baratas, não propriamente
alaúdes, no cerco abrupto das janelas.
Manuel de Freitas, Intermezzi, Op.25, Editora Opera Omnia, Guimarães, 2009
terça-feira, 21 de julho de 2009
Ao cair da tarde
Penso sempre mais
E a luz que me invade
São as cores naturais
Cada figura
que passa por mim
nem me perturba
e eu fico assim
Longe me leva este silêncio
e o sentir que se altera
são as cores do sol
E eu fico encantada
e eu sinto-me a arder
quando o dia se apaga
fica tanto por ver
segunda-feira, 20 de julho de 2009
Postagem dedicada ao Camel & Coca Cola
e ao seu gosto pela Poesia, Arquitectura,
edições raras de Livros e Editoras portuguesas
http://camelecocacola.blogspot.com/
http://www.livropelacapa.blogspot.com/
A aurora de Nova Iorque tem
quatro colunas de lodo
e um furacão de negras pombas
que chapinham nas águas apodrecidas.
A aurora de Nova Iorque geme
nas escadas imensas
a procurar entre as pedras
nardos de angústia desenhada
A aurora chega e não há quem a receba na sua boca
pois ali não há manhã nem esperança possível.
Às vezes, em enxames furiosos, as moedas
perfuram e devoram abandonados meninos.
Os primeiros a sair compreendem com os ossos
que não haverá paraíso nem amores desfolhados;
sabem que vão para o lodo de números e leis,
para os jogos sem arte, para suores sem fruto.
A luz é sepultada por correntes e ruídos
num repto impudico de ciência sem raízes.
Nos bairros há pessoas que vacilam insones,
como recém-saídas de um naufrágio de sangue.
Lorca - Nova Iorque num Poeta, Hiena Editora, 1995, Lisboa
domingo, 19 de julho de 2009
ARNO GRUEN - A TRAIÇÃO DO EU - O Medo da Autonomia no Homem e na Mulher
sábado, 18 de julho de 2009
O deserto tem este travo
de morte distante, faz-me
anticorpo para o meu corpo,
putrefacto e lento,
desleal ao mundo.
Um dia acordei e era isto.
Acordei tarde e fiquei preso
ao silêncio de ter perdido o dia.
Esperei pela noite
para beber um pouco,
fumar uns cigarros no bar do costume
e passear sózinho
pela alameda às seis da manhã
com a tua casa atrás de mim,
como uma sombra
a sublimar o medo.
quarta-feira, 15 de julho de 2009
PAULO DA COSTA DOMINGOS
NARRATIVA
NEM ME LEMBRO de ter nascido. Estou aqui desde sempre. Faça-se de conta que nada disto aconteceu. Há quem julgue o imaginário menos cruel que a vida quotidiana. Talvez menos que a memória; mesmo a memória sumária. Abro uma gaveta, uma madeixa de cabelo em caracol, presa de um laço em seda, ilumina-a o Sol. Pedaço de mim. A cédula militar - pedaço de tempo: perdido. Esfacelado, da correria na mata empós de javalis na jovialidade tôla de fardas recrutas obedientes. Dementes horas, absurdos dias, meses de demência febril no Verão Quente. E, súbito: o cachorrito ao colo. A nesga do sol na gaveta confina toda a década de 50. E as de 60 e 70. Décadas de inúteis, e sem prodígio: funcionários de deus-pátria-família. Até à noite dos filhos, que se lhes seguiu - néonnada, mas noite; e ainda não parou. Parece aqueles verões de estâncias de férias para trabalhadores, infindáveis até nos namoros sobre a caruma. Dilacerantes às primeiras chuvas, ao gelo nas hastes desfolhadas, no sagrado coração. 1953 não recordo. Um mês depois de eu chegar, partia António Maria Lisboa. Nesse preciso ano escreveu alguém a ácido nas paredes, no centro nevrálgico do capitalismo, «ne travaillez jamais». Era na época da tortura fascista dissimulada, rosto debaixo do chapéu, olhar encoberto pela aba (hoje, é esta coisa amorfa sem rosto, estes voos sem escala, se tanto cinco minutos, do médico de família). (...)
O universo de um miúdo lisboeta pouco mais se estende além da medida dos seus braços e pernas. O que dá para muito recreio em volta, e proporcionais ralações familiares. Assim era por esses dias; as próteses tecnológicas teorizadas pelo MacLuhan vinham distantes: hoje, está a circum-navegação acessível a qualquer um, qualquer condição de classe, e, faça-se o que se fizer a impedi-lo, em qualquer idade. Indianas, latinas, asiáticas - osso que será virtual -, mas sobretudo delirantes imagens, falsa carne, vieram substituir os velhos índios e soldaditos de plástico. As minúsculas tendas são agora serralhos, e a regra do jogo define-se pela intencional omissão de todas as regras. Ninguém saberá ao certo quanto lhe é permitido ou o quê, excepto nalguns frágeis ditos arcaicos, tabus, ignorando-se se da ordem supersticiosa da religião, se da da higiene ou saúde públicas. (...)
Fragmento do livro NARRATIVA, editado pela FRENESI, Junho 2009, Lisboa
terça-feira, 14 de julho de 2009
não quero mentir mais. estou cansado de mentir.
vejo o teu rosto parado numa fotografia e a memória
que guardo de ti é tão diferente da realidade assustadora das fotografias.
mas não vou mentir. estou cansado de mentir.
a minha vida também és tu, o teu rosto parado na minha memória.
a minha vida és tu e todas as mãos que me seguraram e me quiseram,
todos os lábios que me beijaram, todas as línguas que me desenharam figuras
na pele, todos os dentes que me morderam, todas as vozes que me disseram amo-te
e me fizeram acreditar nisso. não quero mentir mais. estou cansado de mentir.
não és quase nada, mas não quero e não vou fingir que nunca exististe.
todo o amor do mundo não foi suficiente porque o amor não serve de nada. ficaram só
os papeis e a tristeza, ficou só a amargura e a cinza dos cigarros e da morte.
os domingos e as noites que passámos a fazer planos não foram suficientes e foram
demasiados porque hoje são como sangue no teu rosto, são como lágrimas.
sei que nos amámos muito e um dia, quando já não te encontrar em cada instante, em cada hora,
não irei negar isso. não irei negar nunca que te amei. nem mesmo quando estiver deitado,
nu, sobre os lençois de outra e ela me obrigar a dizer que a amo antes de a foder.