quinta-feira, 5 de maio de 2011
O MEU POETA PREFERIDO..
Estava ali por esse dia
Diante da janela, além
nos bancos de trás. Sorriu,
o ar ergueu-e em labirintos,
a tarde pousou-lhe na tez.
A cultura tornou-se um conflito
de desalento. No fim da aula
fomos tomar um café.
Diante dos outros tocava só
na sua chávena, no maço
dos cigarros, era o seu corpo
que eu queria atingir.
Não és real, eu não existo.
Raizes desertas do auriga.
De novo o perfume se sentava
sereno e moreno no lugar
ao meu lado do carro, ia
pela noite de verão até
à sua casa, crescia
para a porta por abrir.
E voltava-se e ria e pedia
um último beijo com as luzes
nos máximos para ninguém
nos ver. Os pés hesitam no
asfalto, as mãos remordem
a beira da janela.
Aí
olhava nos meus ombros
o peso do seu pior adeus.
Joaquim Manuel Magalhães
uma luz com um toldo vermelho, Editorial Presença, 1990
quarta-feira, 4 de maio de 2011
ALGUMAS PALAVRAS DO MEU POETA PREFERIDO
"Quando cheguei a casa, estendi-me
sem me despir e chorei, só por chorar."
"Às vezes sentimos que fecundámos alguém
com o contrário da vida."
"O erro é o esquecimento. Um dia
ficamos por completo entregues
à natureza. Igual ao pus da pedra.
Uma casa será esse vazio."
Joaquim Manuel Magalhães
domingo, 1 de maio de 2011
sábado, 30 de abril de 2011
quarta-feira, 27 de abril de 2011
Poema de ALEXANDRE NAVE
Abrimos os tijolos um a um,
esticamos os músculos no calo
as fezes nos carregamentos
Sabemos os ossos infectados
na chapa quente, o chão batido na terra
a destapar-nos, os tijolos nos ombros
o pó fino a enfeitar-nos
olhamos nos olhos uns dos outros
morremos com a pátria nos pulmões.
Columbários & Sangradouros, Quasi Edições, 2003
Poema de ALEXANDRE NAVE
Senhora ao peito, hóstia na boca
cantam as mães virgens de deus
recolhem as flores dos mortos
as botas cardadas cabeças de cristo
benzem as orelhas uns dos outros
já a merda fere devotos no cu,
ficam puros entre os irmãos
a matrícula fria nos pescoços,
chegam raivosos queimados nos altares
vão com o dia defuntos ao terço
dias inteiros,
como deus caísse.
E deitam-se de peito a escutar,
descobrem no cu o buraco de deus.
Vão Cães Acesos pela Noite, Quasi Edições, 2006
sábado, 23 de abril de 2011
Pouso no papel deste poema, a minha boca
na tua boca e os beijos não existem,
nem sequer ao vento uma leve cortina
que esvoace. Nada, rapace, nada sente
essa boca distante, a tua boca,
o peso de algodão da pena de uma ave,
lábios, língua, dentes, saliva.
Por quanto tempo ainda, noite em noite,
irei pela cidade sem beijar, sem
de verdade beijar em qualquer boca
essa fome que não beijei, a tua.
Joaquim Manuel Magalhães
uma luz com um toldo vermelho, editorial Presença, Lisboa, 1990
na tua boca e os beijos não existem,
nem sequer ao vento uma leve cortina
que esvoace. Nada, rapace, nada sente
essa boca distante, a tua boca,
o peso de algodão da pena de uma ave,
lábios, língua, dentes, saliva.
Por quanto tempo ainda, noite em noite,
irei pela cidade sem beijar, sem
de verdade beijar em qualquer boca
essa fome que não beijei, a tua.
Joaquim Manuel Magalhães
uma luz com um toldo vermelho, editorial Presença, Lisboa, 1990
Enquanto dentro de mim tento confrontar-me
com a noite, qualquer coisa que podias ser tu
cerca-me na corda de enforcado de um luar
visto da janela, ilumina a rua sem ninguém.
Esta memória destruída ainda sou eu,
um limite onde respiram as raízes
e ouço a erecta doçura de canções.
Depois ficamos sós com essas garras
que vemos sós na hora que nos mata.
