domingo, 31 de julho de 2011
Foi publicado pela primeira vez entre nós em 1984, quando se lia muito Marguerite Yourcenar (1903-1987), e acompanhou-me em várias noites de insónia. A Relógio D’Água acaba de disponibilizar novamente De Olhos Abertos, em tradução assinada por Renata Correia Botelho.
O livro consiste numa longa conversa com o francês, entretanto desaparecido, Matthieu Galey, e a autora de Memórias de Adriano acabaria por não apreciar o resultado. Teria as suas razões, mas para nós, leitores de De Olhos Abertos, o livro é uma dádiva. Desde logo, de inteligência.Matthieu Galey organizou-o tematicamente e os muitos capítulos tanto cobrem a obra literária da escritora de origem belga (os muitos títulos, influências maiores, etc.), como a sua vida pessoal, sem deixar de lado as convicções de Yourcenar sobre temas tão variados como política, ecologia, feminismo ou religião.
Para quem está familiarizado com os livros da única mulher até agora aceite na Academia Francesa (um facto a que se atribuirá maior ou menor importância), estas entrevistas talvez despertem o desejo de reler coisas tão perfeitas como A Obra ao Negro ou Golpe de Misericórdia. Para os que desconhecem Marguerite Yourcenar, trata-se de uma excelente introdução.
Aristocrata de nascimento e, sobretudo, de espírito, talvez corra, contudo, o risco de ser mal interpretada. Conservadora e absolutamente livre (tanto quanto o poderá ser um ser humano), Yourcenar é uma escritora moral que bebe nos grandes clássicos e na grande literatura e cujas posições — eticamente exigentes e politicamente independentes — talvez pareçam desfasadas num tempo que saiu por aí a galope.
Pomposa, por vezes; simples, quase sempre, deixa-se colar neste livro à frase que fez dizer ao Imperador Adriano: “A verdade é sempre um escândalo”.
De Olhos Abertos, Marguerite Yourcenar, 2011, Relógio D’Água
Postagem do blogue : Meditação na Pastelaria http://wwwmeditacaonapastelaria.blogspot.com
sábado, 30 de julho de 2011
CINEMA - XAVIER DOLAN
Xavier Dolan - Um cineasta nascido em 1989 no Canadá, que tão jovem revela uma CULTURA extraordinária. Os seus filmes surgem num registo contemporâneo, urbano, autobiográfico, e talvez devido a essa autenticidade, criam uma empatia com todo um grupo de jovens, que se vêem retratados nos seus filmes.
"Sou extremista em individualismo, em determinação, em teimosia e em solidão..." palavras deste jovem cineasta que apresenta uma personalidade forte, disposto com os seus filmes, a desmascarar hipocrisias que já não se suportam no séc. XXI. A hipocrisia da família, a formatação da sociedade, os papeis destinados a cada rapaz e rapariga que nasce, seja o seu lugar na sociedade, seja a sua orientação sexual.
Consultem o endereço do blogue Cinema na Rede
http://www.cinemanarede.com/2010/12/sobre-o-cinema-de-xavier-dolan.html
sexta-feira, 29 de julho de 2011
Poema de Joaquim Manuel Magalhães
Se os teus dedos cruzam os meus dedos
esses ângulos são infinitos, nem são ângulos,
contêm estilhaços em fogo, a respiração das seivas.
O teu corpo não tem parcelas.
O prumo atravessa-te da cabeça aos pés,
sem largura, suspenso dos meus olhos.
Os extremos, um no ar outro na terra,
cercam os meus caminhos.
Todos os teus pontos respiram
uma água a que chamo ruas.
A superfície mede o teu peito,
o volume as tuas mãos, o abismo
as costas curvadas no lençol.
Um dos pontos, o que me atravessa,
prolonga-se até ao meu repouso.
Aquele onde te atravesso eu
é um centro receoso, o mundo, a infância
que ninguém soube viver.
uma luz com um toldo vermelho, Editorial Presença, Lisboa, 1990
quarta-feira, 27 de julho de 2011
Carta de Manuela Santos para José Miguel Wisnik depois da descoberta da cantora brasileira ELZA SOARES.
Uma tal Elza Soares
Descobri por acaso este disco “DO CÓXIS ATÉ AO PESCOÇO” e tenho-o partilhado com alguns amigos. (O disco e as primeiras impressões que registei mal o ouvi):
Trata-se dum objecto musical insólito, desconhecido entre nós, e francamente desconcertante, provavelmente esdrúxulo na própria carreira da intérprete.
Tudo começou numa aula de ginástica, já no ido 2004, com uma canção do Cole Porter cantada por uma voz negra americana, mas em... brasileiro. Em dueto com Chico Buarque. Uma voz de espantação. Investigada a origem, lá fui para a FNAC à procura duma tal Elza Soares e descobri este disco fulminante.
A voz, em vez do açúcar brasileiro, tem ácido sulfúrico. E as letras são puro veneno. Como não usei antídoto, a corrosão fez estragos na alma. Mas dos bons, fiquei em estado de exaltação. Perguntei-me (e continuo a perguntar) se seria mesmo um grandecíssimo disco, ou se estaria a exagerar...
