quarta-feira, 11 de julho de 2012

Francis Campbell Boileau Cadell

Um belo Soneto de Shakespeare

XVIII

Devo igualar-te a dia de Verão?
És mais encantador, mais temperado:
Em Maio, o vento agita-lhe o botão,
E o bem do Estio foge apressurado.

Sei que o olhar do Céu chega a queimar,
E o seu aspecto de  ouro se embacia;
O belo pode às vezes declinar,
Se acaso a Natureza se transvia:

Mas teu eterno Estio não se vai,
Nem perdes a beleza que deténs;
Da Morte o manto sobre ti não cai,
Se em verso perdurarem os teus bens:

Enquanto alguém respire e possa ver,
Enquanto isto existir, hás-de viver.



Tradução em verso de Maria do Céu Saraiva Jorge

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Exposição de Luís Manuel Gaspar - Um Lugar nos Olhos - Biblioteca Nacional, Campo Grande, 83, Lisboa - 2 de Julho a 31 de Agosto

"Como nenhum outro ilustrador, o essencial da sua obra pode ser encontrado algures entre a Natureza e a palavra (nos livros de poesia, capas e miolo; dando rosto aos volumes de ficção; em livro infantil com animais; nas bandas desenhadas que ilustram poemas de Sophia, Pessoa, O’Neill entre tantos outros). luis_m_gaspar_capa2Uma parte deste campo visual radica no naturalismo mais despojado, aqui e ali retocado pelas cores vibrantes do acrílico. São lugares (recantos de cidade) e paisagens (de beira-mar), gatos em diversas poses com todos os pêlos (sim, contei-os…), moscas ou objectos. E retratos, de escritores ou de felídeos. A riqueza de pormenor vai do cenário de ópera íntima à dentição completa do peixe. A segunda parte acomoda-se na gaveta dos surrealismos, como se as gralhas dos textos se transfigurassem em híbridos do mundo natural. Tenho-os no aconchego da mão e não me canso de os mirar: aracnídeos em flor, ramos secos que se locomovem em patas de aranha, pássaros que se desfazem em estames e corolas, ausências de branco no coração de um bailado de folhas. Neste reino desenhado de Gaspar com pujante ciência, animal e vegetal e inanimado fazem-se criatura única que evolui perante os nossos olhos na superfície do papel. Uma composição por vezes abstracta que faz todo o sentido. O que parecia arbitrária conjugação de factores pulsa uma naturalidade óbvia, que parece dizer-nos, então não tinhas reparado que os gravetos de pinho são invertebrados de exoesqueleto quitinoso?"

João Paulo Cotrim

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Guillaume Pelloux

Poema de Sylvia Plath

PALAVRAS


Machados,
Após cada pancada sua a madeira range,
E os ecos!
São ecos que viajam
Do centro para fora como cavalos.

A seiva
Brota como lágrimas, como a
Água a esforçar-se
Por recompor o seu espelho
Sobre a rocha

Que pinga e se transforma,
Uma caveira branca
Comida pelas ervas daninhas.
Anos mais tarde
Encontro-as no caminho -

Palavras secas e indomáveis,
Infatigável som de cascos no chão.
Enquanto
Do fundo do charco estrelas fixas
Governam uma vida.


Ariel, tradução de Maria Fernanda Borges, Relógio D'Água Editores, 1996, Lisboa

Poema de Isabel de Sá

DISFARCE


Frequentemente o rosto é máscara, disfarce. Mas de onde vem a luz que faz do muro espelho? Incessante, a vida procura clarificar aquilo que em nós é finito e nos arrasta em busca da perfeição. É sempre confuso penetrar na nova obra, enterrar nela o que somos sem calar a verdade. Desordem, crueldade ou artifício, tudo faz parte do naufrágio.As palavras desenrolam obscuramente o que existe.


Repetir o poema, (poesia reunida)Edições Quasi, 2005

quinta-feira, 14 de junho de 2012

HEART - Cara Barer

Poema de Sylvia Plath

OLMO

Para a Ruth Fainligth


Conheço o fundo, diz ela. Cheguei lá com a minha raiz maior:
É disso que tu tens medo.
Mas eu não tenho medo: já lá estive.