Joaquim Manuel Magalhães
uma luz com um toldo vermelho, editorial Presença, Lisboa, 1990
com a noite, qualquer coisa que podias ser tu
cerca-me na corda de enforcado de um luar
visto da janela, ilumina a rua sem ninguém.
Esta memória destruída ainda sou eu,
um limite onde respiram as raízes
e ouço a erecta doçura de canções.
Depois ficamos sós com essas garras
que vemos sós na hora que nos mata.
Joaquim Manuel Magalhães
uma luz com um toldo vermelho, editorial Presença, Lisboa, 1990
UMA NOITE
O quarto era ordinário, miserável,
escondido por cima da taberna dúbia,
e o beco via-se, estreito e sujo,
pelo postigo. Lá de baixo
as vozes vinham de alguns operários
jogando às cartas e bebendo.
Aí, na enxerga reles, tão usada,
tive o corpo do amor, eu tive os lábios,
os sensuais lábios tintos de um prazer
tão embriagador, que neste instante,
ao escrever aqui, depois de tantos anos,
na solitária casa, ébrio estou outra vez.
Constantino Cavafy
Tradução de Jorge de Sena, Editorial Inova, Porto
O quarto era ordinário, miserável,
escondido por cima da taberna dúbia,
e o beco via-se, estreito e sujo,
pelo postigo. Lá de baixo
as vozes vinham de alguns operários
jogando às cartas e bebendo.
Aí, na enxerga reles, tão usada,
tive o corpo do amor, eu tive os lábios,
os sensuais lábios tintos de um prazer
tão embriagador, que neste instante,
ao escrever aqui, depois de tantos anos,
na solitária casa, ébrio estou outra vez.
Constantino Cavafy
Tradução de Jorge de Sena, Editorial Inova, Porto
E DE SÚBITO ANOITECE
Viver é ver morrer, envelhecer é isso,
enjoativo, tenaz cheiro da morte,
enquanto repetes, inutilmente, umas palavras,
cascas secas, vidro partido.
Ver morrer aos outros, àqueles
poucos, a quem verdadeiramente amaste,
desmoronados, desfeitos, como o fim deste cigarro,
rostos e gestos, imagens queimadas, enrugado papel.
E ver-te morrer a ti também,
remexendo frias cinzas, apagados perfis,
disformes sonhos, turva memória.
Viver é ver morrer e é fragil a matéria
e tudo se sabia e não havia engano,
mas carne e sangue, misterioso fluir,
querem perseverar, afirmar o impossível.
Copo vazio, trémulo pulso, cinzeiro sujo,
na luz nublada do entardecer.
Viver é ver morrer, nada se aprende,
tudo é um desapiedado sentimento,
anos, palavras, peles, despedaçada ternura,
calor gelado da morte.
Viver é ver morrer, nada nos protege,
nada teve o seu ontem, nada o seu amanhã,
e de súbito anoitece.
JUAN LUIS PANERO
Tradução de Joaquim Manuel Magalhães,Relógio D'Água, Lisboa, 2003
Viver é ver morrer, envelhecer é isso,
enjoativo, tenaz cheiro da morte,
enquanto repetes, inutilmente, umas palavras,
cascas secas, vidro partido.
Ver morrer aos outros, àqueles
poucos, a quem verdadeiramente amaste,
desmoronados, desfeitos, como o fim deste cigarro,
rostos e gestos, imagens queimadas, enrugado papel.
E ver-te morrer a ti também,
remexendo frias cinzas, apagados perfis,
disformes sonhos, turva memória.
Viver é ver morrer e é fragil a matéria
e tudo se sabia e não havia engano,
mas carne e sangue, misterioso fluir,
querem perseverar, afirmar o impossível.
Copo vazio, trémulo pulso, cinzeiro sujo,
na luz nublada do entardecer.
Viver é ver morrer, nada se aprende,
tudo é um desapiedado sentimento,
anos, palavras, peles, despedaçada ternura,
calor gelado da morte.
Viver é ver morrer, nada nos protege,
nada teve o seu ontem, nada o seu amanhã,
e de súbito anoitece.
