quarta-feira, 27 de abril de 2011

Poema de ALEXANDRE NAVE



Abrimos os tijolos um a um,

esticamos os músculos no calo

as fezes nos carregamentos

Sabemos os ossos infectados
na chapa quente, o chão batido na terra
a destapar-nos, os tijolos nos ombros
o pó fino a enfeitar-nos

olhamos nos olhos uns dos outros

morremos com a pátria nos pulmões.





Columbários & Sangradouros, Quasi Edições, 2003

Altares




Poema de ALEXANDRE NAVE


Senhora ao peito, hóstia na boca

cantam as mães virgens de deus
recolhem as flores dos mortos

as botas cardadas cabeças de cristo

benzem as orelhas uns dos outros
já a merda fere devotos no cu,

ficam puros entre os irmãos
a matrícula fria nos pescoços,

chegam raivosos queimados nos altares
vão com o dia defuntos ao terço


dias inteiros,

como deus caísse.

E deitam-se de peito a escutar,

descobrem no cu o buraco de deus.


Vão Cães Acesos pela Noite, Quasi Edições, 2006

sábado, 23 de abril de 2011













Foto de Hedi Slimane
Pouso no papel deste poema, a minha boca
na tua boca e os beijos não existem,
nem sequer ao vento uma leve cortina
que esvoace. Nada, rapace, nada sente
essa boca distante, a tua boca,
o peso de algodão da pena de uma ave,
lábios, língua, dentes, saliva.
Por quanto tempo ainda, noite em noite,
irei pela cidade sem beijar, sem
de verdade beijar em qualquer boca
essa fome que não beijei, a tua.


Joaquim Manuel Magalhães


uma luz com um toldo vermelho, editorial Presença, Lisboa, 1990








Foto de Hedi Slimane
Enquanto dentro de mim tento confrontar-me
com a noite, qualquer coisa que podias ser tu
cerca-me na corda de enforcado de um luar
visto da janela, ilumina a rua sem ninguém.
Esta memória destruída ainda sou eu,
um limite onde respiram as raízes
e ouço a erecta doçura de canções.
Depois ficamos sós com essas garras
que vemos sós na hora que nos mata.



Joaquim Manuel Magalhães


uma luz com um toldo vermelho, editorial Presença, Lisboa, 1990

Fotos de BERNARD FAUCON





















UMA NOITE



O quarto era ordinário, miserável,
escondido por cima da taberna dúbia,
e o beco via-se, estreito e sujo,
pelo postigo. Lá de baixo
as vozes vinham de alguns operários
jogando às cartas e bebendo.


Aí, na enxerga reles, tão usada,
tive o corpo do amor, eu tive os lábios,
os sensuais lábios tintos de um prazer
tão embriagador, que neste instante,
ao escrever aqui, depois de tantos anos,
na solitária casa, ébrio estou outra vez.


Constantino Cavafy


Tradução de Jorge de Sena, Editorial Inova, Porto












E DE SÚBITO ANOITECE




Viver é ver morrer, envelhecer é isso,
enjoativo, tenaz cheiro da morte,
enquanto repetes, inutilmente, umas palavras,
cascas secas, vidro partido.
Ver morrer aos outros, àqueles
poucos, a quem verdadeiramente amaste,
desmoronados, desfeitos, como o fim deste cigarro,
rostos e gestos, imagens queimadas, enrugado papel.
E ver-te morrer a ti também,
remexendo frias cinzas, apagados perfis,
disformes sonhos, turva memória.
Viver é ver morrer e é fragil a matéria
e tudo se sabia e não havia engano,
mas carne e sangue, misterioso fluir,
querem perseverar, afirmar o impossível.
Copo vazio, trémulo pulso, cinzeiro sujo,
na luz nublada do entardecer.
Viver é ver morrer, nada se aprende,
tudo é um desapiedado sentimento,
anos, palavras, peles, despedaçada ternura,
calor gelado da morte.
Viver é ver morrer, nada nos protege,
nada teve o seu ontem, nada o seu amanhã,
e de súbito anoitece.