A mistura duma voz antiga, negra, forte, plástica, com ritmos alucinados, as letras que ela ousa gritar como quem atira nitroglicerina às trombas de todos nós, a explosão de vitalidade e criatividade, organizados com tanta riqueza e inovação formais, pareceram-me um assombro.
No Samba, no Rap, no Choro ou no Tango, em todas as cores, perfumes, timbres, eu ouvi SÉCULOS DE DESESPERO EM FORMATO TROPICAL. Muito ritmo, muita festa, muito excesso, muito carnaval. E uma dor e uma raiva que arranham a alma, e uma
grandeza que assombra, e uma coragem tão excessiva que é quase imolatória.
Esta Elza Soares em cada frase celebra toda a tragédia da escravatura e da negritude quando dança ou quando chora, quando grita ou murmura. Mesmo quando a voz se adoça, sabe a sangue, e a gargalhada abre-se em ferida.
Em algumas das faixas, por trás duma parafernália electrónica, surge aquela voz, qual oficiante duma celebração satãnica ou divina; homicida e suicida; rezando e blasfemando, numa implosão de contrastes que nos abrasam com o mesmo fogo em que se consome a celebrante.
Passei a considerá-lo, seguramente, um dos discos da minha vida.
Depois de escrever estas 1.ªs impressões que o disco me causou, enviei-as a um amigo brasileiro e pedi-lhe algumas informações sobre a cantora. Mais tarde, uma pesquisa na Internet deu-me mais dados.
E o que vim a saber confirmou e explica o que senti desde o início: a genialidade duma intérprete de excepção; as trágicas atribulações biográficas que se alquimicaram em dor e raiva na voz; um milagre de energia e inovação aos 72 anos de idade; a falta do reconhecimento devido, como paga do excesso de ousadia e do pouco tino comercial.
A “B.B.C.” elegeu-a em 2000 a “cantora do milénio”, e só por isso arranjou editora para este colossal disco, e das mais pequenas.
Quando o disco saiu, em Abril de 2002, muitos críticos da MPB logo o elegeram como o “disco do ano” no Brasil, e alguns deles,
nem tão poucos como isso, disseram mesmo que era o melhor disco dos últimos 5 anos editado no Brasil. Mas nem isso ajudou a sua divulgação em Portugal. Nem uma referência, e apenas a FNAC teve alguns exemplares à venda.
Estupefacta com a relação qualidade do objecto ó nacional ignorância, e disposta a fazer justiça à minha modestíssima escala, aproveitei o Natal para oferecer o disco aos amigos, justificando a escolha com uma carta de apresentação, partilhando as intensas emoções experimentadas.
Pensei eu, ingenuamente, que bastaria conhecerem o disco, e a mesma assombração tombaria sobre aquele grupo de amigos que partilha comigo algumas idiossincrasias. Nada mais falso...
Só alguns, bem raros.
Confesso que não percebi o desacerto, e achei que se explicasse melhor... se contasse algumas peripécias biográficas da cantora, então sim, far-se-ia luz nas mentes um pouco obscurecidas dos meus amigos. E escrevi uma segunda carta. Engano meu! As reacções continuavam a ser simpáticas, mas nada entusiastas, com as tais, raras, excepções.
O que me deixa, confesso, um pouco atordoada. Porque não me convenço que seja apenas uma privadíssima idiossincrasia. Ainda acredito que, independentemente dos meus pessoalíssimos gostos, este disco é, de facto, invulgarmente bom.
E é assim que mando este objecto do (meu) culto
Espero que agrade.
A quem decidir ouvi-lo, faça-o como quem reza – no maior recolhimento, a sós, eventualmente com um copo de vinho e um brinde a todos os prodígios deste mundo.
E depois partilhe as suas impressões comigo, sejam próximas, opostas, ou nem isso.
(Mas a quem gostar, partilhe-as também com os seus melhores amigos.)
Manuela Santos*
Psicóloga, Grupanalista, Psicoterapeuta de Inspiração Psicanalítica.
Resposta de JOSÉ MIGUEL WISNIK para MANUELA SANTOS*
Caríssima Manuela,
Há tempos recebi de você uma carta maravilhosa sobre o cantar de Elza Soares. Você nomeava com uma propriedade espantosa e entusiasmante as qualidades poderosas e únicas dessa artista que eu também quero tanto. Preciso te dizer que reconheci um por um dos meus próprios sentimentos naquilo que você escreveu, sem tirar nem por. Você se espantava e se decepcionava com a percepção de que aquilo que nos parece acachapantemente óbvio não ressoava no comum das pessoas com a mesma intensidade. Talvez hoje em dia você tenha admitido que essa discrepância de sentimentos, e a ausência de uma entrega total à escuta de uma voz tão entregue ao canto e à vida, sejam mais comuns do parecem, e que fazem parte do modo como as pessoas se resguardam, se protegem e anestesiam. O que não é admissível, para mim, no entanto, é que eu mesmo, ao chegar de Portugal ao Brasil, daquela vez, tenha me desorganizado e deixado sua carta num lugar perdido entre tantas coisas, e não tenha te respondido à altura. Inclusive porque você pedia expressamente que as impressões fossem partilhadas. Foi um momento feliz, mas tingido de remorso, este em que eu reencontrei a carta, e em que te escrevo. Quero reparar esse silêncio de anos, agradecendo a você pelas maravilhosas palavras e gesto, como o dessa dádiva com que você multiplicou o “Do cóccix até o pescoço” pelo mundo.