É o mar o que ouves em mim,
As suas insatisfações?
Ou a voz do nada que era a tua loucura?


O amor é uma sombra.
Como ficas prostrada e chorosa depois
Escuta: são os cascos dele: desapareceu como um cavalo.


Toda a noite a galopar, assim, impetuosamente,
Até que a tua cabeça fique uma pedra e a tua almofada um pequeno monte de turfa,
Fazendo eco, fazendo eco.


Ou deverei eu trazer-te um som de venenos?
Agora é a chuva, este silêncio.
E este é o seu fruto: da cor metálica do arsénico.


Tenho sofrido a atrocidade dos crepúsculos.
Queimados até à raiz
Os meus filamentos vermelhos ardem, ficam espetados,
mão de fios eléctricos.


Desfaço-me em bocados de caruma que voam em várias direcções.
Um vento tão violento
Não aguenta espectadores: Tenho de gritar.


Também da lua está ausente a piedade: Havia de arrastar-me
Cruel, na sua estirilidade.
O seu esplendor ofusca-me. Ou talvez a tenha agarrado.


Vou deixá-la ir. Vou deixá-la ir
Diminuida e esvaziada, como após uma operação radical.
Como os teus sonhos maus me possuem e alimentam.


Sou habitada por um grito.
Noite após noite bate asas
Procurando com as garras algo para amar.


Aterroriza-me esta coisa tenebrosa
Que dorme dentro de mim;
Todo o dia sinto o macio voltejar das suas penas, a sua malignidade.


As nuvens passam e dispersam-se.
Serão essas as faces do amor, esfumadas coisas que não se recuperam?
É por isto que perturbo o meu coração?


Sou incapaz de aprender mais.
O que é isto, este rosto
Tão assassino em seus tentáculos estranguladores?-


O seu ácido silvo de serpente.
Petrifica o desejo. Erros que isolam, essas falhas lentas
Que matam, e matam, e matam.




Ariel, tradução de Maria Fernanda Borges, Relógio D´Agua Editores, 1996.

domingo, 10 de junho de 2012

Anselm Kiefer

Poema de João Borges

Canção diante de uma porta fechada*

I


O começo do inverno trocou em chuva todas as coisas que ainda não disse. Tenho um projecto interminável para me convencer de que vale a pena este quarto vazio, este silêncio.


Diante de uma porta fechada, estou sentado e canto. Para a chuva, para o que está do outro lado.


Voltei para casa, seja isso onde for. Os fantasmas assombram os mesmos cantos do quarto, e a paisagem através da janela não se moveu ainda.


Este segredo



está tudo calmo agora que anoiteceu. Sozinho, converso com a Irene Lisboa
neste livro, mas sei que não posso perpetuar a conversa, porque me canso de ouvir só a minha voz.



Se fosse há dois anos, estaria a comer cereais sem leite com a Nita ou a fumar um charro com o Alex. Tudo isso está arrumado num qualquer canto da cabeça. É o vazio. É ainda diante desta porta fechada que a minha canção alterna entre a euforia do momento e a tristeza de já ter passado. É ainda atrás da porta fechada que está um motivo para cantar ainda.



Estendo as mãos à chuva torrencial e ao movimento dos dias.
Para continuar.



II


Quando era puto, corria muito. Nunca fui ágil, caía muitas vezes. É estranho imaginar-me pequeno, de cabelo curtinho e a correr. No verão andava de calções e esfolava quase sempre os joelhos. E lembro-me da minha mãe me desinfectar as feridas com álcool e betadine. Lembro-me do betadine a deslizar inesperadamente frio pela minha pele. Tinha a cor do sangue. E ardia.
Para mim, só dessa maneira fazia sentido ter feridas, dizer que me magoara, porque antes nem havia sangue suficiente para assim escorrer em abundância.
Não sabia,não podia saber, que a verdadeira dor e as feridas irreversíveis são limpas, sem sangue a escorrer nem pele esfolada para desinfectar com~álcool e betadine.
Agora sei.