JUAN LUIS PANERO
Tradução de Joaquim Manuel Magalhães,Relógio D'Água, Lisboa, 2003
sexta-feira, 22 de abril de 2011
2 poemas de RUI PIRES CABRAL
SIX MORE MILES
No cemitério
para falar das diferenças
entre nós
vistos de perto aqueles anjos
eram impressivos, dir-se-ia
que nos convidavam a morrer
o cão do coveiro perdera o interesse
por nós, íamos por entre as campas
como num jardim
alguma vez nos havia
de ocorrer, os feriados eram sempre
tão compridos
GNOSSIENNE Nº1
Eu acreditei que podia amar
o teu corpo, o teu modo de insinuar o coração
nas palavras. Mas era apenas a forma como a noite
sublinhava as superfícies, eu nunca pude atravessar
essa espessura. Estavas ali para te dispores aos meus sentidos
mas crescias fora de alcance no teu próprio
pensamento. Uma distância que só serviria
aos lobos, um mau caminho arrancado às fragas.
Já só conhecia os dias onde tu os frequentavas, o sítio
em que me mantinhas era mais urgente
que o sangue. Sem dúvida que vinhas pelo meu desejo
mas eu perdia sempre alguma coisa
quando te ganhava. Às vezes era só
a minha vontade, outras vezes era toda a frase
do meu nome.
música antológica & onze cidades, Editorial Presença, Lisboa, 1997
quinta-feira, 21 de abril de 2011
Poema de João Borges
Com o corpo todo à espera
entro para a neblina.
Alameda vazia, silêncio.
Casas erguidas
para fazer um caminho.
Com o corpo todo à espera
chamo-te, sem saber o
nome, sem luz, sem imagem.
Fantasmas prolongam
os passos, adiam a casa.
Com o corpo todo à espera
silencio a vontade
de me aproximar, viver.
Respiro a humidade
do nevoeiro, sempre à espera
Ao Vento Em Terramotos, edição cofre nocturno, Lisboa, 2011
Poema de JOÃO BORGES
O nome está no ruído
que desmorona noite dentro.
A chuva corrói a pele
em pleno deserto.
Dentro dos teus passos
há um segredo do tamanho
da luz.
Ao pressentir a escuridão
do vazio,
os braços inclinam-se
para ti.
Ao Vento Em Terramotos, edição cofre nocturno, lisboa, 2011
quarta-feira, 20 de abril de 2011
POEMA DE ISABEL DE SÁ
Abri a caixa de cigarrilhas café crème
no jantar de aniversário. Na tua gravata
o alfinete, um triângulo de oiro
que ela trouxera nessa manhã.
Por fim ofereci-lhe o poema, depois
arrependi-me. O tempo passou
e então ela trocou-me
por um bocado de caça envenenada.
Repetir o Poema, edições Quasi, 2005
POEMA DE ISABEL DE SÁ
As coisas que nos acontecem no contacto com os nossos semelhantes têm vindo a fazer parte da escrita, tal como o caos algumas vezes pertence ao meu pensamento. Procuro a íntima fissura onde a alma acabará por dividir-se. Não posso ainda saber com que lado ficarei, "Então serei um eco e uma sombra", viverei a duvida até que um sinal me ilumine a razão.
Repetir o Poema, edições Quasi, 2005
POEMA DE RAINER MARIA RILKE
Todos os que te buscam, tentam-te.
E todos os que te encontram, ligam-te
a imagem e gesto.
Mas eu quero compreender-te
como a terra te compreende;
com o meu amadurar
amadura
o teu reino.
Não quero de ti nenhuma vaidade
que te demonstre.
Eu sei que o tempo
tem outro nome
diferente do teu.
Não faças milagres por amor de mim.
Dá razão às tuas leis
que, de geração em geraçao,
se fazem mais manifestas.
As Elegias de Duino E Sonetos a Orfeu, Tradução de Paulo Quintela, edição O Oiro do Dia, Porto,1983
terça-feira, 19 de abril de 2011
MARIA ZAMBRANO- A METÁFORA DO CORAÇÃO
O amor transcende sempre, é o agente de toda a transcendência. Abre o futuro; não o porvir, que é o amanhã que se pressupõe certo, repetição com variações do hoje e réplica do ontem. O futuro essa abertura sem limite, para outra vida que nos aparece como a vida de verdade. O futuro que atrai também a história.