Um abraço carinhoso e reconhecido
Do
José Miguel*
*José Miguel Soares Wisnik, músico, compositor, ensaísta brasileiro, professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo.
*Manuela Santos, Psicóloga, Grupanalista, Psicoterapeuta de Inspiração Psicanalítica.
No decurso do II Encontro da Associação Portuguesa de Prevenção do Alcoolismo, foi abordado o tema “O Álcool na Literatura _ O Escritor e a Obra” que incluiu uma homenagem a Natália Correia, para a qual me pediram colaboração. Escolhi nessa ocasião dar um testemunho sobre algumas dimensões menos visíveis da personalidade desta escritora que me impressionaram e tocaram duma forma especial (por ter sido sua amiga e por ter privado com ela) e poderão ajudar a compreendê-la um pouco melhor.
Se um talento esplendoroso, uma inteligência luminosa e um magnífico sentido de auto-encenação foram responsáveis pela incendiada admiração que tantos de nós sentimos por Natália Correia, a pose majestática, tonitruante e por vezes feroz, assustaram outros tantos; mas apenas um olhar disponível e sem preconceitos podia dar-se conta, ao arrepio dos lugares comuns que sempre se foram dizendo a seu respeito, do absoluto desamparo e da total fragilidade deste ser excessivamente complexo e paradoxal.
A quem se deixava impregnar pelo carisma desta mulher extraordinária, não podia deixar de surpreender o intenso curto-circuito que a sua personalidade exprimia pela mistura do esplendor com o arcaico, ou como ela própria disse em “Madona”, referindo-se a uma personagem, podíamos senti-la como se estivesse “...misticamente ligada a uma religião onde as forças extremas, o sórdido e o sublime se fundiam numa única e inominável divindade... não havia qualquer duplicidade moral nesta sua forma de tocar os dois pólos da alma. Dir-se-ia que o seu espírito tinha um perpétuo movimento circular que incessantemente abrangia o superior e o inferior” (p. 41)
Esta complexidade e estes contrastes foram desde sempre para mim um poderosíssimo apelo à decifração. Tentar esclarecer alguns equívocos que envolveram a figura e a vida de Natália Correia é um tributo de quantos a conheceram e amaram.
O primeiro equívoco é sugerido pela associação da Natália à problemática do alcoolismo. Já por altura da sua morte houve quem, nunca a tendo conhecido, comentasse terem sido o álcool e o tabaco a vitimá-la. Nada mais injusto.
É verdade que Natália frequentava um bar regularmente, animando noite após noite tertúlias e convívios; defendeu exaltadamente marginalidades e marginais; celebrou com álcool festas e encontros; e abominou em discursos excessivos todas as formas de puritanismo. Tratava-se duma postura intelectual, uma atitude romântica, insubmissa e desafiadora, que partilhava desde a juventude com os surrealistas, de quem foi amiga, companheira de muitos percursos e em alguns casos musa inspiradora.
No entanto bebia muito moderadamente, apenas em situações sociais, e afirmava mesmo nunca se ter excedido. Quando deixou de beber e fumar por conselho médico, nunca a ouvi queixar-se por lhe sentir a falta; apenas sofria por ter perdido a saúde que lhe permitira no passado beber e fumar.
Aquilo que de mais subterrâneo a terá impelido para certos ambientes, sugeriu-o em “Madona”, a propósito de bares e do cortejo de seres bizarros que sempre lhes estão associados: “Perante essa inquietante sociedade de seres oníricos [Miguel], dava-me a impressão de um coleccionador de coisas fantásticas nas quais fazia entrar a tragédia afogada em risos desses palhaços da comédia dos sexos” (p. 84). Ou: “... Mas o que ele procurava era uma forma... de nadar naquele mar de naufragados, o único elemento que lhe permitia a sensação de se agitar e de se achar vivo no pulsar dessa agitação” (p.55). Ou ainda: “É no meio desses infelizes que eu me posso sentir um ser humano” (p.178).