6.10.09



*título de um livro de Agustina Bessa-Luís

in Brilho no Escuro nº3, edições Anjo da Guarda, Porto, 2009

domingo, 6 de maio de 2012

Poema de Christina Rossetti

Recorda-me quando eu já tiver partido,
Partido longe adentro da terra silente,
Quando não mais a mão me possas dar,
Nem eu, semi-virar-me para ir, e ao virar-me ficar.

Recorda-me quando não mais, dia a dia,
Me contares o nosso futuro que planeaste:
Recorda-me apenas. Compreendes,
Já será tarde para dar conselhos ou rezar.

Porém, se por um momento me esqueceres
E depois recordares, não lamentes:
Pois se o escuro e a corrupção deixarem
Um vestígio dos pensamentos que uma vez tive,
É de longe melhor que esqueças e sorrias
Que por recordar entristeças.


Os Pré-Rafaelitas, antologia poética, Assírio&Alvim, 2005

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Poema de Dante Gabriel Rossetti

cançãoV

UM POUCO DE TEMPO


Um pouco de tempo, um pouco de amor,
A hora pacienta ainda por ti e por mim
Que não retirámos o véu para ver
Se o nosso céu ainda se acende lá em cima.
Tu apenas, ao último suspiro do dia,
Sentiste a tua alma prolongar o som;
E eu ouvi o vento nocturno gritar
E julguei que era minha a fala dele.

Um pouco de tempo, um pouco de amor,
O Outono disseminador entesoura para nós
Cujo aposento não está ainda arruinado
Nem desfolhado o nosso bosque sem canções.
Apenas através dos ramos agitados
Ouvimos as marés que buscam o mar,
E fundo acordam nos nossos dois corações
Um lamento por ti e por mim.

Um pouco de tempo, um pouco de amor,
Pode ainda ser nosso que não dissemos
A palavra que nos atemoriza os olhos
O saber o que cada um está a pensar.
Ainda não no fim: emudeçam-nos os lábios
Em sorrisos por uma breve estação ainda:
Eu dir-te-ei, quando o fim chegar,
Como melhor poderemos olvidar.


Os Pré-Rafaelitas, antologia poética, Assírio&Alvim,2005

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Poema de Mário de Sá-Carneiro

O FANTASMA




O que farei na vida - o Emigrado
Astral após que fantasiada guerra
Quando este Oiro por fim cair por terra,
Que ainda é Oiro, embora esverdinhado?


(De que revolta ou que país fadado?)
Pobre lisonja a gaze que me encerra...
Imaginária e pertinaz, desferra
Que fôrça mágica o meu pasmo aguado?


A escada é suspeita e é perigosa:
Alastra-se uma nódoa duvidosa
Pela alcatifa, os corrimões partidos...


Taparam com rodilhas o meu norte,
As formigas cobriram minha sorte,
Morreram-me meninos nos sentidos...


Paris - 21 Janeiro 1916.

domingo, 8 de abril de 2012

A Páscoa e o poema da Sophia que nos fala da "paz sem vencedores nem vencidos"

A PÁSCOA e o poema da Sophia de Mello Breyner Andresen- Boa Páscoa para todos os que visitam este blog.