Mas o amor lança-nos para o futuro, obrigando-nos a transcender tudo o que concede. A sua promessa indecifrável desacredita tudo o que se consegue, toda a realização. O amor é o agente de destruição mais poderoso, porque, ao descobrir a inanidade do seu objecto, deixa livre um vazio, um nada que é aterrador no princípio de ser apercebido. É o abismo em que se some não somente o amado, mas a própria vida, a própria realidade do que ama. É o amor que descobre a realidade e a inanidade das coisas, e que descobre o não-ser e até o nada. (...)
A consciência aumenta após um desengano de amor, como a própria alma se dilatara com o seu engano.(...)
Pois o amor que integra a pessoa, agente da sua unidade, condu-la à sua entrega; exige fazer do próprio ser uma oferenda, isso que é tão difícil de dizer hoje: um sacrifício. E este abatimento que há no próprio centro do sacrifício antecipa a morte. O que verdadeiramente ama, aprende a morrer. É uma verdadeira aprendizagem para a morte.
Assírio & Alvim, 1993, Lisboa
sexta-feira, 15 de abril de 2011
Poema de Margarida Vale de Gato
Intercidades
galopamos pelas costas dos montes no interior
da terra a comer eucaliptos a comer os entulhos de feno
a cuspir o vento a cuspir o tempo a cuspir o tempo
o tempo que os comboios do sentido contrário engolem
do sentido contrário roubam-nos o tempo meu amor
preciso de ti que vens voando
até mim
mas voas à vela sobre o mar
e tens espaço asas por isso vogas à deriva enquanto eu
vou rastejando ao teu encontro sobre os carris faiscando
ocasionalmente e escrevo para ti meu amor
a enganar a tua ausência a claustrofobia de cortinas
cor de mostarda tu caminhas sobre a água e agora
eu sei
as palavras valem menos do que os barcos
preciso de ti meu amor nesta solidão neste desamparo
de cortinas espessas que impedem o sol que me impedem
de voar e ainda assim do outro lado
o céu exibe nuvens pequeninas carneirinhos a trotar
a trotar sobre searas de aveia e trigais aqui não há
comemos eucaliptos eucaliptos e igrejas caiadas
debruçadas sobre os apeadeiros igrejas caiadas meu amor
eu fumo um cigarro entre duas paragens leio
o Lobo Antunes e penso as pessoas são tristes as
as pessoas são tão tristes as pessoas são patéticas meu
amor ainda bem que tu me escondes do mundo me escondes
dos sorrisos condescendentes do mundo da comiseração
do mundo
à noite no teu corpo meu amor eu
também sou um barco sentada sobre o teu ventre
sou um mastro
preciso de ti meu amor estou cansada dói-me
em volta dos olhos tenho vontade de chorar mesmo assim
desejo-te mas antes antes de me tocares de dizeres quero-te
meu amor hás-de deixar-me dormir cem anos
depois de cem anos voltaremos a ser barcos
eu estou só
Portugal nunca mais acaba comemos eucaliptos
eucaliptos intermináveis longos e verdes
comemos eucaliptos entremeados de arbustos
comemos eucaliptos a dor da tua ausência meu amor
comemos este calor e os caminhos de ferro e a angústia
a deflagrar combustão no livro do Lobo Antunes
comemos eucaliptos e Portugal nunca mais acaba Portugal
é enorme eu preciso de ti e em sentido contrário roubam-nos
o tempo roubam-nos o tempo meu amor tempo
o tempo para sermos barcos e atravessar paredes dentro dos quartos
meu amor para sermos barcos à noite à noite
a soprar docemente sobre as velas acesas
barcos.
Edição Mariposa Azual, 2010, Lisboa
Margarida Vale de Gato
A melhor estreia de uma poeta portuguesa nas últimas décadas
Margarida Vale de Gato (n. 1973) é uma das nossas melhores tradutoras, como se comprova lendo as suas versões de Lewis Carroll, Christina Rossetti, Wilde, Yeats, Melville, James, Char, Michaux, Sarraute, Dickens ou Poe. Há muito que também publica poemas em revistas, mas só agora editou a primeira colectânea. A espera valeu a pena, pois "Mulher ao Mar" é possivelmente a melhor estreia de uma poeta portuguesa desde "Um Jogo Bastante Perigoso" (Adília Lopes, 1985).