Outro equívoco terrível que crucificou Natália Correia em vida diz respeito à lenda de “mulher fatal”, “vamp”, “devoradora de homens” (ou nem só), tecida através de inúmeras histórias e enredos, qual deles mais descabelado, com que mistificaram a sua vida amorosa. Este equívoco partilhou-o com outras mulheres de gerações próximas da sua. Grandes actrizes que ajudaram a criar e difundir o mito da “mulher fatal” surgem-nos hoje em dia, através de biografias póstumas (Garbo, Marlene, Marilyn, etc.), como vítimas destroçadas pelas armadilhas a que deram rosto, e revelam-se-nos mulheres imaturas, sexualmente inibidas, com vidas amorosas precárias e infelizes. Esta verdadeira patologia da feminilidade não parece encontrar-se nas gerações com menos de 60 anos. O cinema continua a promover imagens de mulheres belas e sensuais, mas distantes da “mulher fatal” dos anos 50. Sucessivas revoluções sexuais fizeram aparecer novas expressões para a mesma patologia da feminilidade, e ironicamente os herdeiros actuais destas “femmes fatales” dos idos 50 parecem ser certos travestis do “show business”.
Natália Correia contribuiu para este equívoco que se lhe colou à pele e à vida: foi uma mulher muito bela e uma sedutora compulsiva, uma “allumeuse”. Com as suas ideias libertárias e atitudes desafiadoras demoliu publicamente muitos tabus, sexuais incluídos, ajudando a criar uma imagem com que viria a ser perversamente agredida.
Era por isso totalmente inesperado darmo-nos conta, ao privar com ela, de quanto a sua vida e os valores pelos quais pautava o seu comportamento contradiziam esta ousada encenação intelectual. Confessava repetidamente, a pessoas quase sempre incrédulas, que se considerava uma mulher sexualmente inexperiente, inapetente e inapta. Emitia juízos de valor a respeito de comportamentos de pessoas que lhe eram próximas, que mais do que conservadores, chegavam a ser reaccionariamente puritanos.
Mas ela própria afirmou: “A minha ousadia era puramente intelectual, ou seja, a cobardia de viver” (“Madona”, p. 165). Ou: “...A poesia é o défice das nossas inibições. Viver poeticamente é viver as coisas em potência.” (Ibid., p. 154). Ou ainda: “... Fazer poemas enquanto se mata/ durante a cópula quando faminto/ esses nunca os vi fazer// A poesia é sempre em vez/mênstruo da alma uma vez por mês/ sangrenta flor abortada/ da natureza infecunda” (“Poema Sáfaro”, in “O Vinho e a Lira”).
Perante a perplexidade de quantos a procuravam compreender, tornava-se claro que não se tratava de fingimento: não havia uma Natália actriz “vs “ a pessoa; a figura pública “vs” a existência privada; a máscara “vs” o rosto. Ao contrário, estávamos sempre dentro do mesmo cenário, barroco, que ora nos aparecia pelo direito, ora pelo avesso, numa constante reversibilidade dos contrários.
Um dia contou-me que, quando criança, ainda nos Açores, vira num filme bíblico cristãos a serem devorados por leões num circo romano, e imediatamente tomara o partido dos leões. Nesta frase extraordinária, Natália Correia condensou toda a sua tragédia narcísica: ela foi sempre a vítima, condenada implacavelmente a ser comida pelo leão – em que ela própria se tornava para poder sobreviver. Cristão devorado e leão devorador, Natália Correia cumpriu este destino em vida e obra. Vítima sacrificial desde sempre crucificada na sua tragédia interior, o que a compeliu a trabalhar obsessivamente, e magnificamente, o tema da descrucificação.
Esta primordial crucificação (tão dilaceradamente exposta em “Uma Estátua Para Herodes”) dum ser que simultaneamente irrompia com uma energia anímica assombrosa (Henry Miller chamou-lhe “uma força da natureza”) pertencia ao que em Natália Correia permanecia um enigma em busca de decifração. Sensíveis à carga mítica que desde sempre a envolveu, podíamos ao mesmo tempo adivinhar a criança dependente, humilhada e culpabilizada que também foi. Com a sua admirável vitalidade “deu a volta por cima”, sem no entanto se soltar do fio da navalha onde sempre se equilibrou pela criação e fantasia que fizeram dela a genial fabricante de sonhos que conhecemos.
A devoção e admiração que procurava permanentemente obter à sua volta, foram a forma sublime com que recusou submeter-se à sua aflita dependência, que noutros planos sentiu com um desmesurado embaraço. A vergonha e humilhação transfigurou-as em magnífica arrogância com que golpeava implacavelmente quantos ameaçavam apequená-la. A terrível culpabilidade em que se consumia converteu-se em desafio e provocação com que “levantava as saias a essa podridão vestida de marido, de pai, de sacerdote” (“Madona, p. 36).
Neste precário equilíbrio entre dependência e necessidade de ser admirada, humilhação e arrogância ou mesmo culpa e desafio, Natália cumpriu-se excessiva e exuberante em cada um destes pólos antitéticos.
Alquimicando esta humaníssima dilaceração, o seu extraordinário talento marcou-lhe encontro com as próximas gerações, quando a sua vastíssima obra for conhecida, compreendida, apreciada e ocupar o lugar cimeiro que lhe pertence no panorama cultural do nosso século. O futuro deixar-se-á impregnar pela genialidade fulgurante das suas dádivas maiores: “...E à branca praia nos leva a onda materna/ Porque os deuses aí não são longínquos./ Têm seus tronos onde nos esperam/ Imutáveis os mitos” (in “O Armistício”).