JUAN LUIS PANERO


Tradução de Joaquim Manuel Magalhães,Relógio D'Água, Lisboa, 2003

sexta-feira, 22 de abril de 2011







2 poemas de RUI PIRES CABRAL




SIX MORE MILES

No cemitério
para falar das diferenças
entre nós

vistos de perto aqueles anjos
eram impressivos, dir-se-ia
que nos convidavam a morrer

o cão do coveiro perdera o interesse
por nós, íamos por entre as campas
como num jardim

alguma vez nos havia
de ocorrer, os feriados eram sempre
tão compridos


GNOSSIENNE Nº1


Eu acreditei que podia amar
o teu corpo, o teu modo de insinuar o coração
nas palavras. Mas era apenas a forma como a noite
sublinhava as superfícies, eu nunca pude atravessar
essa espessura. Estavas ali para te dispores aos meus sentidos
mas crescias fora de alcance no teu próprio
pensamento. Uma distância que só serviria
aos lobos, um mau caminho arrancado às fragas.

Já só conhecia os dias onde tu os frequentavas, o sítio
em que me mantinhas era mais urgente
que o sangue. Sem dúvida que vinhas pelo meu desejo
mas eu perdia sempre alguma coisa
quando te ganhava. Às vezes era só
a minha vontade, outras vezes era toda a frase
do meu nome.



música antológica & onze cidades, Editorial Presença, Lisboa, 1997

quinta-feira, 21 de abril de 2011













Foto de Sandra Juto

Poema de João Borges



Com o corpo todo à espera
entro para a neblina.
Alameda vazia, silêncio.
Casas erguidas
para fazer um caminho.

Com o corpo todo à espera
chamo-te, sem saber o
nome, sem luz, sem imagem.
Fantasmas prolongam
os passos, adiam a casa.

Com o corpo todo à espera
silencio a vontade
de me aproximar, viver.
Respiro a humidade
do nevoeiro, sempre à espera



Ao Vento Em Terramotos, edição cofre nocturno, Lisboa, 2011























Foto de Sandra Juto

Poema de JOÃO BORGES



O nome está no ruído
que desmorona noite dentro.
A chuva corrói a pele
em pleno deserto.

Dentro dos teus passos
há um segredo do tamanho
da luz.
Ao pressentir a escuridão
do vazio,
os braços inclinam-se
para ti.


Ao Vento Em Terramotos, edição cofre nocturno, lisboa, 2011

Fotos de STEVEN MEISEL









quarta-feira, 20 de abril de 2011

MAL-ME-QUER BEM-ME-QUER



POEMA DE ISABEL DE SÁ


Abri a caixa de cigarrilhas café crème
no jantar de aniversário. Na tua gravata
o alfinete, um triângulo de oiro
que ela trouxera nessa manhã.
Por fim ofereci-lhe o poema, depois
arrependi-me. O tempo passou
e então ela trocou-me
por um bocado de caça envenenada.


Repetir o Poema, edições Quasi, 2005













Foto de Sandra Juto

POEMA DE ISABEL DE SÁ



As coisas que nos acontecem no contacto com os nossos semelhantes têm vindo a fazer parte da escrita, tal como o caos algumas vezes pertence ao meu pensamento. Procuro a íntima fissura onde a alma acabará por dividir-se. Não posso ainda saber com que lado ficarei, "Então serei um eco e uma sombra", viverei a duvida até que um sinal me ilumine a razão.



Repetir o Poema, edições Quasi, 2005

POEMA DE RAINER MARIA RILKE



Todos os que te buscam, tentam-te.
E todos os que te encontram, ligam-te
a imagem e gesto.

Mas eu quero compreender-te
como a terra te compreende;
com o meu amadurar
amadura
o teu reino.


Não quero de ti nenhuma vaidade
que te demonstre.
Eu sei que o tempo
tem outro nome
diferente do teu.

Não faças milagres por amor de mim.
Dá razão às tuas leis
que, de geração em geraçao,
se fazem mais manifestas.