A paz sem vencedor e sem vencidos

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

sábado, 7 de abril de 2012

Imagens do cinema de Tarkovsky para 2 poemas de Amadeu Baptista

Dois poemas de Amadeu Baptista

FRIDA KAHLO E OS DESENHOS DO MUNDO

Creio que a adolescência tocou o teu rosto
para fazer crescer a perturbação ainda hoje visível no olhar, o modo surpreendente
como os cabelos deslizam para a brancura
são a prova inequívoca do enigma, o vaticínio marca-te no rosto um pouco dessa tristeza avassaladora e ténue de quem atravessa
uma cidade para se perder no instante
de uma fonte, mão que toca a cor imponderável
das coisas para extrair do passado
uma medida de ferro, um fio de oiro,
um pássaro azul. Vejo-te passar nesse navio longínquo que há-de um dia pertencer ao vento, decifro o reflexo de um brilho que te sobe
para os ombros como o frágil ramo
de uma árvore vivaz e suavemente flutua
sobre a transparência para identificar o anjo
que te precede, um pouco após o sinal redutor da inocência e a infinita doçura de quem foi perseguido e arrancou das entranhas
subtílimos silêncios para resistir ao assédio
das pedras, os poderes aniquiladores, o rumo das coisas quando a tempestade triunfou
sobre a tempestade e a memória entregou
o resgate de não haver resgate.
Deste lugar te avisto e avisto o mar,
esta passagem conduz ao indizível encontro com as estrelas, sol e noite, os mínimos percalços que a natureza desoculta das sombras e faz explodir em fragmentos translúcidos
onde se inscreve a mensagem,
uma última notícia do paraíso perdido
em que um traço de luz corresponde
ao augúrio da brisa, a voz secreta que nos une
e separa, a palavra onde o deslumbramento
é um labirinto que pela alucinação
percorremos no incontornável fulgor
de um momento perpétuo.

A NOITE DE PAVESE


Raras vezes me franquearam a porta

e deixaram entrar. A febre

sitia-me a alma e quem me vê

assusta-se do aspecto do meu rosto,

esta barba por fazer onde um rouxinol

se esconde. E mais ainda assusta

a minha altura, este lugar de vertigem

e palavras poderosas, a presença

de ilimitados segredos que ninguém quer conhecer, o estremecimento que corre

nos meus ombros. Embora nada peça, sabem que sou um pedinte. E quando entro nas casas os meus gestos afeiçoam-se a alguma coisa enigmática que contorna o pavor e o entrega

por não se saber que espécie de vida

ou de morte vem comigo. Obviamente, eu abençoo quem me deixa entrar, dou a entender

que alguma coisa brilha nas minhas mãos

e posso matar a fome com uma ou outra palavra próxima do amor, um dedo nos cabelos

de quem me recebe. Subi as escadas que vão dar a esta casa em silêncio e em silêncio aceitei

que me aguardassem com as inefáveis sombras que vejo nos outros e tento decifrar para meu contentamento. Mandaram-me sentar

e deram-me de beber. Esse álcool

reconfortou-me a alma. E a minha gratidão expressa-se deste modo, limpo e nítido, observando a mulher nesse sem fim das coisas, onde todos os mistérios avançam

para uma explicação que a qualquer momento pode irromper do espírito como uma explosão.

Olho-te nos olhos e recebo as duas moedas

que me ofereces, o teu rosto é-me familiar

se recuar à infância e subitamente perceber

que também pertenci ao exercício desta árvore

que nesta sala se levanta. Em frente,

na fotografia que o meu olhar alcança

porque me alcança o olhar que dela

se desprende, inscreve-se o enigma que me fez aqui chegar, mais que um rumor ou um fio ténue com o nome de todas as coisas inesperadas que me aconteceram na vida, sempre que me franquearam a porta e deixaram entrar. Agora, com a memória de ter estado

em tua casa e ter recebido a graça de alguma atenção, eu, que sou pedinte embora nada peça,

entrego-te este sulco da desordem

sobre a página em branco e agradeço-te

com o conhecimento de um outro mundo

ainda mais inexplicável. Não tendo havido despedida, sabe que permaneço

e na encruzilhada das dores que me couberam viver não esquecerei o teu nome no dia

em que também tiver partido

e mais nenhuma luz houver além daquela

que ilumina o teu rosto na solidão da noite.

Os anjos esperam-me. Não me é possível demorar. Que me seja a alba a tua tolerância.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Lavanda

A Primavera chegou!!!!!!

Quando tornar a vir a Primavera
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a Primavera nem sequer é uma cousa:
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes.
Há novas flores, novas folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.

Alberto Caeiro

DIA MUNDIAL DA POESIA - 21 de Março

ENFRENTAR A DOR
 
 
Ao reler os poemas à memória voltam
dias gloriosos, as canções com palavras
simples, a praia, o Inverno e as casas
-exististe em quase tudo e agora
é penosa a separação.
Dia a dia envelhecemos, estou morta
sob a luz da Primavera e não consigo
agarrar a vida. Há este abandono,
a sensação de ruína, a ferida implacável
no olhar.
Há o cheiro a relva cortada dos jardins,
a temperatura amena. Passam as horas
dentro da minha morte
executo movimentos contra a inércia,
...
sei que tenho um ar sombrio
e deixei de existir nos teus braços.