É lá que a Natália Correia nos espera.
Se um talento esplendoroso, uma inteligência luminosa e um magnífico sentido de auto-encenação foram responsáveis pela incendiada admiração que tantos de nós sentimos por Natália Correia, a pose majestática, tonitruante e por vezes feroz, assustaram outros tantos; mas apenas um olhar disponível e sem preconceitos podia dar-se conta, ao arrepio dos lugares comuns que sempre se foram dizendo a seu respeito, do absoluto desamparo e da total fragilidade deste ser excessivamente complexo e paradoxal.
A quem se deixava impregnar pelo carisma desta mulher extraordinária, não podia deixar de surpreender o intenso curto-circuito que a sua personalidade exprimia pela mistura do esplendor com o arcaico, ou como ela própria disse em “Madona”, referindo-se a uma personagem, podíamos senti-la como se estivesse “...misticamente ligada a uma religião onde as forças extremas, o sórdido e o sublime se fundiam numa única e inominável divindade... não havia qualquer duplicidade moral nesta sua forma de tocar os dois pólos da alma. Dir-se-ia que o seu espírito tinha um perpétuo movimento circular que incessantemente abrangia o superior e o inferior” (p. 41)
Esta complexidade e estes contrastes foram desde sempre para mim um poderosíssimo apelo à decifração. Tentar esclarecer alguns equívocos que envolveram a figura e a vida de Natália Correia é um tributo de quantos a conheceram e amaram.
O primeiro equívoco é sugerido pela associação da Natália à problemática do alcoolismo. Já por altura da sua morte houve quem, nunca a tendo conhecido, comentasse terem sido o álcool e o tabaco a vitimá-la. Nada mais injusto.
É verdade que Natália frequentava um bar regularmente, animando noite após noite tertúlias e convívios; defendeu exaltadamente marginalidades e marginais; celebrou com álcool festas e encontros; e abominou em discursos excessivos todas as formas de puritanismo. Tratava-se duma postura intelectual, uma atitude romântica, insubmissa e desafiadora, que partilhava desde a juventude com os surrealistas, de quem foi amiga, companheira de muitos percursos e em alguns casos musa inspiradora.
No entanto bebia muito moderadamente, apenas em situações sociais, e afirmava mesmo nunca se ter excedido. Quando deixou de beber e fumar por conselho médico, nunca a ouvi queixar-se por lhe sentir a falta; apenas sofria por ter perdido a saúde que lhe permitira no passado beber e fumar.
Aquilo que de mais subterrâneo a terá impelido para certos ambientes, sugeriu-o em “Madona”, a propósito de bares e do cortejo de seres bizarros que sempre lhes estão associados: “Perante essa inquietante sociedade de seres oníricos [Miguel], dava-me a impressão de um coleccionador de coisas fantásticas nas quais fazia entrar a tragédia afogada em risos desses palhaços da comédia dos sexos” (p. 84). Ou: “... Mas o que ele procurava era uma forma... de nadar naquele mar de naufragados, o único elemento que lhe permitia a sensação de se agitar e de se achar vivo no pulsar dessa agitação” (p.55). Ou ainda: “É no meio desses infelizes que eu me posso sentir um ser humano” (p.178).
Outro equívoco terrível que crucificou Natália Correia em vida diz respeito à lenda de “mulher fatal”, “vamp”, “devoradora de homens” (ou nem só), tecida através de inúmeras histórias e enredos, qual deles mais descabelado, com que mistificaram a sua vida amorosa. Este equívoco partilhou-o com outras mulheres de gerações próximas da sua. Grandes actrizes que ajudaram a criar e difundir o mito da “mulher fatal” surgem-nos hoje em dia, através de biografias póstumas (Garbo, Marlene, Marilyn, etc.), como vítimas destroçadas pelas armadilhas a que deram rosto, e revelam-se-nos mulheres imaturas, sexualmente inibidas, com vidas amorosas precárias e infelizes. Esta verdadeira patologia da feminilidade não parece encontrar-se nas gerações com menos de 60 anos. O cinema continua a promover imagens de mulheres belas e sensuais, mas distantes da “mulher fatal” dos anos 50. Sucessivas revoluções sexuais fizeram aparecer novas expressões para a mesma patologia da feminilidade, e ironicamente os herdeiros actuais destas “femmes fatales” dos idos 50 parecem ser certos travestis do “show business”.
Natália Correia contribuiu para este equívoco que se lhe colou à pele e à vida: foi uma mulher muito bela e uma sedutora compulsiva, uma “allumeuse”. Com as suas ideias libertárias e atitudes desafiadoras demoliu publicamente muitos tabus, sexuais incluídos, ajudando a criar uma imagem com que viria a ser perversamente agredida.
Era por isso totalmente inesperado darmo-nos conta, ao privar com ela, de quanto a sua vida e os valores pelos quais pautava o seu comportamento contradiziam esta ousada encenação intelectual. Confessava repetidamente, a pessoas quase sempre incrédulas, que se considerava uma mulher sexualmente inexperiente, inapetente e inapta. Emitia juízos de valor a respeito de comportamentos de pessoas que lhe eram próximas, que mais do que conservadores, chegavam a ser reaccionariamente puritanos.