As Elegias de Duino E Sonetos a Orfeu, Tradução de Paulo Quintela, edição O Oiro do Dia, Porto,1983

POEMA DE VALTER HUGO MÃE - Por INÊS MENESES - Video de PAULO PINTO



gordo e careca from paulo pinto on Vimeo.

terça-feira, 19 de abril de 2011

BROKEN HEARTS BLOODY HEARTS







EMILIANA TORRINI - TO BE FREE

MARIA ZAMBRANO- A METÁFORA DO CORAÇÃO





O amor transcende sempre, é o agente de toda a transcendência. Abre o futuro; não o porvir, que é o amanhã que se pressupõe certo, repetição com variações do hoje e réplica do ontem. O futuro essa abertura sem limite, para outra vida que nos aparece como a vida de verdade. O futuro que atrai também a história.

Mas o amor lança-nos para o futuro, obrigando-nos a transcender tudo o que concede. A sua promessa indecifrável desacredita tudo o que se consegue, toda a realização. O amor é o agente de destruição mais poderoso, porque, ao descobrir a inanidade do seu objecto, deixa livre um vazio, um nada que é aterrador no princípio de ser apercebido. É o abismo em que se some não somente o amado, mas a própria vida, a própria realidade do que ama. É o amor que descobre a realidade e a inanidade das coisas, e que descobre o não-ser e até o nada. (...)

A consciência aumenta após um desengano de amor, como a própria alma se dilatara com o seu engano.(...)

Pois o amor que integra a pessoa, agente da sua unidade, condu-la à sua entrega; exige fazer do próprio ser uma oferenda, isso que é tão difícil de dizer hoje: um sacrifício. E este abatimento que há no próprio centro do sacrifício antecipa a morte. O que verdadeiramente ama, aprende a morrer. É uma verdadeira aprendizagem para a morte.




Assírio & Alvim, 1993, Lisboa

sexta-feira, 15 de abril de 2011


Poema de Margarida Vale de Gato

Intercidades


galopamos pelas costas dos montes no interior

da terra a comer eucaliptos a comer os entulhos de feno

a cuspir o vento a cuspir o tempo a cuspir o tempo

o tempo que os comboios do sentido contrário engolem

do sentido contrário roubam-nos o tempo meu amor


preciso de ti que vens voando

até mim

mas voas à vela sobre o mar

e tens espaço asas por isso vogas à deriva enquanto eu

vou rastejando ao teu encontro sobre os carris faiscando

ocasionalmente e escrevo para ti meu amor

a enganar a tua ausência a claustrofobia de cortinas

cor de mostarda tu caminhas sobre a água e agora

eu sei

as palavras valem menos do que os barcos


preciso de ti meu amor nesta solidão neste desamparo

de cortinas espessas que impedem o sol que me impedem

de voar e ainda assim do outro lado

o céu exibe nuvens pequeninas carneirinhos a trotar

a trotar sobre searas de aveia e trigais aqui não há

comemos eucaliptos eucaliptos e igrejas caiadas

debruçadas sobre os apeadeiros igrejas caiadas meu amor

eu fumo um cigarro entre duas paragens leio

o Lobo Antunes e penso as pessoas são tristes as

as pessoas são tão tristes as pessoas são patéticas meu

amor ainda bem que tu me escondes do mundo me escondes

dos sorrisos condescendentes do mundo da comiseração

do mundo

à noite no teu corpo meu amor eu

também sou um barco sentada sobre o teu ventre

sou um mastro


preciso de ti meu amor estou cansada dói-me

em volta dos olhos tenho vontade de chorar mesmo assim

desejo-te mas antes antes de me tocares de dizeres quero-te

meu amor hás-de deixar-me dormir cem anos

depois de cem anos voltaremos a ser barcos

eu estou só

Portugal nunca mais acaba comemos eucaliptos

eucaliptos intermináveis longos e verdes

comemos eucaliptos entremeados de arbustos

comemos eucaliptos a dor da tua ausência meu amor

comemos este calor e os caminhos de ferro e a angústia

a deflagrar combustão no livro do Lobo Antunes

comemos eucaliptos e Portugal nunca mais acaba Portugal

é enorme eu preciso de ti e em sentido contrário roubam-nos

o tempo roubam-nos o tempo meu amor tempo

o tempo para sermos barcos e atravessar paredes dentro dos quartos

meu amor para sermos barcos à noite à noite

a soprar docemente sobre as velas acesas


barcos.