Isabel de Sá

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

ZURBARÁN

Juan Luis Panero

Um belo poema de Juan Luis Panero (e que nos fala das naturezas mortas de Zurbarán). Tradução de Joaquim Manuel Magalhães.


FUMO AO ENTARDECER

Depois de ter cheirado o perfume agridoce da morte,
depois de tantos corpos e paixões e sonhos,
olho agora, sobre a mesa, um copo vazio,
uns livros, papeis em desordem, velhas fotografias,
a luz do entardecer, apagando-se na janela.
Como numa natureza de Zurbarán
- a natureza morta, a natureza eterna -,
deixo-me viver já sem perguntas,
enquanto o fumo do cigarro desenha
todos os meus rostos: o que fui, o que sou,
o que serei, no frágil e caprichoso tempo.


Relógio D'Água, Lisboa, 2003

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Pintura de Barayona Possolo

Poema de João Borges

AS ROSAS DO DESERTO


Foi-nos fatal a descoberta do amor.
Talvez a força do encontro tenha
sido a primeira a destruir-nos.

Houve um tempo em que te falei
das rosas do deserto, sem saber
que seriam elas
a matar a escuridão.

Fomos antes do tempo.
Só isso agora nos perdoa.
Enfrentámos o corpo,
a perda alucinante da inocência.

Hoje conhecemos o isolamento.
Não sei como é a vida sem ti.
Não sei como é a vida.


As Sombras de Um Corpo Só, Lisboa 2011, edição do autor.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

O Menino Literatura

MARIA GABRIELA LLANSOL




Encontrei, de noite, na paragem de um autocarro,
Perdido de pai e mãe, um menino. Como te
Chamas? Literatura. Nome estranho para um
Masculino. Trazia como este nos olhos um susto
Verdadeiro velado por uma ousada fantasia. Via-se
Que a realidade lhe causava muito incómodo. Por exemplo,
Ser noite, estar só, pagar bilhete, ter de saber a direcção,
Sentir fome, estar com frio, respirar tubo de ...
escape. Dei-lhe
Minha mão e, através do veneno das trevas, para não o
Perturbar, trouxe-o para viver comigo. Seu nome
Pouco me dizia, mas por seu olhar daria
A própria escrita.




Maria Gabriela Llansol, O Começo De Um Livro É Precioso.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Dizem que a paixão o conheceu


dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice

conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nunhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos


Al Berto

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Foto de Juan Pavon

1923 - 2012 - WISLAWA SZYMBORSKA - Prémio Nobel de Literatura em 1996 .






POSSIBILIDADES

Prefiro cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos nas margens do Warta.
Prefiro Dickens a Doistoievski.
Prefiro-me gostando dos homens
em vez de estar amando a humanidade.
Prefiro ter uma agulha preparada com a linha.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não afirmar
que a razão é culpada de tudo.
Prefiro as excepções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar com os médicos sobre outra coisa.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não escrever.
No amor prefiro os aniversários não redondos
para serem comemorados cada dia.
Prefiro os moralistas,
que não prometem nada.
Prefiro a bondade esperta à bondade ingénua demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos países conquistadores.
Prefiro ter abjecções.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro contos de fada de Grimm às manchetes de jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães com o rabo não cortado.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que aqui não disse,
e outras tantas não mencionadas aqui.
Prefiro os zeros à solta
a tê-los numa fila junto ao algarismo.
Prefiro o tempo do insecto ao tempo das estrelas.
Prefiro isolar.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.
Prefiro levar em consideração até a possibilidade
do ser ter a sua razão.


Wislawa Szymborska, in "rosa do mundo" assírio & alvim, 2001

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Trabalho plástico de Alberto Pancorbo

Rimbaud

(...)  Juventude

III

Vinte Anos

As vozes instrutivas exiladas...a ingenuidade física amargamente aquietada...Adágio. Ah! o egoísmo infinito da adolescência, o optimismo estudioso: como o mundo estava em flor, nesse verão! O ar e as formas morriam...Um coro, para acalmar a impaciência e a ausência! Um coro de bebidas e melodias nocturnas... Com efeito: os nervos vão já pôr-se à cata.