Mas ela própria afirmou: “A minha ousadia era puramente intelectual, ou seja, a cobardia de viver” (“Madona”, p. 165). Ou: “...A poesia é o défice das nossas inibições. Viver poeticamente é viver as coisas em potência.” (Ibid., p. 154). Ou ainda: “... Fazer poemas enquanto se mata/ durante a cópula quando faminto/ esses nunca os vi fazer// A poesia é sempre em vez/mênstruo da alma uma vez por mês/ sangrenta flor abortada/ da natureza infecunda” (“Poema Sáfaro”, in “O Vinho e a Lira”).
Perante a perplexidade de quantos a procuravam compreender, tornava-se claro que não se tratava de fingimento: não havia uma Natália actriz “vs “ a pessoa; a figura pública “vs” a existência privada; a máscara “vs” o rosto. Ao contrário, estávamos sempre dentro do mesmo cenário, barroco, que ora nos aparecia pelo direito, ora pelo avesso, numa constante reversibilidade dos contrários.
Um dia contou-me que, quando criança, ainda nos Açores, vira num filme bíblico cristãos a serem devorados por leões num circo romano, e imediatamente tomara o partido dos leões. Nesta frase extraordinária, Natália Correia condensou toda a sua tragédia narcísica: ela foi sempre a vítima, condenada implacavelmente a ser comida pelo leão – em que ela própria se tornava para poder sobreviver. Cristão devorado e leão devorador, Natália Correia cumpriu este destino em vida e obra. Vítima sacrificial desde sempre crucificada na sua tragédia interior, o que a compeliu a trabalhar obsessivamente, e magnificamente, o tema da descrucificação.
Esta primordial crucificação (tão dilaceradamente exposta em “Uma Estátua Para Herodes”) dum ser que simultaneamente irrompia com uma energia anímica assombrosa (Henry Miller chamou-lhe “uma força da natureza”) pertencia ao que em Natália Correia permanecia um enigma em busca de decifração. Sensíveis à carga mítica que desde sempre a envolveu, podíamos ao mesmo tempo adivinhar a criança dependente, humilhada e culpabilizada que também foi. Com a sua admirável vitalidade “deu a volta por cima”, sem no entanto se soltar do fio da navalha onde sempre se equilibrou pela criação e fantasia que fizeram dela a genial fabricante de sonhos que conhecemos.
A devoção e admiração que procurava permanentemente obter à sua volta, foram a forma sublime com que recusou submeter-se à sua aflita dependência, que noutros planos sentiu com um desmesurado embaraço. A vergonha e humilhação transfigurou-as em magnífica arrogância com que golpeava implacavelmente quantos ameaçavam apequená-la. A terrível culpabilidade em que se consumia converteu-se em desafio e provocação com que “levantava as saias a essa podridão vestida de marido, de pai, de sacerdote” (“Madona, p. 36).
Neste precário equilíbrio entre dependência e necessidade de ser admirada, humilhação e arrogância ou mesmo culpa e desafio, Natália cumpriu-se excessiva e exuberante em cada um destes pólos antitéticos.
Alquimicando esta humaníssima dilaceração, o seu extraordinário talento marcou-lhe encontro com as próximas gerações, quando a sua vastíssima obra for conhecida, compreendida, apreciada e ocupar o lugar cimeiro que lhe pertence no panorama cultural do nosso século. O futuro deixar-se-á impregnar pela genialidade fulgurante das suas dádivas maiores: “...E à branca praia nos leva a onda materna/ Porque os deuses aí não são longínquos./ Têm seus tronos onde nos esperam/ Imutáveis os mitos” (in “O Armistício”).
É lá que a Natália Correia nos espera.
Maria Manuela Gonçalves dos Santos
Publicado na revista de Psicanálise, Psicoterapia e Desenvolvimento Humano, "Se...,Não! nº2, 2011 Postagem do blogue Camel &Coca Cola http://camelecocacola.blogspot.com
segunda-feira, 25 de julho de 2011
domingo, 24 de julho de 2011
AMY WINEHOUSE 1983 -2011
Fiquei mesmo triste com a morte de AMY WINEHOUSE. Lembro-me que a primeira vez que reparei nela, foi a propósito de comentários, que apareciam na net, e descarregavam nesta cantora um chorrilho de disparates e agressões, e deliciavam-se com a instabilidade física e psíquica que AMY revelava em palco. Na altura fiquei revoltada, e comentei que ninguém via o SOFRIMENTO, que estava instalado no corpo frágil de AMY. Mais um caso de BIPOLARIDADE, que na tentativa de alguma felicidade ilusória ficou dependente de DROGAS & ÁLCOOL. DESAMADOS até ao limite, sempre no FIO DA NAVALHA, até ao dia em que o CORTE acontece e atingem a ETERNIDADE. Casos como JIM MORRISON, KURT COBAIN, JANIS JOPLIN, MARYLIN MONROE e tantos outros, que nos tocaram pela sua AUTENTICIDADE. Mais uma ESTRELA que se apagou neste MUNDO CRUEL, exigente e VOYEUR do sofrimento....
sexta-feira, 22 de julho de 2011
Poema de Ingeborg Bachmann
DIZER TREVAS
Como Orfeu, toco
a morte nas cordas da vida
e à beleza do mundo
e dos teus olhos que regem o céu
só sei dizer trevas.