Edição Mariposa Azual, 2010, Lisboa

Margarida Vale de Gato


A melhor estreia de uma poeta portuguesa nas últimas décadas


Margarida Vale de Gato (n. 1973) é uma das nossas melhores tradutoras, como se comprova lendo as suas versões de Lewis Carroll, Christina Rossetti, Wilde, Yeats, Melville, James, Char, Michaux, Sarraute, Dickens ou Poe. Há muito que também publica poemas em revistas, mas só agora editou a primeira colectânea. A espera valeu a pena, pois "Mulher ao Mar" é possivelmente a melhor estreia de uma poeta portuguesa desde "Um Jogo Bastante Perigoso" (Adília Lopes, 1985).


A escritora assume a "condição feminina" em praticamente todos os poemas. Especialmente a condição feminina portuguesa. Os textos têm ecos da "Menina e Moça", donzelas prendadas do Estado Novo, raparigas que ficavam em casa enquanto os homens tratavam da política, esposas dedicadas, irmãs pacientes, freiras sofridas, legiões compulsoriamente dóceis, pacientes, esperando, costurando, virgens e putas, degredadas filhas de Eva.


Em vez de "homem ao mar" grita-se "mulher ao mar" nestes poemas, e não é a mesma coisa. Eis o poema que dá título ao livro: "MAYDAY lanço, porque a guerra dura / e está vazio o vaso em que parti / e cede ao fundo onde a vaga fura, / suga a fissura, uma falta - não / um tarro de cortiça que vogasse; / especifico: é terracota e fractura, / e eu sou esparsa, e a liquidez maciça. / Tarde, sei, será, se vier socorro: / se transluz pouco ao escuro este sinal, / e a água não prevê qualquer escritura / se jazo aqui: rasura apenas, branda / a costura, fará a onda em ponto / lento um manto sobre o afogamento" (pág. 8). A mulher destes poemas, que é arquétipo mas também sujeito concreto e vivido, herda toda uma carga cultural, e procura uma linguagem em que encontre a sua autonomia. O "eu" destes poemas é rigoroso e esquivo, sexual e cultista, vulnerável e orgulhoso. Nos últimos anos, nenhum livro de poemas autobiográficos evitou com tal mestria as armadilhas da primeira pessoa, do cabotinismo ao prosaísmo, da trivialidade ao derrame sentimental.


A mulher que cai ao mar, ou se lançou, ou a ele regressou, fazendo o caminho inverso de Vénus, quem é? É uma mulher determinada pelos seus desejos, pela maternidade, pela experiência de uma domesticidade agreste ou azeda, muitas vezes sarcástica: "Costumes que frequentamos: / o arame da loiça, os panos dos pratos, os ganchos e as linhas / do estendal, a vinha-de-alhos, o fogão, / o alguidar, guardamos os restos, torcemos / os trapos, os nossos recados, os nossos sacos, / os nossos ovos" (pág. 45). O livro é ao mesmo tempo afirmação e luto, gémeos incindíveis.