IV

Ainda vais na tentação de António. As correrias do zelo infantil, os tiques do orgulho pueril, a fraqueza e o pavor. Mas perfarás este trabalho: todas as possibilidades harmónicas e arquitecturais te rodearão emocionadas. Criaturas perfeitas, imprevistas, se oferecerão às tuas experiências. Das cercanias afluirá sonhadora a curiosidade de antigas multidões e de luxos indolentes. Tua memória e teus sentidos serão só alimento do teu impulso criador. Quanto ao mundo, que será feito dele, quando saíres? Em todo o caso, nada conservará das aparências actuais.


Jean-Arthur Rimbaud, Iluminações Uma cerveja no inferno, Tradução, prefácio e notas de Mário Cesariny, Estúdios Cor, 1972

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Palavras sábias de Maria Gabriela Llansol

Trabalho plástico de Alberto Pancorbo


                                                                                                         

Antero de Quental - Vivo na morte (Maníacos de Qualidade - Joana Amaral Dias

"Falei de Rainer Maria Rilke. É curioso que Lou Andreas-Salomé, que seria sua amante, diria, a propósito da sua relação: «Todos os homens, não importa quando os conheci, sempre parecem esconder um irmão. Realmente, também a obra de Rilke está marcada pela presença da ausência e até, em determinados momentos, como em Requiem, o poeta parece advertir sobre a necessidade da morte não ficar a rondar...como ficou, no eixo da sua própria vida.
Teriam os meus pais projectado sobre mim o receio de uma morte prematura? Viveria com a responsabilidade de realizar a vida de outro? Teria existido acompanhado sempre por esse fantasma de um gémeo enterrado? Certo é que, quando nasci, era um bebé do sexo masculino como o meu irmão morto e, consequentemente, recebi o seu nome.
Ah, mas já volveram tantos anos. E assim, a esta distância, não deixa de ser irónico que tenha sobrevivido ao primeiro tiro. Foram precisas duas balas para me matar, como se, em mim, fôssemos dois. Por fim, ainda agonizei já depois do segundo disparo. Eu, que tinha vivido morto, estava vivo na minha própria morte..."


Maníacos de Qualidade, Portugueses Célebres na Consulta com uma Psicóloga,  editado pela Esfera do Livro, 2010.

Strange Little Girl - Encenação plástica de Graça Martins (1ªsérie) 2012

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Muriel

Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas a dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontros
em que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anos
junto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido


Ruy Belo

Obra Poética, Volume 2, Editorial Presença, organização e posfácio de Joaquim Manuel Magalhães, 1981.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

ARTE de ISABEL DE SÁ

"Sómente pela arte podemos sair de nós...mesmos".

"Somente pela arte podemos sair...de nós mesmos"

Somente pela arte podemos sair de... nós mesmos, saber o que um outro vê desse universo que não é o mesmo que o nosso e cujas paisagens permaneceriam tão desconhecidas para nós quanto as que podem existir na lua. Graças à arte, em vez de ver um único mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se, e quantos artistas originais existem tantos mundos teremos à nossa disposição, mais diferentes uns dos outros do que aqueles que rolam no infinito e, muitos séculos após se ter extinguido o foco do qual emanavam, fossem eles Rembrandt ou Vermeer, ainda nos enviam o seu raio especial.


Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido. 

"Havemos de engordar juntos." Esta frase tão realista do JOSÉ LUÍS PEIXOTO, também se aplica a amizades especiais. Há amizades muito próximas do amor. Esse cuidado e atenção pelo outro...São muito raras mas existem.

O José Luís Peixoto é famoso porque sabe falar da vida...e cria EMPATIA!!!!