Não te esqueças que também tu, subitamente
naquela manhã, quando o teu leito
estava ainda húmido de orvalho e o cravo
dormia no teu coração,
viste o rio negro
passar por ti.
Com a corda do silêncio
tensa sobre a onda de sangue,
dedilhei o teu coração vibrante.
A tua madeixa transformou-se
na cabeleira de sombras da noite,
os flocos negros da escuridão
nevavam sobre o teu rosto.
E eu não te pertenço.
Ambos nos lamentamos agora.
Mas como Orfeu, sei
a vida ao lado da morte,
e revejo-me no azul
os teus olhos fechados para sempre.O Tempo Aprazado, Assírio & Alvim, selecção, tradução e introdução - Judite Berkemeier e João Barrento, Lisboa, 1992
quinta-feira, 21 de julho de 2011
Para esta manhã um Soneto de Shakespeare, traduzido por Vasco Graça Moura
CXXI
Bem melhor é ser vil do que por vil havido
quando a quem o não é o sê-lo se censura,
e vemos, como vil, justo prazer perdido
só porque o olhar dos mais - não nós - o desfigura.
Porque há-de agora o falso e turvo olhar alheio
cuidar da salvação deste meu sangue ardente?
E espiar-me as fraquezas quem delas é mais cheio
e teima em dizer mau o que eu julgo excelente?
Pois eu sou o que sou; e eles que denunciam
meus erros, vêem os seus e nisso são exactos.
Sou recto e eles oblíquos; ser nunca poderiam
seus baixos pensamentos medida dos meus actos,
a menos que mantenham esta geral maldade
e os homens todos nela governem a vontade.
50 Sonetos de Shakespeare, Editorial Inova, Porto, 1978
segunda-feira, 18 de julho de 2011
Poema de Alejandra Pizarnik
ANÉIS DE CINZA
A Cristina Campo
São as minhas vozes cantando
para que não cantem eles,
os amordaçados tristemente na aurora
os vestidos de pássaro desolado na chuva.
Há na espera,
um rumor de lilás rompendo-se.
E há, quando vem o dia,
uma partição do sol em pequenos sóis negros.
E quando é de noite, sempre,
uma tribo de palavras mutiladas
procura asilo na minha garganta
para que não cantem eles,
os funestos, os donos do silêncio.
sexta-feira, 15 de julho de 2011
ESCASSEZ - Gastão Cruz
14
Às vezes despedimo-nos tão cedo
que nem lágrimas há que nos suportem o
peso da voz à solidão exposta
ou
de lisboa no corpo o peso triste
Às vezes é tão cedo que nos vemos
omitidos
enquanto expõe
o peso insuportável do amor
a despedida
É tão cedo por vezes que lisboa
estende sobre os corpos o desgosto
ORGÃO DE LUZES, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1990
Poema de Gastão Cruz
O CAOS DO SONHO
Estou deitado no sonho não
perturbes o caos que me constrói
Afasta a tua mão
das pálpebras molhadas
Debaixo delas passa
a água das imagensORGÃO DE LUZES, Biblioteca de Autores Portugueses, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1990
terça-feira, 12 de julho de 2011
Fernando Pessoa
»Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.»O Guardador de Rebanhos
Mário Cesariny
MIGRAÇÃO
Ah
não me venham dizer
oh
não quero saber
ah
quem me dera esquecer
só e incerto é que o poema é aberto
e a Palavra flui inesgotável!
Nobilíssima Visão, Assírio & Alvim
sábado, 9 de julho de 2011
Frederico Garcia Lorca
Gazela da morte sombria
Quero dormir como dormem as maçãs.
fugir do tumulto dos cemitérios.
Quero dormir como dorme aquele moço
que queria cortar o coração no alto mar.
Não quero que me repitam que os mortos não perdem sangue,
que a boca apodrecida continua a pedir água.
Não quero conhecer os suplícios que nos vêm da erva
nem da lua com boca de serpente
que trabalha antes do amanhecer.
Quero dormir um pouco,
um pouco, um minuto, um século;
mas que todos saibam que não estou morto;
que há um estábulo de oiro nos meus lábios;
que sou o pequeno amigo do vento oeste;
que sou a imensa sombra das minhas lágrimas.
Cobre-me com um véu pela manhã,
porque me atirará punhados de formigas,
e molha com água dura os meus sapatos
para que neles resvale a pinça do lacrau.
Porque quero dormir como dormem as maçãs
para aprender um pranto que me limpe de terra;
porque quero viver com aquele moço sombrio
que queria cortar o coração no alto mar.