Alheia a todo o solipsismo, Margarida Vale de Gato escreve uma poesia relacional, em constante diálogo com pessoas que passaram, que são passado, que não estão ultrapassadas, em geral homens que deixaram um agudo sentimento de orfandade ou decepção. A amargura cultíssima e vagamente niilista nunca impede momentos a que podemos chamar "românticos", de entrega confiada e apaixonada. É o caso um notável poema chamado "Intercidades", no qual a tristeza do mundo e a inquietação individual é atravessada pelo comboio que engole eucaliptos na paisagem portuguesa. Mas há também uma constante queda no "bathos" quotidiano, feito de segundas escolhas e de quedas conscientes e sem culpabilidade: "Foi como amor aquilo que fizemos / ou acto tácito? - os dois carentes / e sem manhã sujeitos ao presente; / foi logro aceite quando nos fodemos // Foi circo ou cerco, gesto ou estilo / o acto de abraçarmos? foi candura / o termos juntos sexo com ternura / num clima de aparato e de sigilo. // Se virmos bem ninguém foi iludido / de que era a coisa em si - só o placebo / com algum excesso que acelera a libido. // E eu, palavrosa, injusta desconcebo / o zelo de que nada fosse dito / e quanto quis tocar em estado líquido" (pág. 23). A sensação de catástrofe é omnipresente neste conjunto, e tem tradução numa espessura verbal quase visceral ou quase maneirista (mas apenas quase).O discurso é por isso denso, propenso à surpresa sintáctica ou vocabular, às vezes enigmático. Os textos, no entanto, nunca são herméticos ou desajeitadamente subjectivos, e isso deve-se ao domínio da linguagem e da tradição cultural. Estes poemas são tudo menos precipitados ou frouxos, e talvez a estreia tardia tenha contribuído para a notória depuração, incomum em primeiras obras. Esse investimento na palavra amadurecida é acompanhado por uma espécie de sumário civilizacional, que evoca como aliadas artistas que interrogaram a sua condição através da criação. E reparem que nenhuma delas é puro espírito, todas viveram carnalmente, na solidão, na cama, na maternidade, na doença. O martírio dessas mulheres é resumido em versos percutidos, zangados: "Se há uma falha um abalo / Dickinson Plath Woolf Kahlo / onde foram estavam loucas / queriam coisas eram ocas / queriam chique eram pedras / queriam arte eram merdas / tentando o voo eram estacas / punho em riste eram farpas / fornos hortos seu delírio / nunca foi santo martírio" (pág. 50). É a partir dessas histórias, contra essas histórias, que esta mulher se lança ao mar, e assim se salva.


Pedro MEXIA - recensão a Mulher ao Mar, de Margarida Vale de Gato, no suplemento Ípsilon do jornal Público de 7 de Maio.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

A IMORTALIDADE DA BELEZA INTERIOR E EXTERIOR DE VIRGÍNIA WOOLF

















































SEM MEDO DA VIRGÍNIA WOOLF




Há 70 anos, numa dia como o de hoje, uma mulher ainda jovem, magra, branca, feminil, caminha solitária na margem do rio perto da sua casa na aldeia de Rodmell, em Sussex, onde se tinha refugiado com o seu marido Leonard fugindo aos bombardeamentos alemães sobre Londres. E enquanto vai pisando a areia grossa da margem, vai colhendo com as suas longas mãos de louca tranquila, como se flores fossem, as pedras com que vai enchendo os bolsos do casaco. Desliza, depois, rio adentro, deixando-se abraçar pelas águas profundas do rio, para, finalmente, escapar ao medo. Quem assim entrou no suicídio, com medo de viver, foi Virginia Woolf, a romancista inglesa que gostava de passear nas margens da vida sob um céu sombrio e triste, e que, fosse em Londres, na velha mansão de família no bairro de Bloomsbury, fosse na casa perdida na paisagem verde negrejante de Sussex, num e noutro lugar sempre rodeada de enfermeiras, de malas para partir e regressar, de festas e convidados, escreveu romances, contos, ensaios, cartas e diários, antecipando-se a James Joyce no modo de forjar o monólogo interior e a polifonia de vozes que murmuravam tanto nos textos que escrevia como na sua mente bipolar.Por isso, não ter medo de ler Virginia Woolf, que numa época de moral vitoriana vestia calças de homem, era sufragista, fumava em público cigarros egípcios, dava conferências em círculos operários e, como se isto não bastasse para fazer dela alguém desajustado aos olhos da sociedade, ter, também, mantido uma relação lésbica com a sua amiga Vita Sackville West, poeta e mulher de um lord.O seu fim foi coerente com a sua existência inconformista e radical. Depois de uma noite sem bombardeamentos nazis, o dia 28 de Março amanheceu luminoso, transparente, frio. Antes de sair em direcção ao rio, Virginia ainda roubou à morte as três derradeiras cartas dirigidas a Leonard e à sua irmã Vanessa. Depois, tranquilamente, deixou-se abraçar pelas águas para não mais voltar a ver a claridade do dia.Vinte dias depois, um grupo de crianças haveria de encontrar o seu corpo numa das margens do rio Ouse. Talvez naquele 28 de março, temendo voltar a sofrer uma crise de loucura e não poder suportá-la, a alma de Virginia tenha, finalmente, decido não mais afrontar o inafrontável. Essa realidade intangível que nunca se chegou a compreender nem mesmo através da sua obra.