A escritora assume a "condição feminina" em praticamente todos os poemas. Especialmente a condição feminina portuguesa. Os textos têm ecos da "Menina e Moça", donzelas prendadas do Estado Novo, raparigas que ficavam em casa enquanto os homens tratavam da política, esposas dedicadas, irmãs pacientes, freiras sofridas, legiões compulsoriamente dóceis, pacientes, esperando, costurando, virgens e putas, degredadas filhas de Eva.
Em vez de "homem ao mar" grita-se "mulher ao mar" nestes poemas, e não é a mesma coisa. Eis o poema que dá título ao livro: "MAYDAY lanço, porque a guerra dura / e está vazio o vaso em que parti / e cede ao fundo onde a vaga fura, / suga a fissura, uma falta - não / um tarro de cortiça que vogasse; / especifico: é terracota e fractura, / e eu sou esparsa, e a liquidez maciça. / Tarde, sei, será, se vier socorro: / se transluz pouco ao escuro este sinal, / e a água não prevê qualquer escritura / se jazo aqui: rasura apenas, branda / a costura, fará a onda em ponto / lento um manto sobre o afogamento" (pág. 8). A mulher destes poemas, que é arquétipo mas também sujeito concreto e vivido, herda toda uma carga cultural, e procura uma linguagem em que encontre a sua autonomia. O "eu" destes poemas é rigoroso e esquivo, sexual e cultista, vulnerável e orgulhoso. Nos últimos anos, nenhum livro de poemas autobiográficos evitou com tal mestria as armadilhas da primeira pessoa, do cabotinismo ao prosaísmo, da trivialidade ao derrame sentimental.
A mulher que cai ao mar, ou se lançou, ou a ele regressou, fazendo o caminho inverso de Vénus, quem é? É uma mulher determinada pelos seus desejos, pela maternidade, pela experiência de uma domesticidade agreste ou azeda, muitas vezes sarcástica: "Costumes que frequentamos: / o arame da loiça, os panos dos pratos, os ganchos e as linhas / do estendal, a vinha-de-alhos, o fogão, / o alguidar, guardamos os restos, torcemos / os trapos, os nossos recados, os nossos sacos, / os nossos ovos" (pág. 45). O livro é ao mesmo tempo afirmação e luto, gémeos incindíveis.
Alheia a todo o solipsismo, Margarida Vale de Gato escreve uma poesia relacional, em constante diálogo com pessoas que passaram, que são passado, que não estão ultrapassadas, em geral homens que deixaram um agudo sentimento de orfandade ou decepção. A amargura cultíssima e vagamente niilista nunca impede momentos a que podemos chamar "românticos", de entrega confiada e apaixonada. É o caso um notável poema chamado "Intercidades", no qual a tristeza do mundo e a inquietação individual é atravessada pelo comboio que engole eucaliptos na paisagem portuguesa. Mas há também uma constante queda no "bathos" quotidiano, feito de segundas escolhas e de quedas conscientes e sem culpabilidade: "Foi como amor aquilo que fizemos / ou acto tácito? - os dois carentes / e sem manhã sujeitos ao presente; / foi logro aceite quando nos fodemos // Foi circo ou cerco, gesto ou estilo / o acto de abraçarmos? foi candura / o termos juntos sexo com ternura / num clima de aparato e de sigilo. // Se virmos bem ninguém foi iludido / de que era a coisa em si - só o placebo / com algum excesso que acelera a libido. // E eu, palavrosa, injusta desconcebo / o zelo de que nada fosse dito / e quanto quis tocar em estado líquido" (pág. 23). A sensação de catástrofe é omnipresente neste conjunto, e tem tradução numa espessura verbal quase visceral ou quase maneirista (mas apenas quase).O discurso é por isso denso, propenso à surpresa sintáctica ou vocabular, às vezes enigmático. Os textos, no entanto, nunca são herméticos ou desajeitadamente subjectivos, e isso deve-se ao domínio da linguagem e da tradição cultural. Estes poemas são tudo menos precipitados ou frouxos, e talvez a estreia tardia tenha contribuído para a notória depuração, incomum em primeiras obras. Esse investimento na palavra amadurecida é acompanhado por uma espécie de sumário civilizacional, que evoca como aliadas artistas que interrogaram a sua condição através da criação. E reparem que nenhuma delas é puro espírito, todas viveram carnalmente, na solidão, na cama, na maternidade, na doença. O martírio dessas mulheres é resumido em versos percutidos, zangados: "Se há uma falha um abalo / Dickinson Plath Woolf Kahlo / onde foram estavam loucas / queriam coisas eram ocas / queriam chique eram pedras / queriam arte eram merdas / tentando o voo eram estacas / punho em riste eram farpas / fornos hortos seu delírio / nunca foi santo martírio" (pág. 50). É a partir dessas histórias, contra essas histórias, que esta mulher se lança ao mar, e assim se salva.