Antologia poética, selecção e tradução de Eugénio de Andrade, Coimbra Editora Limitada, 1946
Quero dormir como dormem as maçãs.
fugir do tumulto dos cemitérios.
Quero dormir como dorme aquele moço
que queria cortar o coração no alto mar.
Não quero que me repitam que os mortos não perdem sangue,
que a boca apodrecida continua a pedir água.
Não quero conhecer os suplícios que nos vêm da erva
nem da lua com boca de serpente
que trabalha antes do amanhecer.
Quero dormir um pouco,
um pouco, um minuto, um século;
mas que todos saibam que não estou morto;
que há um estábulo de oiro nos meus lábios;
que sou o pequeno amigo do vento oeste;
que sou a imensa sombra das minhas lágrimas.
Cobre-me com um véu pela manhã,
porque me atirará punhados de formigas,
e molha com água dura os meus sapatos
para que neles resvale a pinça do lacrau.
Porque quero dormir como dormem as maçãs
para aprender um pranto que me limpe de terra;
porque quero viver com aquele moço sombrio
que queria cortar o coração no alto mar.
Antologia poética, selecção e tradução de Eugénio de Andrade, Coimbra Editora Limitada, 1946
Frederico Garcia Lorca
AI!
O grito deixa no vento
uma sombra de cipreste.
(Deixai-me neste campo
chorando)
Tudo se perdeu no mundo.
Ficou apenas o silêncio.
(Deixai-me neste campo,
chorando.)
O horizonte sem luz
está mordido de fogueiras.
(Já vos disse que me deixeis,
neste campo,
chorando.)
quinta-feira, 7 de julho de 2011
Uma Casa na Escuridão
«Quando escrevo, tocamo-nos. O amor é tudo o que existe. Algo do seu rosto e da sua limpidez atravessa-me e fica escrito em palavras suas. E tudo isto é um mistério de beleza, tudo isto (...) é impossível e verdadeiro»
José Luís Peixoto
quarta-feira, 6 de julho de 2011
Fragmento do romance "Paula" de ISABEL ALLENDE
« Quando o terror me paralisa, fecho os olhos e abandono-me com a sensação de mergulhar em águas revoltas, por entre os golpes furiosos das vagas. Por instantes que são na verdade eternos, julgo que estou a morrer, mas a pouco e pouco compreendo que continuo viva apesar de tudo (...) Deixo-me arrastar sem opor resistência e aos poucos o medo retrocede. (...) Choro sem soluçar, destroçada por dentro, como talvez chorem os animais. (...) Decidi não me aliviar com drogas; este é um caminho que devo percorrer a sangrar.»
domingo, 3 de julho de 2011
ALGERNON CHARLES SWINBURNE
ROSAMUNDA
(de Rosamond, 1860)
O medo é um coxim para os pés do amor,
De cores matizadas para o seu conforto,
Vermelho doce e branco exangue e azul
Muito como o das flores, e o verde casado ao Verão
E o doce púrpura namorado do mar e o negro calcinado.
Todas as formas coloridas do medo, agouro e mudança,
Profecias doentias e rumores coxos do calcanhar,
Presciências e astrologias,
Perigosas inscrições e notas registadas,
Todos estão cobertos pela falda do amor
Quando ele a sacode, ficam marcados dos seus dedos,
Batidos e soprados na face poeirenta do ar.
Os Pré-Rafaelitas, antologia poética, Assírio & Alvim, Lisboa, 2005
sexta-feira, 1 de julho de 2011
Poema de ISABEL DE SÁ
MANHÃ DE AGOSTO
Nesta manhã de Agosto
encontrei o papel onde tinha escrito
a idade em que Blaise Cendrars
perdeu a mão direita
e fiquei a sentir a dor que me atormentava. Não tomei aspirina
nem esqueci a tua carta
de ontem, aquele momento
em que dizes eu querer
arrastar-te comigo "para esse universo
onde a vida é trocada por palavras".
Tenho lido os poetas
da minha geração. Conheço
o primeiro poema, aquele que inaugurou
a vida, também em mim.
Cansada de ir à praia, à piscina,
procuro livros, uma emoção linguística,
o verso desconhecido.
Guardei uma frase de Musil, na caixa
onde tenho os selos, um minúsculo relógio
que decidi não usar.
Não posso viver sem a música de Schubert,
ou aquela peça de Brahms - tudo isto
são palavras, a vida passa-se lá fora,
o Inverno há-de vir e não poderei
totalmente fugir ao desconforto.
Falava-se de As Túlipas
e começo a entender. Esta música,
estas palavras, a morte na dobra do lençol,
meu frio corpo na penumbra, no paraíso inicial
da anestesia. Perdida a razão no inferno
da dor, a cabeça irreal, meu poema
esquecido na margem do sono. A morfina,
as enfermeiras, tudo o que pudesse
polir o tormento.
E hoje acabei
por tomar aspirina, gastar o rosto,
permanecer em casa.
Repetir o Poema, Quasi Ediçoes, 2005
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