João Ventura , postagem do blog: O leitor sem qualidades


quarta-feira, 13 de abril de 2011

Poema de Emily Dickinson

I died for Beauty - but was scarce

Adjusted in the Tomb

When One who died for Truth, was lain

in an adjoining Room -



He questioned softly "Why I failed"?

"For Beauty", I replied -

"And I - for Truth - Themself are One -

We Brethren, are,"He said -



And so, as Kinsmen, met a Nigth -

We talked between the Rooms -

Until the Moss had reached our lips -

And covered up - our names -

Go slow, my soul...







INTERLÚDIO


terça-feira, 12 de abril de 2011

AMBÍGUIDADE & ANDROGINIA - O MEU FÉCTICHE - TILDA SWINTON



TILDA SWINTON ( actriz que representou a personagem ORLANDO no filme de SALLY POTTER, a partir do romance de VIRGÍNIA WOOLF "ORLANDO











sexta-feira, 8 de abril de 2011

VIRGÍNIA WOOLF por MAN RAY



VIRGÍNIA WOOLF



VIRGÍNIA WOOLF

Virgínia Stephens Woolf nasceu em Londres em 1882
Se o leitor tiver à mão as fotografias de Woolf, em jovem e no fim da sua vida ( a que lhe foi tirada por Man Ray), coloque-as lado a lado, porque elas são imagens de um percurso singular e de um dos mais significativos combates espirituais do nosso século. Na primeira, é Virgínia que chama pelo lobo como as lendas célticas nos ensinaram a imaginar: o olhar virgem e fulgurante, o lobo altivo e submisso. Na outra, vê-se o lobo cansado, disposto a morrer pelo último combate de Virgínia.

No dia 28 de Março de 1941, encheu de pedras os bolsos do vestido, conscienciosa e metodicamente; entrou na ribeira Ouse, que corria da parte de baixo da sua casa de campo The Monk's House, onde ela e o marido passavam largos períodos, desde 1919; entrou com 59 anos nessa ribeira que, hoje, serve de esgotos a um dos subúrbios de Londres, e dela não voltou a sair, fazendo assim entrar, no imaginário culto do Ocidente Moderno, o fim de um grande escritor que, em vida e sexo, foi mulher. E que mulher!

Antes de o fazer, deixou escrita ao marido esta carta:

«Querido,

Tenho a dizer-lhe que me deu uma perfeita felicidade.

Ninguém faria mais do que você fez. Peço-lhe, por favor, que acredite.

Mas eu sei que nunca serei capaz de ultrapassar esta situação - e estrago-lhe a vida. É esta loucura. Nada do que me puderem dizer me convencerá do contrário. Sem mim, você poderá trabalhar e ficará melhor. Está a ver, nem sequer consigo escrever a palavra "eu", o que só prova como tenho razão Tudo o quetenho a dizer é que, até esta doença aparecer, nós éramos perfeitamente felizes. E isso deve-se inteiramente a si. Ninguém poderia ter feito mais e melhor do que você, do primeiro ao último dia. Toda a gente o sabe."

Quando escreveu esta carta, Virginia Woolf tinha entrado, há pouco mais de um ano, em depressão profunda: a última da série de depressões por que passou, em quase 60 anos de vida.

Importa pouco saber as causas das suas depressões. O que interessa são as sequelas que foram deixando, os grandes e os pequenos embates que não destruíam mas enfraqueciam, a fragilidade que, por dentro, introduziam: o sentimento de que todas as crises se reuniam numa só fatalidade, que era a de a sentir sempre mais forte e, finalmente invencível. Este é o sentimento fundamental de Virgínia Woolf: o ter por dentro, constantemente, um inimigo e um intruso, de que não se vê o rosto. O estar à mercê. Viver na mira de um caçador implacável.

Experimentem!