Pedro MEXIA - recensão a Mulher ao Mar, de Margarida Vale de Gato, no suplemento Ípsilon do jornal Público de 7 de Maio.
quinta-feira, 14 de abril de 2011
SEM MEDO DA VIRGÍNIA WOOLF
Há 70 anos, numa dia como o de hoje, uma mulher ainda jovem, magra, branca, feminil, caminha solitária na margem do rio perto da sua casa na aldeia de Rodmell, em Sussex, onde se tinha refugiado com o seu marido Leonard fugindo aos bombardeamentos alemães sobre Londres. E enquanto vai pisando a areia grossa da margem, vai colhendo com as suas longas mãos de louca tranquila, como se flores fossem, as pedras com que vai enchendo os bolsos do casaco. Desliza, depois, rio adentro, deixando-se abraçar pelas águas profundas do rio, para, finalmente, escapar ao medo. Quem assim entrou no suicídio, com medo de viver, foi Virginia Woolf, a romancista inglesa que gostava de passear nas margens da vida sob um céu sombrio e triste, e que, fosse em Londres, na velha mansão de família no bairro de Bloomsbury, fosse na casa perdida na paisagem verde negrejante de Sussex, num e noutro lugar sempre rodeada de enfermeiras, de malas para partir e regressar, de festas e convidados, escreveu romances, contos, ensaios, cartas e diários, antecipando-se a James Joyce no modo de forjar o monólogo interior e a polifonia de vozes que murmuravam tanto nos textos que escrevia como na sua mente bipolar.Por isso, não ter medo de ler Virginia Woolf, que numa época de moral vitoriana vestia calças de homem, era sufragista, fumava em público cigarros egípcios, dava conferências em círculos operários e, como se isto não bastasse para fazer dela alguém desajustado aos olhos da sociedade, ter, também, mantido uma relação lésbica com a sua amiga Vita Sackville West, poeta e mulher de um lord.O seu fim foi coerente com a sua existência inconformista e radical. Depois de uma noite sem bombardeamentos nazis, o dia 28 de Março amanheceu luminoso, transparente, frio. Antes de sair em direcção ao rio, Virginia ainda roubou à morte as três derradeiras cartas dirigidas a Leonard e à sua irmã Vanessa. Depois, tranquilamente, deixou-se abraçar pelas águas para não mais voltar a ver a claridade do dia.Vinte dias depois, um grupo de crianças haveria de encontrar o seu corpo numa das margens do rio Ouse. Talvez naquele 28 de março, temendo voltar a sofrer uma crise de loucura e não poder suportá-la, a alma de Virginia tenha, finalmente, decido não mais afrontar o inafrontável. Essa realidade intangível que nunca se chegou a compreender nem mesmo através da sua obra.
João Ventura , postagem do blog: O leitor sem qualidades
quarta-feira, 13 de abril de 2011
Poema de Emily Dickinson
I died for Beauty - but was scarce
Adjusted in the Tomb
When One who died for Truth, was lain
in an adjoining Room -
He questioned softly "Why I failed"?
"For Beauty", I replied -
"And I - for Truth - Themself are One -
We Brethren, are,"He said -
And so, as Kinsmen, met a Nigth -
We talked between the Rooms -
Until the Moss had reached our lips -
And covered up - our names -
terça-feira, 12 de abril de 2011
AMBÍGUIDADE & ANDROGINIA - O MEU FÉCTICHE - TILDA SWINTON
segunda-feira, 11 de abril de 2011
sábado, 9 de abril de 2011
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