Amor burguês

Havemos de engordar juntos.
Normalmente, toda a gente está demasiado preocupada em colocar a barra que diz "cliente seguinte", estão ansiosos, nervosos, têm medo que aquele que está à frente lhes leve os iogurtes, têm medo de pagar o fiambre daquele que está atrás. Enquanto não marcam essa divisão, não descansam. Depois, não descansam também, inventam outras maneiras de distrair-se. É por isso que poucos chegam a aperceber-se de que a verdadeira imagem do amor acontece na caixa do supermercado, naqueles minutos em que um está a pôr as compras no tapete rolante e, na outra ponta, o outro está a guardá-las nos sacos.
As canções e os poemas ignoram isto. Repetem campos, montanhas, praias, falésias, jardins, love, love, love, mas esse momento específico, na caixa do supermercado, tão justo e tão certo, é ignorado ostensivamente por todos os cantores e poetas românticos do mundo. Bem sei que há a crueza das lâmpadas fluorescentes, há o barulho das caixas registadoras, pim-pim-pim, há o barulho das moedas a caírem nas gavetas de plástico, há a musiquinha e os altifalantes: responsável da secção de produtos sazonais à caixa 12, responsável da secção de produtos sazonais à caixa 12; mas tudo isso, à volta, num plano secundário, só deveria servir para elevar mais ainda a grandeza nuclear desse momento.
É muito fácil confundir o banal com o precioso quando surgem simultâneos e quase sobrepostos. Essa é uma das mil razões que confirma a necessidade da experiência. Viver é muito diferente de ver viver. Ou seja, quando se está ao longe e se vê um casal na caixa do supermercado a dividir tarefas, há a possibilidade de se ser snob, crítico literário; quando se é parte desse casal, essa possibilidade não existe. Pelas mãos passam-nos as compras que escolhemos uma a uma e os instantes futuros que imaginámos durante essa escolha: quando estivermos a jantar, a tomar o pequeno-almoço, quando estivermos a pôr roupa suja na máquina, quando a outra pessoa estiver a lavar os dentes ou quando estivermos a lavar os dentes juntos, reflectidos pelo mesmo espelho, com a boca cheia de pasta de dentes, a comunicar por palavras de sílabas imperfeitas, como se tivéssemos uma deficiência na fala.
Ter alguém que saiba o pin do nosso cartão multibanco é um descanso na alma. Essa tranquilidade faz falta, abranda a velocidade do tempo para o nosso ritmo pessoal. É incompreensível que ninguém a cante.
As canções e os poemas ignoram tanto acerca do amor. Como se explica, por exemplo, que não falem dos serões a ver televisão no sofá? Não há explicação. O amor também é estar no sofá, tapados pela mesma manta, a ver séries más ou filmes maus. Talvez chova lá fora, talvez faça frio, não importa. O sofá é quentinho e fica mesmo à frente de um aparelho onde passam as séries e os filmes mais parvos que já se fizeram. Daqui a pouco começam as televendas, também servem.
Havemos de engordar juntos.
Estas situações de amor tornam-se claras, quase evidentes, depois de serem perdidas. Quando se teve e se perdeu, a falta de amor é atravessar sozinho os corredores do supermercado: um pão, um pacote de leite, uma embalagem de comida para aquecer no micro-ondas. Não é preciso carro ou cesto, não se justifica, carregam-se as compras nos braços. Depois, como não há vontade de voltar para a casa onde ninguém espera, procura-se durante muito tempo qualquer coisa que não se sabe o que é. Pelo caminho, vai-se comprando e chega-se à fila da caixa a equilibrar uma torre de formas aleatórias.
Quando se teve e se perdeu, a falta de amor é estar sozinho no sofá a mudar constantemente de canal, a ver cenas soltas de séries e filmes e, logo a seguir, a mudar de canal por não ter com quem comentá-las. Ou, pior ainda, é andar ao frio, atravessar a chuva, apenas porque se quer fugir daquele sofá.
E os amigos, quando sabem, não se surpreendem. Reagem como se soubessem desde sempre que tudo ia acabar assim. Ofendem a nossa memória.
Nós acreditávamos.
Havemos de engordar juntos, esse era o nosso sonho. Há alguns anos, depois de perder um sonho assim, pensaria que me restava continuar magro. Agora, neste tempo, acredito que me resta engordar sozinho.
José Luís Peixoto, in revista Visão (Janeiro, 2012)