Disse-o mais tarde a Ethel Smith:"O meu terror da vida real manteve-me sempre enclausurada. (...) Como experiência, a loucura é aterradora, posso garantir-lho, não pode ser subestimada; e é na sua lava que eu encontro ainda quase tudo sobre o que escrevo. Tudo brota de si, já formado, completo, não a conta-gotas como acontece com os cérebros normais. E nos seis meses - e não três -, que estive de cama, aprendi muito sobre o que se chama o "eu". Depois dessa experiência, sentia-me perfeitamente incapaz de mexer, nem que fosse um pé, aterrorizada. (...)"


A depressão, que provavelmente tem uma origem orgânica, e que parece manifestar-se quando o sujeito não consegue realizar o seu luto, por um objecto de amor, irremediavelmente perdido, provoca uma dor moral extremamente viva, dores físicas que se passeiam pelo corpo, perturbações digestivas, falta de apetite, insónias, sono agitado, uma auto-desvalorização intensa, uma incontrolável deformação da realidade própria, que em nada interfere com a lucidez com que se olha a realidade exterior, e uma auto-negação que, nos casos de melancolia profunda, induz comportamentos suicidários. Antes de abordar essas paragens, o depressivo vê abrandarem-se as suas capacidades intelectuais, e passa por penosos saltos de humor que o tornam dificilmente suportável aos olhos dos que o rodeiam.

Virgínia Woolf conheceu esse estado, aos 13 anos, aos 22 anos, aos 31 anos e, pela última vez, aos 59 anos.

Este, o inimigo invisivel que decidiu combater. Como personalidade construida em torno de uma férrea vontade mental, com gostos acentuados e firmes, mas sem um corpo onde (e com que) se ancorar na realidade,o seu combate consistiu na procura deste estar à mercê, e como encontrar um abrigo onde o mal a não pudesse encontrar. Um abrigo feito de solidão e de silêncio, sólido sem ser rígido, inteligente mas não cínico, questionante mas não céptico, diáfano sem ser crédulo, nem beato. Um estado que se encontraria algures entre os "meios hábeis" do zen, a fé tomista como a viu Maritain, o conhecimento do quarto tipo de Espinoza.

A avis rara, até hoje procurada e não encontrada pela intelectualidade ocidental. Não se deve esquecer que Pessoa e Joyce, contemporâneos de Virgínia, viveram estados relativamente próximos.

Essa procura encontrou, no estado das relações entre os homens e as mulheres, o seu primeiro paradigma; estendeu-se à análise das relações entre a intimidade própria e o mundo móvel e hostil, raramente acolhedor; alargou-se em tentativas várias de criação de um estilo de vida permanente e próprio, na vivência de afectos intensos, livres e não hipócritas; para, finalmente, vir a encontrar a sua maturidade na indagação estética e na elaboração de uma prática artística que revolucionasse as técnicas narrativas.



Cartas íntimas a Vita Sackeville- West, Colares Editora

segunda-feira, 4 de abril de 2011

2 Poemas de LUÍS MIGUEL NAVA

A POUCO E POUCO



Há entre o coração e a pele cumplicidades para cujo entendimento apenas corpos como o dele às vezes contribuem.

Olhando-o nos olhos não é fácil destrinçar do alcantilado coração a cama onde dormíamos, ao mais pequeno sopro o sol parece evaporar-se.

Por esse coração, ainda que escarpado, era, no entanto, fácil alcançar a pele, o mar à força de bater na rocha ia ficando a pouco e pouco em carne viva.

AO MÍNIMO CLARÃO



Talvez seja melhor não nos voltarmos

a ver, ao mínimo clarão

das mãos a pele se desavém com a memória.

As mãos são de qualquer corpo a coroa.



Das dele já nem sequer o itinerário

sei hoje muito bem, onde o horizonte

se desata o mar agora

regressa ao coração de que faz parte.



Ainda é o mar contudo o que se vê

florir onde ele chegar. Chamando a esse

rapaz rebentação,

o céu rasga-se à volta dos seus ombros.


AS FOTOS DE STEVEN MEISEL

A BELEZA POÉTICA ATRAVESSADA PELA AMBIGUIDADE ...